quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O QUE ACONTECEU ENTRE 1959 e 2011??

PARA REFLETIR

Entre 1959 e 2011

Cenário 1: João não fica quieto na sala de aula. Interrompe e perturba os colegas.

·        Ano 1959: É mandado à sala da diretoria, fica parado esperando 1 hora, vem o diretor, lhe dá uma bronca descomunal e até umas reguadas nas mãos e volta tranqüilo à classe. Esconde o fato dos pais com medo de apanhar mais. Pronto.
·        Ano 2011: É mandado ao departamento de psiquiatria, o diagnosticam como hiperativo, com transtornos de ansiedade e déficit de atenção em ADD, o psiquiatra receita  Rivotril. Transforma-se num zumbi. Os pais reivindicam uma subvenção por ter um filho incapaz e processam o colégio.

Cenário 2: Luis, de sacanagem quebra o farol de um carro, no seu bairro.

·       Ano 1959: Seu pai tira a cinta e lhe aplica umas sonoras bordoadas no traseiro. A Luis nem lhe passa pela cabeça fazer outra nova "cagada", cresce normalmente, vai à universidade e se transforma num profissional de sucesso.
·        Ano 2011: Prendem o pai de Luis por maus tratos. O condenam a 5 anos de reclusão e, por 15 anos deve abster-se de ver seu  filho. Sem o guia de uma  figura paterna, Luis se volta para a droga, delinqüe e fica preso num presídio especial para adolescentes. 

Cenário 3: José cai enquanto corria no pátio do colégio, machuca o joelho. Sua professora Maria, o encontra chorando e o abraça para confortá-lo...

·        Ano 1959: Rapidamente, João se sente melhor e continua brincando. 
·        Ano 2011: A professora Maria é acusada de não cuidar das crianças. José passa cinco anos em terapia pelo susto e seus pais processam o colégio por danos psicológicos e a professora por negligência, ganhando os dois juízos. Maria renuncia à docência, entra em aguda depressão e se suicida...

Cenário 4: Disciplina escolar

·        Ano 1959: Fazíamos bagunça na classe... O professor nos dava uma boa "mijada" e/ou encaminhava para a direção; chegando em casa, nosso velho nos castigava sem piedade e no resto da semana não incomodávamos mais ninguém.
·        Ano 2011: Fazemos bagunça na classe. O professor nos pede desculpas por repreender-nos e fica com a culpa por fazê-lo. Nosso velho vai até o colégio dar queixa do professor e para consolá-lo compra uma moto para o filhinho.

Cenário 5: Horário de Verão.

·        Ano 1959: Chega o dia de mudança de horário de inverno para horário de verão. Nada acontece.
·        Ano 2011: Chega o dia de mudança de horário de inverno para horário de verão. A gente sofre transtornos de sono, depressão, falta de apetite, nas mulheres aparece até celulite.

Cenário 6: Fim das férias.

·       Ano 1959: Depois de passar férias com toda a família enfiados num Gordini ou Fusca, é hora de voltar após 15  dias de sol na praia. No dia seguinte se trabalha e tudo bem.
·        Ano 2011: Depois de voltar de Cancun, numa viagem 'all inclusive', terminam as férias e a gente sofre da síndrome do abandono, "panic attack", seborréia, e ainda precisa de mais 15 dias de readaptação...
   
Cenário 7: Saúde.

·        Ano 1959: Quando ficávamos doentes, íamos ao INPS aguardávamos 2 horas para sermos atendidos, não pagávamos nada, tomávamos os remédios e melhorávamos.
·        Ano 2011: Pagamos uma fortuna por plano de saúde. Quando fazemos uma distensão muscular, conseguimos uma consulta VIP para daqui a 3 meses, o médico ortopedista vê uma pintinha no nosso nariz, acha que é câncer, nos indica um amigo dermatologista que pede uma biópsia, e nos indica um amigo oftalmologista porque acha que temos uma deficiência visual.  Fazemos quimioterapia, usamos óculos e depois de dois anos e mais 15 consultas, melhoramos da distensão muscular.

Cenário 8: Trabalho.

·        Ano 1959: O funcionário era "pego" fazendo cera (fazendo nada). Tomava uma regada do chefe, ficava com vergonha e ia trabalhar. 
·        Ano 2011: O funcionário pego "desestressando" é abordado gentilmente pelo chefe que pergunta se ele está passando bem. O funcionário acusa-o de bullying e assédio moral, processa a empresa que toma uma multa, o funcionário é indenizado e o chefe é demitido.

Cenário 9: Assédio.

·        Ano 1959: A colega gostosona recebe uma cantada de Ricardo. Ela reclama, faz charminho mas fica envaidecida, saem para jantar, namoram e se casam.
·         Ano 2011: Ricardo admira as pernas da colega gostosona quando ela nem está olhando, ela o processa por assédio sexual, ele é condenado a prestar serviços comunitários. Ela recebe indenização, terapia e proteção paga pelo estado.

Pergunta-se:
EM QUE MOMENTO FOI, ENTRE 1959 E 2011, QUE NOS TRANSFORMAMOS NESTE BANDO DE BOSTAS?

domingo, 20 de novembro de 2011

PAPO DE RESPONSA: conspiração de sensibilidades


“Esforço-me por descobrir como avisar meus companheiros... para dizer na hora certa uma simples palavra, uma senha, como conspiradores: Unamo-nos, mantenhamo-nos juntos, juntemos nossos esforços, criemos para a Terra um cérebro e um coração, emprestemos um significado humano à luta sobre-humana” (Nikos Kazantzakis)

Depois que voltei de Curitiba, assumi uma conspiração. Depois de Curitiba, de novo, tive a necessidade de reler o livro ‘Conspiração Aquariana’, de Marylin Ferguson, em seu capítulo ‘A Conspiração’. Como este livro me arrebata e atrai vez por outra e em momentos de ‘repensamento’. Livro de cabeceira? Talvez...

Quarta e quinta. Dois dias em que estive tensa e preocupada. Sexta em diante: dias de estupefação com o que ouvi. Difícil dialogar com os meus sentimentos. A profusão de pensamentos positivos é enorme. Eu promovi sobressaltos e fui sobressaltada acintosamente. Eu pensei em provocar o outro e estou provocada em inúmeros pontos das minhas emoções e sensibilidades. Estudo transformações tecnológicas e fiquei espectadora de um acontecimento de repercussão e grande mudança de uma simplicidade gratificante. Hoje, em duas escolas em que trabalho, houve palestras do projeto ‘Papo de Responsa’, grupo parceiro do Afroreggae. Público alvo em princípio: primeiros anos do Ensino Médio noturno.

Dois homens: um policial e um ex-detento já ressocializado juntos compartilhando mudanças. Não sei exatamente descrever seus ideais ou verdades internas. Aliás, nem preciso. Sei que a idéia de mudança é abaladora, sofre saraivadas de questionamentos, mas vem acontecendo apesar de. Como diz em seu site (www.papoderesponsa.com.br), estive diante de “vozes de pessoas que compartilham da mesma inquietude e que propõem mudanças”. Um policial civil e um ex-detento ressocializado são seres sociais, logo sofrem, na pele também, suas mazelas.

Do olhar mais intenso à fala mais incisiva, as experiências assustam, desequilibram e incomodam. Como diz o coordenador do Projeto, Roberto Chaves: ‘estranho...’ Este é o terreno pleno para irrigação de seus (do projeto) ideais na tentativa de cultivar uma nova mentalidade dentro de uma realidade tão violenta e agressiva. Uma mentalidade que acredita na capacidade de se sonhar de olhos abertos, com responsabilidade, comprometimento, escolhas coerentes e muito respeito às verdades das pessoas. Sem adivinhação ou risco desnecessário, é preciso dar uma reviravolta nas zonas de conforto para se estabelecer uma consciência significativa dos papéis a serem desenvolvidos em torno de tudo e de todos. São todos conspiradores!

Ao reler Ferguson, acredito que são todos conspiradores. Mas em que acreditam? Para onde estão nos levando? No imensamente poderoso e amplo leque das possibilidades humanas, sabemos que há uma rede de pessoas trabalhando para criar um diferente tipo de sociedade baseada no potencial humano à solidariedade, ao diálogo, à escuta, ao silêncio de si e à compreensão do outro. Em diferentes instituições culturais: medicina, política, negócios, educação, religião, saúde, segurança e família, cada vez mais pessoas estão acreditando que o papel crucial das tensões e crises pode levar a uma nova abertura ao próximo passo da evolução humana: amor ao próximo, comunhão com o outro, mais compreensão quanto às mazelas do outro, mais responsabilidade sobre as próprias atitudes.

Estas pessoas, além dos sinais do inferno, buscam a realização da esperança. E hoje, cada vez mais um pouco, acredito que o projeto ‘Papo de Responsa’ possa refletir esse ideário de esperança em pessoas melhores! Isso! Conspiradores que pensam e divulgam pessoas melhores. Pensam em pessoas com mente aberta o suficiente para experimentar ser melhor mesmo se diante dos piores preconceitos ou repressões.

Não há utopia quando se está predisposto a experimentar ou simplesmente respeitar o próximo. Não há cansaço, displicência ou indiferença quando encontramos grupos de pessoas predispostas a conspirar de cara limpa e empolgados quanto a possibilidade de (se) transformar um pensamento, uma atitude, uma vida, uma família; ou “transformar o mundo com justiça em favor do coletivo”. E as palavras “palavra, diálogo e exemplo tornam-se as principais energias em favor da realização dos sonhos. Nada é mero acaso!” É paradoxal? É contraditório? É estranho? E o que não é assim nos dias de hoje? O que basta é o valor e a razão dessas ações. O que basta é acreditar que cada um tem (e deve buscar em si) “um instrumento de transformação e esta depende da vontade particular de não fechar os olhos para o que se passa lá fora”.

No ‘Papo de Responsa’, há um conluio entre seus integrantes e um conluio é um movimento de CONSPIRAÇÃO a favor de um bem comum. Infelizmente temos a tendência a ler com conotação negativa esta palavra. Mas que tal pensá-la literalmente apenas? CONSPIRAÇÃO, segundo Ferguson, significa ‘RESPIRAR JUNTO’. É a construção de uma ligação íntima e forte, no caso, entre pessoas para o bem, para uma qualidade maior nas relações entre pessoas diferentes ou com papéis sociais diferentes. Neste sentido, o ‘Papo de Responsa’ destrói a contradição acima referida e o sentido negativo da palavra sempre presente, discutida, pensada em mais e mais redes de pessoas em diferentes lugares onde o olhar, a voz e o tato alcançarem.

De outra forma, o ‘Papo de Responsa’ é o âmago daquela contradição porque une pessoas, segundo regras sociais, de mundos diferentes. Um policial civil e um ex-detento reintegrado se unem para inaugurar novos procedimentos amorosos às formas de relação social até mesmo com aquelas instituições. Apesar do choque do uniforme, da arma e da experiência marginal (fora dos padrões da lei), aos alunos é justamente isso que provoca a (re)abertura na escuta tão difícil nos dias de hoje. De novo: fato que o Coordenador do Projeto, Roberto Chaves, chama de: estranho... Todavia, é a aceitação do estranhamento que pode provocar, trabalhar e difundir mudanças em nosso status quo com mais energia. É o estranhamento que pode nos tornar, também, ‘conspiradores’ a favor de uma nova ordem carioca (estadual).

Sentada diante das duas vozes e dos múltiplos olhares, tenho um insight e este me reconduz à Ferguson e sua conspiração: mais do que apresentar ‘por que fazer’, o ‘Papo de Responsa’ propõe ‘o que fazer’ e isto é um mergulho profundo no desconhecido diante de um conhecido que nos tem falhado absurdamente. É uma conspiração que “visa a uma modificação na consciência de um número crítico de indivíduos, suficiente para produzir uma renovação da sociedade”. Não somos platéia dos movimentos do mundo. Não devemos apenas apontar pontos inseguros ou descuidados do cotidiano. Não temos muito o que pensar. Nós mesmos somos o futuro dialogando entre si no presente. Portanto não dá para esperar tempos de bonança sem fazer nada.

Em ambas as escolas, tive alunos atentos às palavras como nunca vi. Mesmo os papinhos transversais ou risinhos fora de hora, estes não eram distrações, eu os entendi como reações ao estranhamento das palavras e das emoções que teimavam em acontecer sem seus controles. O novo será sempre recebido com frieza, descrédito e até com certa zombaria e hostilidade, mas será recebido e isso é um grande começo. Em tempos de geração X, Y e Z; em tempos de novas tecnologias e novos paradigmas; em tempos de nativos e imigrantes digitais; em tempos de discussões sobre as tantas gerações embutidas na sala de aula, o estímulo a um novo pensamento ou uma nova atitude diante dos outros ou da diversidade precisa de certos choques, muitos sobressaltos, sinceros silêncios e muito carinho. É preciso realmente que se criem as ondas de Toffler. Lembremos: não se pode resolver problemas atuais com o instrumental antigo. Segundo Ferguson,
“As possibilidades de salvação nesse momento de crise não são a sorte, a coincidência ou a crença naquilo que se deseja verdadeiro. Armados com uma compreensão mais elaborada de como a mudança se produz, sabemos que as próprias forças que nos levaram à beira de uma catástrofe planetária trazem em si as sementes de renovação” (p.29).

É sabido que adolescentes não sabem lidar bem com os incômodos e se remexem muito. Mas são particularmente desinibidos e adeptos à essência transformadora. Mas também ainda não confiam em si mesmos e por isso são seduzidos pelas performances (e vontades) do outro. Um perigo constante. E justamente ai que se configura o ambiente a ser alcançado pelo Papo de Responsa. É a novidade de uma escola brasileira ainda sem grandes mudanças ou oportunidades aos mais jovens em termos de demonstração de proximidade, afetividade e entendimento das questões do outro sem separatismos, preconceitos ou deboches, mas voltada à uma transformação em doses mínimas, principalmente de confiança e respeito.

Duas salas em dois dias, de um novembro sempre cheio de evasões por causa do mercado de trabalho natalino, lotados de curiosos ouvintes silenciosos. Não era filme, não era mágica, não era bronca, não era a escuta de quaisquer desqualificações intelectuais aos berros. Foi a escuta das vozes do real e das possibilidades. Outra vez Ferguson, “os conspiradores nos instam a retomarmos o poder que de longa data cedemos ao hábito e à autoridade, a descobrir, por trás da confusão, de todo o nosso condicionamento, o núcleo de integridade que transcende convenções e códigos” (p. 34). Foram momentos em que os alunos se viram refletidos naquelas experiências, puderam acreditar que são possíveis e capazes e, basicamente, experimentaram a expressão do que sentem sem medo de serem julgados. Foram momentos de sentir e refletir sob a ótica do próprio mundo e atitudes até aquele momento. Mais uma vez Ferguson me suporta: “somente aquilo que sentimos profundamente pode nos modificar. Argumentos racionais, por si só, não podem penetrar as camadas de temor e de condicionamento que compõem nossos defeituosos sistemas de convicções” (p. 35).

Fim de noites. Sensação de alegria. O Papo de Responsa ofereceu oportunidades reais para que as pessoas experimentassem mudanças de consciência, senão ofereceu a oportunidade de que os alunos voltassem ao seu cotidiano, modificados: pensando e discutindo o que foi dito e até o que não foi dito. E isso foi apenas a primeira onda. É a nossa mais profunda e necessária conexão sem mensuração. Em espiral voltamos para casa, torcendo para que a essência dos ideais apresentados tenham chegado a um número enorme de mentes e que isso possibilite a vontade de tentar fazer as escolhas certas.

Obrigada Papo de Responsa!

Profa. Claudia Nunes

APEGO ÉTICO

À minha amiga Fátima Ornelas

De tanto falarem em DESAPEGO, outras questões me incomodaram: o que é apego e por que é tão prejudicial ao sujeito? Estou de malas prontas para viajar e, de repente, uma sensação de insegurança: será o apego? Ao receber um convite de trabalho super legal, fico indecisa: será o apego? Diante de uma transformação radical em minha vida pessoal, me percebo depressiva: será o apego? O que é tão dramático em se apegar às coisas? Por que não posso aceitar que certas coisas (valores, conceitos, comportamentos) são boas para mim e por isso devo repeti-las sempre? Será isso apego? Será isso destrutivo ou meu grande esconderijo? Estou inconformada com essa lógica que demanda dos sujeitos processos de desapego enormes em detrimento de uma realidade ou de um contexto. Qual é o problema de se ter um apeguinho básico?

Estudos científicos afirmam que o ser humano age de qualquer maneira para sobreviver. E sobreviver não é um agarrar-se a alguma coisa? Não seria o tal do apego? É importante se transformar quando as dinâmicas e surpresas da vida nos acobertam de impasses e decisões. É duro reorganizar a mente e o corpo dentro de outro ambiente que não o costume e o hábito. Alguns dirão que isso gera sofrimento, eu penso que isso sim é o tal do desapego. É estar livre para limpar e revitalizar tudo o que se aprendeu para viver a experiência de certos riscos. Existencialmente isso não é catastrófico, isso é amadurecimento, vivência, conhecimento.

Hoje, diante de um amigo de luto por um amor perdido, eu me assustei com seu nível de desapego. Anos de convivência fiel à uma companheira; anos de luta para construírem sua família; e, em sua falta definitiva, o riso frouxo, o papo singelo, a sensação de liberdade no ar e muitos planos para o futuro. Quase palpável, presente estava o sentido do ‘antes ela do que eu’. Impressionante! E isso seria bom? Esse é o desapego bacana, positivo, que todos incentivam? O aluno vai à escola e dois dos seus três professores do dia faltam e ele sai feliz porque está livre, sem compromisso, desapegado. É isso mesmo? Que sentido as pessoas dão a essas palavras, pelo amor de Zeus? Eu, cada vez mais, tenho uma única certeza: a questão das mazelas pelas quais passamos está contida na palavra EXCESSO. Tudo em excesso é realmente prejudicial!

Desde pequena, por exemplo, aprendi a ter ética em tudo e com todos. Nenhum vacilo era permitido. Ética no trabalho, nas atuações, com os amigos, com os filhos, com as obrigações, com os desconhecidos, com as certezas, com os conceitos e valores, com a minha inteligência. Não eram permitidos deslizes, releituras, rebeldias: era seguir a ética e tudo ficaria bem. Infância, adolescência e maturidade, rígida, linha reta, ética. Que loucura!

Hoje, aos 50 anos, descubro que a vida não tem pontas limítrofes; descubro o quão quente pode ficar meu corpo próximo ao corpo do outro de repente; descubro que a questão do controle é balela; descubro que não dou conta da energia (ou da cabeça) do outro; descubro, em rompantes, outros jeitos de ser e pensar que tem sucesso também; descubro que ética é outro nome para o ‘bendito’ apego. Isso é arrasador em minha vida. Isso torna tudo o que se acredita um grande conjunto de posturas em crise. Sem cuidado, quase há um esfarelamento de mim mesma. Tudo é um susto só.

Sem ter o que fazer, eu me agarro. Eu me agarro num mundo pré-fabricado, já bem mapeado por mim e super confortável. Eu ajo como sempre. Mas o estrago está feito. Diante de um arranhão ou rachadura, o objeto de porcelana (eu) surge como outra coisa. Não quero entender que a ética seja permissiva, não é isso mesmo, afinal não vou me descaracterizar (perder o caráter). Ética é um bom modo de viver e conviver. Ética é a busca do melhor estilo de vida, tanto privada, quanto pública. Então se o mundo está mudando, eu não deveria fazer o mesmo com essa ética? Tal e qual afirmaria Clarice Lispector, o que me aconteceu é incorrigível. Não há a menor possibilidade de revisão porque não sou rascunho de nada. Sou hoje alguém com mais algumas marcas, logo nunca igual ao ‘sou’ de ontem. Então como fico eu diante da ética anterior? Fico agarrada para todo o sempre e perco os sabores dos dias seguintes? Fico destemperada (sem tempero) e firmo pacto com o ‘de sempre?

Não revelo o que me aconteceu porque não interessa. Porém não sei o que faço de mim hoje. Sou ética e nada desapegada. Ai mentira! Ser ética me determina como parceira das mudanças e o que está acontecendo mais me traumatiza do que me reinaugura. Logo, sem controle do ar ou do vôo, é hora de ser ética de outra maneira. Os ferrolhos éticos do passado nem chegam perto da formatação que venho adquirindo hoje em dia. E pior, eu fui em busca dessas diferenças, desses desassossegos existenciais, dessas maneiras esfoliantes de revitalizar a pele e a alma. Só não sei o que fazer comigo diante do que vejo, sinto ou ouço por dentro e por fora. Este sim é um apego pernicioso: o apego ético das certezas sucesso de público é desastroso. Leva mais aos erros do que aos acertos porque demoro demais para decidir, para me dar ups originais.

Estou pensando: tanto tempo dentro de um padrão genealógico que acreditei que eu era aquilo e o outro se tornou uma ilusão de ótica, um borrão na paisagem real. Meu olhar não ganhou o horizonte e avistou o Gigante Adamastor de Os Lusíadas. Meu olhar aprendente se fixou no umbigo a procura de uma (re)ligação qualquer sem abrir mão de quase nada. Tudo por questões éticas. Tudo por causa do apego. Máscara amorosa firme que não condiz com a verdade.

Hoje me aconteceu. De hoje em diante me acontecerão. Dentro da fala comum: preciso me desapegar. Até mesmo da ética, preciso me desapegar. Nada que me comprometa no mundo ou que me desgoverne completamente, não tenho idade mais para isso. Mas é preciso reencontrar o processo assimilador e integrador de tudo o que me aconteceu para entender emoções, gerar ações e viver um pouco mais. Não posso ficar presa às rotinas ‘de sempre’ por medo ou pensando demais sobre o que acontecerá depois do ‘pulo do gato’.

Agora de madrugada, o apego ético me tira o sono. A permissão para novos envolvimentos, estudos, amizades etc. é minha única posse e é intransferível. A rotina diária deve encarar novos contornos e novos rumos com certa galhardia e sem certos costumes e hábitos. Não vou me catapultar ao ar livre nua de dogmas. Na minha atual conjuntura etária preciso apenas das crises. Estas devem chegar de ‘voadora’ às portas da minha mente e me romper cheias de autoridade, afinal sou leonina nata!

Estou tensa. Meus apegos éticos me sustentaram bem por décadas. E de novo lembrando Clarice Lispector, o que fazer de mim quando mim virou eu? Mim é diferente, é concentrado, é possessivo. Eu é mundo, é exposição, é porosidade. Como aproveitar essa porosidade com apegos éticos eternos? Em tempos de novas tecnologias e incremento das redes sociais virtuais criar laços (elos) emocionais é se jogar na incerteza do outro. Como fazer isso recheada de apegos éticos eternos? Nestes laços, há um nível grande de alegria, de prazer e de conforto. E quem não se apegaria a isso? E onde estaria o sofrimento? Excesso, eterno, para sempre, estas sim são palavras e expressões de sofrimento. Estas sim são palavras ou expressões que não nos fazem transcender e crescer. Estas sim são palavras ou expressões que nos impedem de viver no mundo em múltiplas dimensões quando estas nos reencantam.

Fim de semana e estou pensando: o que fazer de mim quando o mim virou eu e com apegos éticos estão ‘geneticamente’ modificados? Crise... crise ética mesmo.. Não quero manter em mim nada que não me faça bem. Não quero a falsa ilusão do amor, da amizade, do controle ou dos comportamentos. Não quero cegueiras. Não quero minha sobrevivência nas mãos de ninguém ou ‘no nada’. Quero poucas ansiedades. Quero lidar com o que me aconteceu com outros olhos e respiração. Quero ter coragem de me deixar viver e, com certeza, recriar novos apegos. Quero um pouco mais de espaço e serenidade para me espalhar pelos meus sonhos e fantasias. Não sei o que tenho para dar, mas antes preciso abandonar vários apegos éticos e me observar. Isso! Vou me observar em tentativa de ‘eu’ aos poucos...

Apego, mesmo o ético, é estar em poder de... é isso não é bom o tempo todo, muito menos a vida toda. Então é preciso livrar-se das idéias errôneas sobre mim mesma e sobre os outros para descobrir a outra face ou o outro lado da minha moeda com poucas complicações. Vou tomar consciência de que as idéias fixas (e imaginárias) não me ajudam. Diante do que me aconteceu, tornei-me mais sensível e consciente quanto ao modo do outro ser e isso teve um preço: minha vida anterior.

Lembrando Nelson Rodrigues, ter habilidade de aceitar a vida como ela é exige a perda de apegos éticos que me defenderam a vida toda. Está na hora de raspar isso e ressurgir parcialmente repaginada de opções, leituras e ética. É possível? O que acham?

Claudia Nunes

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A CANECA E O ABISMO

No escuro de um bar da cidade, uma caneca vazia encara uma figura silenciosa. Ao redor, muitas pessoas sorriem umas para as outras e contam histórias sem muitas explicações. Em cada história, diferentes seduções e muitos burburinhos. Ali ninguém se lembra de suas posições sociais, todos são personagens em busca de enredos afetivos fortes. É uma rede amorosa cuja perspectiva é conquistar mais e mais pares desejantes de histórias de uma noite, de um fim de semana ou de uma vida inteira. Nada interessa, nada é sério, ali a idéia é ‘ficar junto’ e se experimentar em diferentes encontros e atrações. Num canto mais íntimo, uma caneca vivia aquilo como se fosse uma total perda de razões.

Não havia polidez ou dúvida nos movimentos, as pessoas esvaziavam emoções e suas bocas procuravam compor outras bocas com certa urgência. E ali estava a caneca, sustentando o tempo, a memória e o desejo de um alguém que, de repente, perdera o prumo. Uma caneca com trajetória indefinida e cheia de surpresas. Indo da boca à mesa, a caneca sentia que a figura amara muitos e, agora, amava por um motivo e grande intensidade. Era uma boca ansiosa em uma caneca fria, mas esperta.

Enquanto a caneca tivesse função, o desejo era um ponto de chegada. A caneca era feminina e, toda noite, ela precisava ajudar a compor novas sensações e histórias. Mas a figura em sua frente, dentro de um carro, não se movia, mal respirava. Susto fora seu sentimento. Surpresa fora sua emoção. Gozo interrompido e um gosto estranho eram sua vida, novamente... No trajeto de volta, ela revivia seus 17 anos.

A caneca presenciava a agonia de uma decepção. A figura alisava a caneca cheia de intenções, cheia de incompreensões, cheia de insatisfações. Diante da caneca, depois de 20 anos, um coração arranhado novamente. No fundo a figura sabia: ela se deixara levar pelo doce abraço das expectativas. Viver um grande amor não era fácil e nem produto de artimanhas artificiais. Viver um grande amor, mesmo o mais romântico ou idealizado, precisava da oportunidade, da necessidade e da vontade dos dois. E a caneca sabia: em sua frente, uma face e um olhar em parte; um brilho e uma maquiagem que se acinzentaram, por inocência e esquecimento.

Não era um corpo, era uma pele criada por outros amores para disfarçar o amargo das indecisões e interrupções do amor romântico. A caneca e a figura eram mulheres surfando por histórias e emoções sem gosto definitivo ou próprio: e todas aceitáveis. Mesmo diante da maturidade, as duas estavam quase vazias. Nenhuma das duas se entendia. Tudo preparado. Tudo montado. Mas ambas se viam, de novo, em compasso de espera. Depois de encurtar os espaços, ambas se colocaram disponíveis a um alguém imaginário que não soube aproveitá-las e isso doía demais...

Diante da desilusão, a certeza da presença do hábito e do condicionamento: diante da caneca, a figura chora enfim. Sorri para o mundo, bebe o resto de vinho, mas chora a doçura de um tempo e de um corpo ainda intocáveis daquele amor amante tão esperado. A caneca sabia a verdade, mas a figura, não. Esta era atraente, animada, espontânea, mas, com a caneca, se apequenava e se magoava: ela estava com 17 anos. E, de novo, recebera o dom de iludir e, de novo, se esfarelava diante do Outro.

Sem nenhum pudor, beija a boca da noite suspensa e leva a caneca para o quarto. Não iria perder uma amizade por nada: estava tudo bem... No sofá, depois do banho, a figura tenta dormir, mas a caneca é enjoada e lhe encara. Mesmo de olhos fechados, a figura sente a presença da caneca e sua melancolia cresce: não tem explicação. Houve um pacto, uma doação, uma viagem, uma liberdade, uma oportunidade. Ela nunca o amara em definitivo. Ela nunca provara o gosto do segredo. Ela se sustentara em preliminares afetivas. Ela era uma mulher-figura em expectativa anos a fio, ali, sozinha e brilhante. Mas, embora cheia de intenções, ela perdera sua atitude e o jeito era silenciar-se.

Sozinha, em sua cama, procura lembrar o que fez de tão errado para desmerecer a definição amorosa. Ali, num quarto de hotel, depois dos filhos criados, se incomodava com a pressão da caneca por um laço insatisfeito. Como dar nós nos sapatos e continuar a vida tendo pendências emocionais tão profundas? Apostara em seu sonho. Apostara em sua maturidade. Apostara em sua mente engenhosa. Apostara em roupas, maquiagem, perfume e charme. Só se esquecera de uma coisa: a caneca. Do fundo de seu coração, não imaginara uma caneca, como seu único ganho, na noite da recompensa dos seus 17 anos. Ela era a surpresa do seu fim de noite. Cheia de vinho, ela era a alegria de suas mãos e boca. Mas, nela, as lágrimas de um momento nunca ultrapassado.


         O som de uma música romântica preenche sua mente. Com displicência, procura seu celular: queria reencontrar as pistas que lhe levaram até ali. Será que se enganara tanto assim? Por que não percebera as mesmas ações de antes? Sua memória abria ainda mais a ferida recém aberta. Marcações feitas, declarações pressentidas, toque de mãos, papo cabeça, beijo na boca, muitos beijos na boca, mãos brincalhonas e... apenas. Diante de um último gesto ou passo, a liquefação da emoção de um jeito muito inseguro. De volta ao quarto, pedaços de sentimentos e a caneca. A realidade lhe dera um presente para não mais esquecer: a caneca.

Durante a noite, seu corpo está inquieto. É o desentendimento mexendo com o subconsciente. Ao correr para o encontro dos seus longos 17 anos, sua paixão solitária ganhara profundidade. Nenhum impedimento, nenhum desconforto, nenhum estresse, apenas a beleza do que se chama ‘conjugal’ procurando a noite do prazer pleno. Mas as mesmas névoas da insegurança adolescente de 20 anos atrás não se desfizeram. As gorduras sentimentais do coração não foram eliminadas. E ela caminhara de volta à realidade abismal como um recipiente sem uso que anseia por líquidos hidratantes na pele ou em suas encostas: ela e a caneca são a mesma coisa, olhando um precipício sem fundo.

Na passagem da noite, a sensação de desamparo lhe faz voar pelas nuvens de uma história sem fim e que projeta o corpo pelos abismos dos amores (in)concebidos e cristalizados. A paixão retumbante não aconteceu. A paixão mitificada não a fizera levitar. Sua paixão tivera desatino, mas não alcançara seu destino. Sua paixão ganhara uma longevidade disfarçada e cheia de convenções. Ela e a caneca foram jogadas num abismo sem energia. Passaram por um confronto emocional forte. Todo o coração sacolejava. Todo o corpo se debatia. Elas, agarradas uma a outra, se sentiam desconfortáveis: o abismo era seu pior medo e sua melhor realidade, afinal as emoções precisavam ser replantadas e cuidadas, de novo, do início...

Com a caneca colada no corpo, a figura fora jogara sem atenção aos novos tempos e outras intenções. Ela não se esfarelava pelo acaso porque fora esbofeteada pela vida real. Ela se distraíra no tempo e assumira aventura da liberdade sem medo como certeza da emoção: e o abismo fora sua sorte. Por que o Outro não assumira o compromisso combinado? Por que o abismo se tornara sua herança? Por que a caneca se prendera em seu corpo? Em queda livre, não adiantava criar um andaime de ‘porquês’, tinha que bater no fundo e voltar sem procurar encaixes ou quebrar a caneca. Se não tivera méritos, o jeito era ‘partir para outra’.

Com o sol já batendo em seu rosto, se levanta agitada, guarda sua caneca, faz sua maquiagem, prepara seu cabelo e sai em busca de outros ganchos de prazer para sua história de vida, afinal voltara aos 17 anos...


No hall, um recado foi esquecido: “Faça um bom retorno. Consegui terminar meu artigo hoje. Ufa! No seu retorno aqui, será diferente...”

Profa Claudia Nunes

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...