terça-feira, 2 de outubro de 2012

HEBE e a MEMÓRIA



Em tempos de perdas pessoais e culturais, fascinante é a memória, é pensar em nossas memórias. Da força mental aos artefatos mais comuns como o livro, o homem foi capaz de guardar muitas informações em muitos espaços e revê-las utilizando tecnologias cada vez mais sofisticadas. Em todos os espaços, quando somos obrigados a reencontrar nossa memória, experimenta-se de novo, de novo e de novo, a atmosfera dos eventos em recordações junto aos sentidos: emoção. Segundo Kandel, “recordar o passado é uma forma de viagem mental no tempo. Ela nos liberta dos limites temporais e espaciais, e permite que nos movamos livremente ao longo de dimensões completamente outras” (p.17). E esse é o ponto: quando partimos?
Hoje faleceu Hebe Camargo e é sobre memória que devemos pensar, afinal perdeu-se uma grande dama e boa parte da história artística deste país. Os próximos dias serão de pura recordação, melancolia e certo saudosismo. Quem participou, quem observou, quem sentiu e quem viu de longe a ascensão desta mulher guerreira será levado a rever o próprio passado num movimento cinematográfico de imagens (fotos e vídeos) emocionantes em todos os canais, porque viver é criar memórias muito afetivas.
A morte desta personalidade tão querida suspendeu o cotidiano, lhe deu nova plástica e nos fez parar para pensar: somos frágeis demais, podemos ser alcançados por doenças irracionais e ter interrompido o movimento de construção da memória na vida, sem tempo de recomposições, ajustamentos ou pequenas explicações.
Neste caso, a primeira sensação é certo desnorteamento do presente. E sem nenhuma autorização prévia, voltamos a um passado de pessoas vivas sorrindo e fazendo arte para nossa alegria e distração enquanto, talvez, almoçamos em família num domingo qualquer. Surge também, diante de nossos olhos, nossas pessoas ainda vivas, nossos aniversários, férias, músicas, amores, escolas, tudo ligado àquele mundo de arte e entretenimento compartilhado (e vivido) por todos.
Hoje Hebe Camargo, com suas décadas de vida artística, atravessa os canais de TV, estimulando o aparecimento de memórias afetivas prazerosas de um tempo bem guardado em nosso cérebro. Ridículo pensar que ele não volte sempre. Até as memórias encaradas como ‘esquecidas’ ou lembradas parcialmente, em determinados momentos, surgem fortes e de uma só vez. Diante de estímulos tão emocionantes, excitações tão pungentes, neurônios associativos são atraídos entre si, criando sinergias entre informações semelhantes, de forma a montar objetivamente uma imagem, um som, um cheiro extremamente conhecidos e queridos: amígdalas cerebrais em festa!
As lembranças do trabalho da Hebe se misturam às nossas lembranças infantis e juvenis. É um olhar retrospectivo que nos invade sem bloqueios. E diante da morte da apresentadora, aceitamos esta invasão como um momento de reflexão sobre a vida. Para estímulos imprevisíveis, motivações persistentes. E como gosto de pensar: ‘esquecer, jamais!’.
A memória é nossa forma de resgatar quem somos, de nos reequilibrar com a realidade, de nos recompormos diante de um revés e de nos atualizarmos a partir de experiências bem encaradas. Então é importante tanto à saúde mental, quanto à saúde física no lidar com as pessoas, a profissão, a cultura, a política etc. É importante o respeito pela memória de todos.
            Hoje a memória é o melhor espaço de visitação porque diante da morte, é a memória que se esvazia e dá força aos processos cerebrais que tornam possíveis e acalentadoras nossas lembranças. Sem querer somos capazes de reviver experiências em detalhes visuais e emocionais impressionantemente nítidos. Fora o momento triste, há uma biologia da mente que se altera quando somos quase abduzidos de nossos confortáveis cotidianos.
            Como há uma alteração biológica, há uma nova memória em ascensão: a memória da hereditariedade. Esta memória eletriza mente e corpo com seu tônus de passado, com sua carga neuroquímica revitalizante, evolutiva, proteica e identitária; e nos ajuda a entender, como diz Kandel, “... processos mentais superiores (...) como a atenção, a consciência e o livre-arbítrio...”; além de abrir-se a possibilidade de entendermos, um pouco, nosso modo de pensar, agir, sentir, aprender e lembrar.
            É uma revolução. Hebe trouxe essa revolução. E tudo isso faz parte do jogo da vida, um jogo cego como propôs Darwin (apud Kandel): “...a evolução não é nenhum propósito consciente, inteligente ou divino, mas uma processo ‘cego’ de seleção natural, um processo completamente mecânico de seleção por ensaio e erro, que atua com base nas variações hereditárias” (p.22). E é nesse processo que estamos jogados hoje. Às apalpadelas, revisitamos nossas memórias por “combinações sempre novas de bases de nucleotídeos” (p. 23) inauguradas por um fato insólito ou absurdo ou surpreendente: é o cérebro emocional a pleno vapor.
            Segundo Kandel, “... o cérebro é um órgão computacional de processamento de informações cujo extraordinário poder resulta, não do seu mistério, mas da sua complexidade – da enorme quantidade, variedade e interatividade das suas células nervosas” (p.23). Por dentro dele, a memória é “capacidade de adquirir e armazenar informações tão simples quanto os detalhes da vida cotidiana e tão complexas quanto o conhecimento abstrato da geografia ou da álgebra” (p.24). E, no meio da sociedade, personalidades como Hebe Camargo que nos possibilitam defrontar com nossos confortos, nossas coisas tão comuns, nossas certezas tão encruadas. Nesta perspectiva e em perspectiva, há a continuidade da vida de forma persistente mesmo que transformada.
            Com as perdas somos estilhaçados, nos sentimos atropelados pelo destino cuja interpretação só as moiras conhecem. Mas, mesmo com as perdas, mudamos o trecho da viagem, ponderamos com a memória nova, choramos um pouco e nos projetamos, sem pensar muito, em outras histórias pessoais. Afinal, “somos quem somos por obra daquilo que aprendemos e de que lembramos” (Kandel, p.24).
            Hebe. Memória. Necessidades. Prazeres. Humanos. Somos mesmo demasiadamente humanos e procuramos diluir impactos emocionais ou nos escondendo ou aceitando os sustos da vida (mortes) como pontos iniciais às novas evoluções mnemônicas e adaptativas.
            De geração em geração, “todas as conquistas humanas, desde a Antiguidade até os dias de hoje, são produtos de uma memória partilhada acumulada durante séculos, seja por intermédio dos registros escritos ou de uma tradição oral cuidadosamente preservada” (Kandel, p.25) ou ainda do acúmulo pessoal de experiências e vivências culturais de cada sujeito social espetacular, como eu ou Hebe Camargo.
            Hoje se perde para ganhar. Hebe se vai ao seu descanso final e recuperamos uma memória afetiva admirável por dentro de seus ‘boas noites’ cheios de ‘gracinhas’, mensagens e imagens em retrospectivas. Sem deficiências, a perda de Hebe estimula nossa memória hereditária a lembrar de quem fomos nós e nos motiva a objetivar outros passos experimentando quem desejamos / podemos ser com consciência amanha ou depois...

Profa Claudia Nunes

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...