quinta-feira, 25 de março de 2010

A ORIGEM DOS PECADOS

As raízes das palavras que designam as faltas cristãs podem revelar significados insuspeitos do idioma.

O estudo etimológico por classes semânticas - a saber, grupos de palavras inter-relacionadas pelo significado - pode revelar-se atraente, pois se vincula, muitas vezes, a noções mais básicas e nem sempre óbvias para o falante comum. A palavra "pecado", por exemplo, é um dos inúmeros casos de substantivos formados por meio de um particípio, a saber, do verbo "pecar". Na verdade, apesar da obviedade dessa afirmação, há um erro etimológico nela, pois o latim peccatum já existia, o qual era a forma eutra do particípio passado peccatus, do verbo peccare.

Desse modo, o português assumiu ambas as formas como suas. Em latim, peccare era "cometer uma falta": o sentido religioso só viria bem mais tarde, quando os romanos se tornaram cristãos. Na verdade, o sentido mais antigo da palavra era "tropeçar" e tudo indica (sobretudo as consoantes geminadas) que o radical pecc- esteja ligado à mesma raiz de pes (genitivo pedis) "pé". De *ped-cus teria vindo, por assimilação regressiva, *peccus "perneta, manco", donde viria peccare *"mancar" e, posteriormente, "tropeçar". O sufixo -cus se vê também em mancus, "maneta". Curiosamente, manco em português não tem a ver com as mãos, mas com os pés, mas isso é uma inovação.

Em espanhol e em galego, manco mantém o sentido antigo de "maneta". Essa diferença de significados pode surpreender, mas encontra sua explicação na generalização do que foi considerado deficiência. Observe-se que, em espanhol e em galego, zurdo é o canhoto, palavra de origem desconhecida (cognata do português churdo, "ruim") e não tem relação com a palavra "surdo", do português, que vem do latim surdus, com o mesmo significado, como o espanhol sordo e o galego xordo. Os termos usados para "manco" em latim eram claudus ou claudicans (donde o verbo claudicar). Para manco ou perneta, em espanhol, se diz cojo e no galego (e português clássico), coxo, ambas provindas de um latim vulgar *coxum "manco", formado a partir de coxa "quadril, coxa". Dessa forma, para o discurso religioso, o pecado é um defeito para a alma, assim como as deficiências o são para o corpo.

Pecados
Na doutrina católica, há o pecado original, os pecados veniais e os mortais. Os principais seriam os pecados capitais, em número de sete: "soberba", "avareza", "inveja", "ira", "luxúria", "gula" e "preguiça". Vejamos os étimos de todos eles.

Inicialmente a "soberba", palavra que provém do latim superbia. O termo deriva do adjetivo superbus, "que está acima dos outros", formado pelo advérbio super, "sobre, acima de". Desde cedo, superbus passou a designar aquilo que é de fato melhor do que os outros (magnífico) ou, por metáfora, aquele que se imagina acima dos outros (o orgulhoso). O sufixo -bus acrescentado ao advérbio super não está isolado, mas também se encontra em probus, "que brota bem" (sentido agrícola), daí "bom" e, mais especificamente, "íntegro, leal, probo". Essa palavra também é derivada de um advérbio, pro "para a frente", donde probus seria inicialmente *"aquilo que vai para a frente". De probus provém probare "achar bom, aprovar", donde "provar um vinho", como a forma clássica "gostar um vinho" (de gosto, transitivo direto, com o sentido de "saborear um vinho"). Também probare é "achar correto", donde "provar um teorema". Desse sentido matemático é que virão, por metáfora, expressões como "provar a inocência".

A "avareza" provém do latim avaritia, "desejo de riquezas", que é um derivado de avarus "avaro, avarento". Na verdade, o primeiro sentido de avarus, se assemelha ao de seu cognato avidus "ávido", o que indica ser o sentido de avarus uma especialização, pois o sentido antigo era mais genérico e não se vinculava apenas a dinheiro ou a bens. Ambas as palavras se vinculam ao verbo avere "desejar ardentemente", de origem obscura.

Já "inveja" é uma palavra proveniente do latim invidia, com o mesmo sentido, embora no latim também se mesclem sentidos como "má vontade", "ódio" e "antipatia". Trata-se de uma forma abstrata de invidus "invejoso, ciumento, ínvido", formada a partir do verbo invidere "lançar mau-olhado, ter inveja ou ciúmes de alguém". A formação de invidus é irregular, mas parecida com avidus, portanto, é possível que tenha havido uma falsa segmentação e, consequentemente, uma etimologia popular que segmentava a+vidus, com um falso prefixo a- que foi substituído por in- em in+vidus. O sentido básico do verbo invidere é *"olhar (videre) para dentro de (in-)", donde "olhar demasiadamente para", por isso sua regência se fazia no caso dativo, que marcava o objeto indireto. Esse sentido inicial, porém, passou a ser mais usado por outro verbo sinônimo, inspicere.

Cultismo
A "ira" é uma palavra culta (em latim também se diz ira, grafado eira nos textos mais antigos). A etimologia dessa palavra, como é comum em palavras muito pequenas, é de difícil determinação, embora haja quem a associe com o sânscrito isirah ou com o grego homérico ierós, que têm o significado de "vivo", mas a mudança semântica é bastante complexa.

A "luxúria" é outro cultismo. O termo latino luxuria significava inicialmente "excesso, superabundância", donde o excesso de bens ("suntuosidade, fausto, luxo") ou o excesso como vício, do ponto de vista moral ("arrebatamento, volúpia, dissolução"). Por isso a forma luxurians, "luxuriante", se emprega, desde o latim clássico, para plantas que produzem flores ou frutos com abundância. A luxúria, assim, acabou por confundir-se com a "lascívia", que em latim nada mais era que "brincadeira, diversão, galhofa" ou com a "concupiscência", termo formado sobre o verbo latino concupisco, "desejar ardentemente (bens materiais ou sexo)".

O sentido atual de "gula" é uma abstração, por metáfora, da palavra latina gula, "garganta, goela". De fato, a palavra portuguesa "goela" vem do seu diminutivo no latim vulgar, a saber, *gulellam e, em romeno, gura significa "boca". O sentido abstrato, contudo, já aparece na época imperial. A palavra também é um cultismo, caso contrário, teria havido a queda do -l- intervocálico.

Por fim, a "preguiça" vem do latim pigritia. Do latim vulgar, a palavra virou pereza em espanhol, sendo que os -i- breves se tornaram e, a sequência ti+vogal se tornou z e o -g- do encontro consonantal -gr- caiu, regularmente. Em português e em galego (língua em que se diz preguiza), o segundo -i- se manteve por influência do iode de -ti- e houve o deslocamento do -r- da sílaba tônica original (-gri-) para a primeira sílaba (pigritiam > *pegriça > "preguiça"). Obviamente, o -u- na sílaba -gui- é puramente ortográfico e não precisa ser explicado à luz dos metaplasmos. Do século 15 ao 18, a julgar pelo Dicionário Houaiss, convivia com a forma pigriça e no 19 também há um perguiça. O deslocamento do -r- tem o nome de hiperbibasmo em estudos etimológicos e nesse caso específico, atuou-se analogicamente as palavras prefixadas em pre-, já que não é comum haver hiperbibasmos em que o -r- saia de uma sílaba tônica pesada (com duas consoantes iniciais, a saber, -gri-) e vá para uma leve (pi-): o contrário é o que costuma ocorrer, como em "vidro" > vrido.

A palavra latina pigritia é um substantivo abstrato formado sobre o adjetivo piger, "preguiçoso". Os dicionários também abonam pigro, mas tal palavra é muito erudita. Esse adjetivo latino se aproxima do verbo piget, "fazer devagar, ser moroso, fazer de má vontade" (mais tarde: "estar desgostoso, ter pena" e, inversamente "causar aborrecimento, contrariar") e, de fato, um derivado de piger, a saber, o verbo pigrari também significa "fazer lentamente, ser lento". O dicionário etimológico latino de Ernout & Meillet não encontra nenhuma etimologia para essa palavra.

Meandros semânticos
Fazer estudos semelhantes aos que acabamos de apresentar, sobre campos semânticos, revela vários meandros das palavras, os quais desconhecemos, com os quais não estamos acostumados ou para os quais estamos desatentos. De fato, a polissemia das palavras portuguesas não se deve somente à riqueza ou ao gênio da nossa língua, embora, desde o Renascimento, o discurso nacionalista das gramáticas tenha calado fundo. Muito dos sentidos de nossas palavras são provenientes já do latim ou vieram de outras línguas e somente uma pesquisa histórica pode de fato nos mostrar quais foram. É interessante perceber que uma palavra como "pecado" possa ser usada com outras acepções. Em romeno, pacat é uma interjeição de lástima, equivalente a "que pena!". Na verdade, se pensarmos bem (e se investigarmos, para compensar o nosso desconhecimento de parte da língua), há momentos e lugares específicos em que se usa a mesma expressão: "que pecado!". Por quê? Somente uma investigação etimológica pode responder (e não chutes).

Também quando dizemos que algo está "impecável", temos de voltar ao latim, uma vez que impeccabilis é "quem não cometeu uma falta", ou seja, o inocente. Algo que não comete faltas não tem falhas, por isso, quando dizemos que alguém "fala um inglês impecável", é nesse sentido que se sustenta a metáfora. No entanto, a expressão não é portuguesa, uma vez que a encontramos o mesmo sentido no francês impeccable (aliás, tão frequente que na língua coloquial, existe a forma impec, "excelente"). É mais provável que, por modismo, tenha vindo do francês, que influenciou as línguas de toda a Europa por séculos. O contrário seria difícil de imaginar.

Um dos melhores métodos de entender a Semântica, área pouco prestigiada pelos estudos da linguagem, é investigar a sua história. Para tal, são necessários bons instrumentos: dicionários etimológicos confiáveis, coletâneas de textos antigos e, sobretudo, método, como já mostramos em outros momentos.

Mário Eduardo Viaro é professor de Língua Portuguesa na USP, autor de Por Trás das Palavras: Manual de Etimologia do Português (Globo: 2004) e colaborador do Beco das palavras, do Museu da Língua Portuguesa/São Paulo. Disponível em http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11995.

2 comentários:

Amana Duarte disse...

Achei muito interessante este texto! Impecável ;) Não sou da exatamente da área, mas tenho muita curiosidade acerca da etimologia das palavras... É um universo inesgotável de estudos, hipóteses e descobertas. Acho mesmo muito fascinante. Adorei ter encontrado aqui esta aula tão interessante. Obrigada.

Anônimo disse...

Excelente trabalho, que me esclareceu muitas dúvidas de entendimento do sentido correto das palavras aqui apresentadas. Parabéns professora! Estou pesquisando também agora ignorância, ilusão, desilusão, imaginação, magia, doença, para ter a noção mais esclarecedora para estas idéias que usamos tanto e interpretamos erroneamente pela vida toda. precisamos despertar para maior compreensão da realidade. Muito Obrigado! Viviana Maria

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