Estou em um hospital. Estou sentada esperando o horário da visita sem pressa. O tempo passa. O cheiro é angustiante. Almas brancas vão e vem. Almas brancas me olham e me sorriem com ar de pesar. Ninguém se aproxima de mim e eu espero. Só meus pensamentos me acompanham. Minha amiga de infância estava internada há dois dias: estresse. Durante um de seus dias intensos de trabalho e responsabilidade, seu corpo travou e desligou. Simples assim. Sistema nervoso usado com muita intensidade dá nisso: apagão. Ela caíra na escadaria de uma faculdade. Sem controle, sentiu dor e apagou. Seu cotidiano tão organizado estancou sem sua permissão. Estresse, puro estresse. Estou na antesala de seu quarto de hospital e ela ainda está desacordada na cama. Medicada, mas desacordada. Balanço as pernas para poder pensar: eu avisei... Em sua ânsia de dignidade, liberdade e independência, ela ultrapassou sua humanidade.
Estou só numa antesala de um hospital. Estou só. Estranho... Onde estão os elogios? Minha amiga sempre foi elogiada, parceira, participante, responsável, amiga, criativa, organizada, disponível, mas cade os elogios? Engraçado os elogios: por distração, eles envolvem, tornam-se certezas e objetivos, aumentam nossa auto-estima e causam felicidade ao corpo e à mente. Há um grande inchaço no ego e no comportamento. Tentamos equilibrar as emoções, mas, por insistência, há o inchaço. Elogio. Inchaço. Cegueira. Acreditamos nos elogios e perdemos a espontaneidade, as formas de relaxamento, os jeitos de dizer ‘não’ e os espaços de individuação. No final, somos os elogios e um perigo. Naquela antesala, penso nos elogios e nos perigos dos multitarefas.
Minha amiga é multitarefa por necessidade e pelos elogios. O médico avisa: ‘a senhorita pode entrar...’. Alívio e medo. Na porta, vejo minha amiga: quieta e dormindo. De longe, a paz. Por que chegar até aqui? Por que esquecer de si tanto assim? Estresse, ela está ali por estresse. Sento numa cadeira próxima e continuo pensando: será que os multitarefas são produtivos, assertivos e competentes o tempo todo? De esguelha, olho o corpo da minha amiga estirado, parado, branco e me respondo: Não! Definitivamente os multitarefas estão se perdendo.
De segunda a segunda minha amiga tem dias compromissados. Ela trabalha em áreas e ambientes diferentes. Sua locomoção pela cidade é constante. E suas responsabilidades enormes: ela lida com as aprendizagens de diversas pessoas em múltiplos níveis. Aos 20 anos, o corpo e a mente são pura adrenalina e aceitam com galhardia todos os riscos. Aos 50 anos, o corpo e a mente estão desgastados, lentos e falhos. É o desastre da rotina e do crescimento, cuja realidade eu observo hoje. Então até onde ser multitarefa é revigorante? Até quando um multitarefa pode viver?
No dia anterior conversávamos pelo MSN sobre formas de seleção, férias, licenças, pontos de respiração interior. E ela argumentava: ‘Se assumi, tenho que dar conta!’. Ela tinha/tem razão, mas e a própria assistência e saúde? E o prazer? E o sono? De repente, minha amiga se move e geme. Ela está com dor, não sabe o que lhe aconteceu e está cheia de manchas roxas. Ela chora em silêncio. Hoje se exige tanto das pessoas que o processo de adaptação do corpo não se realiza integralmente. Vamos deixando pedaços de nossas prioridades por aí sem que isto se constitua em fracasso também. Não há tempo nem para isso. E ela chora. É o medo do tempo passando em total vazio de tarefas. Pego em sua mão e digo baixinho: ‘calma, você vai ficar bem... tudo pode esperar...’ Ela chora ainda mais. Ela não sabe esperar.
Sua respiração se acalma, mas ela não fala. Eu sei o que ela pensa: ‘o que faço aqui? quem sou eu aqui? E minhas tarefas? Cadê meu dia? Cadê eu?’. Sim, a multitarefa sem freio perdeu seu eu no mundo. As atividades são ela mesma e este é um elo cujo rompimento é impensável de tão proibido. Ela esqueceu que a vida é convivência quase sempre especular e, no espelho, os outros a julgarão de outras maneiras. E, na maioria dos casos, esta perspectiva aponta os multitarefas como dispersos; sem foco; superficiais; cérebros com menos chance de alcançar altos postos; com raciocínio, lógica e criatividade mais difíceis de acontecer; atrapalhados com os limites do tempo (relógio); com mais chance de desperdiçar o tempo já que não se organizam em prioridades e nem assumem, vez por outro, o tal ‘deixa pra lá’ tão bom à oxigenação do cérebro; mais propensos aos erros incompreensíveis dentre outras leituras mais ferinas. Será mesmo? Então como explicar sua exaustão? Sentindo a respiração da minha amiga, eu mesma respondo: suas noites são de preparação: o dia seguinte começava no dia anterior. E as horas de sono são horas de listagem: ‘quais serão os próximos compromissos?’. Estresse, puro estresse...
A mão da minha amiga esfria. Fico assustada. Mas ela só dorme e o ar condicionado está forte. Que frio! Que pena! Desde a adolescência, ela foi forçada a ser a melhor. Numa família onde só os homens trabalhavam, ela foi à luta em busca de superações e espaço. Ainda assim e, talvez por causa disso, sem se dar conta foi forçada a dar conta de inúmeras tarefas ao mesmo tempo. Parte dos ensinamentos familiares facilitou sua integração nos ambientes profissionais, mas também se tornaram grilhões à sua vida pessoal. Suas muitas tarefas são sua capa de invisibilidade e, com o tempo, um castelo que lhe dá segurança. Como um chavão: sua liberdade e consciência tiveram preço altíssimo! Hoje aos 50 anos, o estresse. Postura, cognição e memória, tão achatadas pelo volume de informações, atividades e responsabilidades, surtaram sem sua licença. Era uma crise biológica e comportamental. Em sua respiração entrecortada, a dificuldade de filtrar estímulos, motivações, instintos e pressões. Naquele corpo estendido naquela cama, a prisão dos desejos, das reações, dos jogos amorosos e das liberdades mais secretas.
Mas ela estava cansada. Ela tentava manter o controle, mas estava muito cansada. Ela tivera um acidente vascular cerebral leve. Estresse. De acordo com os médicos, sua situação era crítica, mas estável. Ela precisava de descanso total e urgente. Minha amiga não tinha mais tempo de reação: o corpo falou mais alto e decidiu: chega! Embora as horas passassem ninguém surgia: cadê os elogios? Cadê as responsabilidades? Cadê o tapinha nas costas? Eu e meu cobertor estávamos felizes. Sem tragédia ou se perder definitivamente, o corpo solicitou um basta, uma pausa obrigatória e se fez ouvir. Nova chance. Daqui em diante era preciso só qualidade.
Dez dias depois, numa pizzaria do Méier, ríamos demais desse momento. Minha amiga está de viagem marcada para Londres na próxima semana.
Próximas tarefas? Cabelo, mala e adeus!
Profa Claudia Nunes
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