quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Máquinas de Esquecer*


À Profa. Marta Relvas


Duas tecnologias determina(ra)m a viagem do ser humano no mundo: a oralidade e a escrita. De uma a outra os indivíduos criaram memórias, desdobramentos e lugares de preservação, em ambientes externos, como livros, bibliotecas, dicionários, enciclopédias, museus e fotografias. A intenção é eliminar o esquecimento. A projeção incisiva no mundo é para lembrar. Há um desejo constante de se reinventar e onde o conjunto de todas as invenções incorpore sua idéia criadora: lembrar.

Passar da oralidade à escrita ofereceu pano de fundo para que os indivíduos pudessem somar e interagir conhecimentos aprendidos por uma criatividade inata, no intuito de desenvolver ferramentas que se tornassem facilitadoras das ações humanas mais básicas como, por exemplo, pesquisar, enviar cartas e conversar. É o desenvolvimento das tecnologias dentro de padrões em que, estas, se apresentem como suplementos ativos ao progresso humano.

A aventura para a conquista de um futuro a qualquer preço e aproveitando qualquer recurso é um mecanismo de defesa amedrontado com a possibilidade do esquecimento. O corpo mental e o corpo físico são recheados de todos os tipos de objetos, emoções, valores, conceitos, sentimentos e ferramentas, de forma a engrandecer a aparência. Parodiando Fernando Pessoa “lembrar é preciso”!

Com essa perspectiva em mente, perguntamos: por que os indivíduos não esquecem? Ou melhor, por que o ato de esquecer é tão temido? Respondemos: porque esquecer sugere uma ação antropofágica sem qualquer reflexo em forma de aprendizado. Esquecer incorpora uma atitude contraditória diante do movimento do indivíduo de sempre se reinventar através de incisivas e repetitivas reconexões. Esquecer sugere apagamento da própria existência. E esquecer, como oposto ao lembrar, desgoverna o tempo presente e o tempo futuro porque podemos não ter o passado como lugar de uma “essência” ao qual poderemos voltar, se for preciso reapresentar-se ao mundo de forma diferente. Mas será que não esquecemos nunca? Será que nossa memória, sempre em movimento, porque a todo momento existem informações sendo processadas (estímulos aos processos sinápticos), nunca perde informações ou lembranças?

Dentro de padrões mais neurobiológicos ou neuro-científicos, muitos estudos teóricos dizem sim a esses questionamentos, pois todas as informações, ao menos, orgânica e quimicamente, sempre serão aproveitadas (é o processo de reciclagem, mesmo de corpos humanos: transformação em carbono), mas, se considerarmos a teoria humanista e a holística, estímulos diversos causam sensações também diversas e quando essas invadem os corpos humanos, na forma de choques elétricos excessivos, alcançam espaços mais sensíveis e recônditos na memória humana. Ainda assim, no decorrer das vivências, acontecem os bloqueios[1], experiências que irão sucumbir ao reino do inconsciente pela impossibilidade de se conformarem com o aprendizado social: é o momento DEL humano.

Muitas das informações apreendidas pelo humano tornam-se memórias[2] extintas. Muitas das informações gravadas na memória do computador também. As memórias extintas humanas permanecem latentes. As memórias dos chips também. Problemas de conflito entre memórias humanas ocorrem em função da faixa etária, das formas de uso, de traumas psicológicos ou traumas físicos. Problemas de conflito na memória do computador ocorrem pelo tempo de uso, por vírus, pela inserção de informações sem os parâmetros-base corretos ou por falta de manutenção. Em ambas as memórias e diante da exigência de solução para todos esses problemas, tanto no computador quanto dentro do sistema humano, o momento DEL se faz necessário e torna-se fundamental. DEL é o bloqueio humano. DEL apaga, mas nunca incondicionalmente. DEL “desvisualiza” um elemento que acreditamos excessivo no espaço da memória, mas sem destruí-lo. DEL elimina elementos conflituosos para que o sistema volte a um bom funcionamento[3]. DEL limpa o sistema de forma a que ganhe espaços para outras informações. E, por fim, DEL injeta mais força às conexões (aos neurotransmissores) na medida em que reveste e alimenta outras informações em processo de significação. A tecla DEL funciona ao toque de um dedo ou diante de situações de alto conteúdo emocional.

Se a máquina for entendida como extensão do humano, sua tecla DEL também é a representação do ato de esquecer, ou seja, é possível ler a máquina como representação da vontade de superação humana, de suas limitações mais físicas e, no conjunto, estas tornam-se objetos que reapresentam sistemas psico-bio-neurais humanos, na intenção de uma perfeição, dentro de meios ditos artificiais. Logo, as criações maquínicas apresentam muitas das habilidades e das funções humanas. E assim, humanos e máquinas configuram-se como estímulos e reflexos de uma evolução “imparável”:

”Pás são extensões dos nossos braços, guindastes são dedos que servem pra pegar objetos grandes, canos de água são similares ao nosso sistema de veias e artérias, telescópios aumentam o poder de visão; e, nos dias de hoje, a fiação interna dos computadores é quase tão complexa quanto o nosso sistema nervoso.”[4]

Entendemos, então, que as ferramentas, frutos da criatividade humana, representificam atos humanos, mesmo os mais complexos. E essas ferramentas (sua última concepção afirma-se no computador) foram adquirindo mais e mais maneiras de refletir (no sentido de reflexo, não de pensar) construtivamente todas as informações de forma a aprimorar a sobrevivência do próprio humano. E uma das atitudes mais importantes vivenciadas cada vez mais rotineiramente nessa relação homem e suas ferramentas é o BACKUP (cópia). Humanos fazem backup. Máquinas exigem backups.

Um usuário de computador tem como uma das advertências mais importantes a de fazer BACKUPS constantemente. BACKUPS funcionam na hora em que o computador entra em conflito com qualquer nova informação (ou programa), é invadido por vírus, ou há queda (ou piques) de luz. BACKUPS e seus disketes (hoje em dia CDs) trabalham em função de deixar o usuário tranqüilo. Faz-se BACKUPS para se guardar memórias (arquivos e programas importantes). Na medida em que nada puder ser feito, além de uma limpeza radical, deletamos tudo incondicionalmente, ou seja, apagamos toda e qualquer passagem do humano em seus elementos físicos constitutivos para reiniciar o computador. O PROMPT do DOS ou o processo SETUP sempre estarão lá e justamente dentro deles ou a partir deles, gravaremos nossa memória “primitiva”, os BACKUPS. Todos os defeitos estarão apagados e reiniciaremos o computador a partir de sua última memória. BACKUPS são as memórias latentes do computador, só que estão em ambiente externo. Assim como os neurônios, os neurotransmissores e as sinapses, aqui há também o processo de armazenagem e distribuição das informações.

Das memórias, as quais serão feitos os BACKUPS, em ambos os elementos da relação, podem ser eliminadas (esquecidas) as informações que não se processarem como significativas (sentido), ou momentaneamente (na máquina, para limpeza de arquivos e programas desnecessários; e no humano, por falhas mnemônicas ocorridas após stress mental ou traumas); ou de forma definitiva (na máquina, ao se reconfigurar o computador para uma limpeza radical por causa de vírus ou por conflitos de instalação; e no homem, por amnésias advindas da senilidade ou por distúrbios e transtornos diversos). BACKUPS de qualquer forma imprimem a certeza de que esquecemos.

“A fronteira tecnológica para a integração homem-máquina tem sido o sistema nervoso. (...) Da mesma maneira que um computador envia ordens através de seus fios e conexões, impulsos de transmissão natural, os cientistas são capazes de corrigir processos sensoriais e motores, como a surdez, a cegueira e a paralisia, através de microchips eletrônicos que podem ser usados para estimular células ou para controlar próteses biomecânicas”.[5]

Logo o ser humano impressiona justamente pelas suas ações de não-esquecimento, de não-perda, de não-apagamento. Falhas em seu sistema biológico, químico, neural, motor, são reinvocados “artificialmente” justamente para que sempre se reafirme sua condição de humano e isso levando em consideração todos os processos a que está preso o seu desenvolvimento físico e mental. Então voltamos a nossa indagação inicial: se os humanos se preocupam tanto com sua existência e recobrem essa preocupação produzindo incentivos para continuar existindo, será que o fazem porque sabem, inconscientemente, que esquecem?

Se observarmos alguns elementos que constroem a memória humana, percebe-se que o momento mais significativo no processo de aquisição do conhecimento é a evocação. Humanos evocam sua sobrevivência. Humanos são racionais e criativos. A evocação é a ação que reinaugura as informações de forma a resolver problemas e após passar por diversas transformações dentro do sistema hipocampal (cérebro) humano. É a evocação, então, o momento final em que seu produto principal – a informação - torna-se útil.

Mas nem todas as conexões pelas quais passam as informações são processadas dentro da mente humana de forma a terem um sentido ou um significado claro. Atraídas por todos os cinco sentidos, as informações se incorporam ao fluxo neural tendo especificidades, ou seja, convocam ao funcionamento memórias de trabalho, memória de curta duração e memória de longa duração de diversas maneiras[6]. Quaisquer problemas nesse fluxo provocarão perdas, diluição da força dos neurotransmissores e, automaticamente, diminuição dos reflexos instauradores da própria evocação. As informações perderão seu significado e tornar-se-ão impressões, no máximo. Com certo grau de radicalismo, muitas delas jamais se reapresentarão, podendo, no máximo, serem elementos-construtores-base da bainha de mielina de forma a unir e significar outras tantas informações. Essa é a nossa perspectiva do esquecimento.

Se entendermos que os processos mnemônicos são diferentes entre humanos e máquinas, algumas “chaves” são interessantes de observar: a partir de um DEL*.* apaga-se todo um sistema, ou a partir de um FORMAT C: zera-se tudo o que foi gravado em computador. E no humano, isso é uma atitude impensável, a não ser em casos de incisão externa, como a lobotomia, “transeção metódica de ou dos lobos frontais, indicada em certas condições mórbidas mentais, como síndromes esquizofrênicas, ou em caso de dores intratáveis de outra forma – intervenção proposta pelo neurologista português Egas Muniz (1874-1955)”[7].

Outra “chave” interessante é o OPTIMIZE, esse sim é um processo puramente maquínico. OPTIMIZE (ou SCANDISK) atravessa toda a memória computacional reorganizando e realocando, seus elementos, de forma linear. Optimizar a máquina é a ação de pegar todos os elementos gravados no dia-a-dia do usuário (essa gravação é feita de forma aleatória, ou seja, o computador vai encontrando um melhor lugar para cada informação, e não necessariamente uma ao lado da outra), alocá-los em ordem de semelhança, lado a lado, e corrigi alguns erros, no intuito de aumentar a velocidade e o desenvolvimento da máquina. Humanos não têm o processo OPTIMIZE para as informações que recobrem suas memórias. Humanos não têm a possibilidade de parar de pensar, raciocinar, significar e sentir. Para isso, humanos têm mecanismos de defesa como, por exemplo: projeção, introjeção, racionalização, idealização, sublimação, simbolização, intelectualização e negação. Estes, além de sustentarem a diferença entre cada indivíduo, exprimem tipos de esquecimento e, por sua vez, fazem parte do processo adaptativo humano. Mas essas construções serão determinadas aleatoriamente a partir de experiências humanas de viver no e com o mundo exterior e que jamais serão alinhadas sob quaisquer aspectos.

Em algumas notícias veiculadas pela Internet, sabe-se que alguns cientistas ingleses pretendem scanear as informações gravadas na mente humana e passá-las para o meio magnético e vice-versa. Logo se fala em banco de memórias. Logo falamos da possibilidade do esquecimento. Logo se fala do medo de esquecer, sentido natural diante de qualquer evolução: não é possível guardar todas as informações, muito menos todos os aprendizados. Humanos, por fim, só querem lembrar porque estão sempre esquecendo.

Lembrar passa a ser scanear uma informação significativa.
Esquecer passa a ser perfil da personalidade de cada um.
Acessamos lembranças na Internet.
Aceitamos esquecimentos com a Internet.


Profa. Claudia Nunes
Especialista em Tecnologia Educacional/UCAM
Mestranda em Educação / UNIRIO


*Texto publicado no jornal interno do Instituto A Vez do Mestre, “Comunicandido”, na semana de dia 23 a 27 de janeiro de 2006;e no livro "Neurociência e Transtorno de Aprendizagens" da Profa. Dra. Marta Relvas - WAK


[1] Bloqueios são reflexos de experiências do homem com a realidade exterior muito graves e que têm como uma de suas funções tornar esse mesmo homem diferente quando entre os seus pela forma como vai construindo a própria personalidade.
[2] Memória como grupo de informações com um mínimo de significado ou sentido gravadas na mente ou gravadas em chips de computador.
[3] Nesse sentido, o DEL humano seria os remédios, além dos bloqueios conscientes.
[4] http://www.epub.org.br/cm/n03/editoria3.htm
[5] Ibidem
[6] Segundo Izquierdo, “recriar uma memória para evocá-la implica conclamar à ação o maior número possível de sinapses pertencentes aos estímulos condicionados dessa memória (pág. 58).
[7] Referência: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa 1996.

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