Desde criança ela tinha fascínio pelo Egito: era o que mais estudava em História. Esmerava-se em copiar desenhos, usava roupas iguais às de Ísis, colecionava escaravelhos. Assim foi envelhecendo, imaginando-se serpente, desenvolvendo um caráter esfíngico em seu corpo piramidal. De repente começou a juntar dinheiro. Ninguém entendia para quê: tinha casa boa, vida estável. Aposentadoria? Doença? Queria ficar rica? Ela continuou juntando, até que foi à cidade e comprou a passagem para o Egito. Meio século depois, os arqueólogos não conseguiram explicar o esqueleto daquela mulher, deitado na tumba do faraó, a seu lado.
O sonho de consumo era esquiar. Via-se em roupas quentes, a descer montanhas, rasgando a brancura virginal da neve. Em sono voava pelos Alpes, que nunca visitara, em piruetas sinuosas. Ganhou de aniversário a passagem para Aspen e para lá se mandou, com o sorriso marcial de quem cumpre a missão. Alugou a roupa, experimentou cuidadosamente o esqui, tomou um golpe de conhaque e comprou a passagem no teleférico, para o ponto mais alto da montanha. No dia seguinte ainda estava abraçada a uma árvore, tremendo, quando o helicóptero de resgate chegou.
Regina, desde a infância, tinha muita imaginação. Na escola ou no playground do prédio sempre inventava as brincadeiras. Gostava, mesmo, era de ficar criando histórias na cabeça, mentalizando as personagens e seus destinos. De vez em quanto via TV, porém mudava o final dos filmes se não concordava com os roteiros. Cresceu, formou-se, tornou-se jornalista. Compensava a miséria diária das ruas com a velha mania de criar situações. Não escrevia, a não ser no jornal. Numa noite, foi a brisa a entrar pela sala que trouxe Marion e os dois rolaram loucamente na dança da paixão. No dia seguinte, o pano vermelho que secava à janela os levou para Avalon.
Adorava Lilian. Tinha sido sua única namorada. Apaixonara-se desde o primeiro momento, ao vê-la voltando da praia: pele morena, olhos azuis e longos cabelos loiros. Usou a experiência da idade para cortejá-la. A família pediu tempo e, quando Lilian completou 18 anos, começaram a mandar os convites; um mês depois embarcavam para a lua-de-mel no Caribe. A vida continuou mel: cada vez mais seduzido, fazia as vontades da mulher. Comprava flores e bombons diariamente. Dez anos depois pediu divórcio, pois não suportava mais viver com aquela mulher deformada pelos 130 quilos.
Sempre quis ver discos voadores: sentia-se atraída pelo mistério, acreditava em outras vidas. Sua música favorita era “London, London”, que cantava enquanto trabalhava, esquecida do espaço. Todos sabiam de sua mania em Brasília, onde vários já tinham mantido contado por telepatia, visto a luz curva e os pontos brilhantes. Insistiu muito com a amiga, para que a levassem ao local. A emoção transbordava e o coração pulava, depois de três horas no cerrado, caminhando em busca do sonho. Mal teve tempo de gritar, quando se viu estuprada por dez bandidos, fugidos da penitenciária próxima.
Sandra era pessoa comum. Família classe média, mãe viúva, dois irmãos. Não pudera estudar, contentava-se em ser secretária. Ganhava para a vidinha simples, sem luxo. Não casara, nem queria mudar a rotina; não se imaginava rodeada de filhos, panelas. Naquela tarde Sandra saiu do trabalho e foi ao mercado, antes de seguir para casa: latas, plásticos, prateleiras e prateleiras. Suava, entre a lista de compras e a carteira de dinheiro, empurrando o carrinho cheio. Filas gigantescas à frente, ela aguardava pacientemente em procissão; nem reparou a caixa de ovos a se abrir: de dentro saiu um cavalo alado, que a levou para a nuvem. Horas depois começou a chover.
Entre os amigos o apelido era “Troglô”, mas se chamava Laerte. Adorava as lutas, não perdia uma: boxe, karatê, judô, sumô, vale-tudo. Na academia malhava horas, socava sacos, dava golpes no ar. A mulher, frágil, aceitava, resignada: macho devia ser forte, briguento. À noite cuidava dos cortes e feridas trazidas da rua. A grande oportunidade veio no jornal: um torneio para amadores, com perspectiva de profissionalização. Os combates diários foram sendo vencidos. Na véspera da final, Laerte ainda tentava explicar à delegada a razão para a mulher estar no hospital, fazendo exame de corpo delito, entre hematomas e dentes quebrados.
Era ambicioso. Nascera pobre, mas queria aparecer na TV, freqüentar colunas sociais. Começou comprando um galpão, onde dava aulas para a criançada miserável. Cobrava cada centavo de seu espaço e tempo. Meteu-se com marginais, enquanto o dinheiro saltava. Logo conseguiu uma cadeia de colégios. Já não se lembrava da infância, no iate de luxo ou no carro importado, a não ser pelo sonho de ter um chafariz no seu jardim. Chamou o engenheiro e o projeto se fez. A inauguração foi linda, mas ele sumiu: enquanto fumava o charuto, foi-se transformando em líquido e entrou na fonte, jorrando mil cores e sons.
“Mulheres são dissimuladas”, pensava. “Elas fingem gozar”. Vivia atormentado, sem saber se as parceiras, com quem se relacionava, verdadeiramente tinham orgasmo. Quanto maior o tormento, mais as assediava. desdobrava-se no ato, levava as mulheres à exaustão, cobrava as dúvidas em infindáveis perguntas. Ah, o ponto G! Teria tocado? Até que Luiz encontrou Dora. Apaixonou-se, quis casar. Mas antes precisava da certeza. Foram para um motel e a noite seria dos anjos e demônios: champagne, massagem, piscina. Envolveu a amada, cobriu-a de beijos, despiu-a, penetrou e morreu de enfarte.
Olhava aquela mulher no palco e a desejava loucamente. Bebia cada palavra por ela proferida, guardava pobres pedaços de jornal onde seu nome brilhava, sonhava fantasias arrebatadoras. “Deusa”, pensava ele, “não é para mortais”. Como sombra a seguia, cada passo, itinerante pelas casas de teatro, na expectativa de um dia ser notado. Esqueceu-se de si em função dela. Foi numa segunda-feira, quando o teatro não funcionava: saiu para jantar e lá estava ela, em verde e esperança. Aproximou-se, sentou-se, conversavam. Hoje, ator consagrado, ainda não entende o tiro que a matou no restaurante.
Nascera com a vocação para o desenho. Menino ainda, fazia figuras na areia, enquanto a mãe inchava de orgulho. Os cadernos de escola quase não tinham apontamentos: eram caricaturas, formas livres, arabescos. Com o tempo, comprou um computador e perdia horas entre quadrados e círculos, montando trabalhos. Entrava em todos os concursos, até que ganhou o prêmio: três meses nos EUA, com tudo pago. Embarcou, com a esperança na mala e o patrocínio no bolso. Os controladores de vôo não entendem como o avião desapareceu, sem deixar vestígios, no Triângulo das Bermudas.
Os telefonemas eram constantes. A voz desconhecida a alegrava, abalava seu sono, alimentava fantasias. Logo descobriu o nome e endereço. Bateu à porta, vieram a mulher e os dois filhos: o marido, aviador, viajara. Ficou desnorteada. Mas ele voltou, continuou a telefonar, falava em amor. Acostumaram-se às manhãs de quarta-feira, na estação rodoviária. Um dia ele insistiu: queria comemorar os cinco anos de relacionamento. Seguiram pela estrada e pegaram o Concorde. Hoje vivem felizes, em Paris.
Aquele índio não era da mata e também não descera de um objeto resplandecente: não, ele surgira do absoluto nada, para atormentar a vida de Karla, enquanto deitava. Com o tempo, ele passou a aparecer no trabalho, a seu lado no carro, na hora das refeições, nos livros que lia. Karla não sabia o que fazer: só ele, silencioso, a olhar. Ela, no entanto, sentia a ameaça e não lutava para tirá-lo da idéia. Com o tempo, passou a gostar de sua companhia. Quando já se acostumara a sentir o calor de seu corpo, ele sumiu. Dizem que foi visto pela última vez em um espelho quebrado.
Angel era todo luz: olhos, cabelo sorriso. Mas carregava a dor como quem suporta uma penitência. Seus dias transcorriam entre quatro paredes, desejando a paz. Quanto mais se dilacerava em busca do equilíbrio, maior a angústia. Os amigos se foram, a família sofria. Foi ficando só e sem saída. Cada vez falava menos. Lia jornal em seu quarto, na companhia do fiel cão. Ou então trabalhava, para esquecer a vida. Um dia Angel saiu para cortar o cabelo. Olhou para o infinito azul e voou. Pousou de volta, abraçou uma flor e labaredas subiram: transformou-se em chama e encontrou a felicidade.
Tinha fetiche por sapatos. O armário contabilizava 70 pares, fora os mantidos em desuso. Nunca os jogava fora, nem podia: lembravam momentos especiais; pelos sapatos ia recordando os saltos, tropeços, chutes e tombos da vida. Com cada namorada mantinha um ritual diferente: Márcia ficava deslumbrante na sandália dourada, Beth era irresistível na bota vermelha, Jane triturava seu coração naquele salto alto preto. Envelheceu, colecionando os sapatos, catalogados e bem cuidados pelo engraxate contratado. Um dia morreu e foi enterrado descalço, porque o caixão era pequeno.
Era louca por gatos, principalmente filhotes. Onde passava, logo os bichanos a cercavam, enrolando-se em suas pernas, lambendo a mão, querendo o colo. Acostumara-se a todos; no caminho para casa ia recebendo o carinho e retribuindo o afago. Mas apaixonou-se por um, negro, de olhos frágeis: dedicou-lhe tratamento especial, até que não mais resistiu e levou-o para casa, cercou-o de cuidados e afeto. Naquela quinta-feira, porém, foi diferente: à noite não mais havia o gato, a casa estava vazia, a janela aberta. A campainha tocou e um jovem de olhar frágil a abraçou e passou a viver a sua vida.
Foi numa praia deserta, em pleno verão de 40º, que viu o urso pela primeira vez. O pêlo branco faiscava sob o sol. Não se aproximou por medo, mas encantou-se com a beleza do animal. Desde então sonhava constantemente com ele: viu-se perseguida, querendo correr, e acordava sem ar. Mas gostava de sentir a pata sobre seu corpo, quente e peluda. O tempo ajudou-a: esqueceu-se por completo. Meses se passaram e ela resolveu definitivamente casar-se com Júlio, namorado de tantos anos. O casamento foi alegre e a noite, numa cabana de praia, transcorreu feliz. No dia seguinte, ela acordou com calor: Júlio sumira e um tapete de urso a abraçava, em sono sereno.
Como saber se ela o traía? A desconfiança era constante, por causa daquele brilho no olhar. Não suportaria perdê-la: um fracasso existencial inadmissível! Começou a mimá-la com presentes e companhia constante, para neutralizar o rival. Depois instalou escuta no telefone. Nenhum indício, apesar do brilho. Contratou detetive caro, mas o resultado foi nulo. Então, resolveu largar o emprego para segui-la. Perdia os dias escondido, em busca do delito. Nada. Por fim, tomou a decisão: enquanto ela dormia, entrou em seus sonhos e só então descobriu que seu rival era ele mesmo, mais moço, antes de casar.
CLAUDIA NUNES