A porta bateu: pow! Assustada Alma olha para trás e pensa: “até o vento me detesta...” Depois de um dia movimentado e tenso, a última coisa que Alma deseja é sua humanidade. Ela quer o ‘nada’. Ela quer se sentir ‘cadeira’, ‘mesa’, aliás ela quer se sentir um ‘tijolo’ jogado no fundo de uma construção inacabada de um bairro ultra-perigoso. Nada de humanidade, cujo conjunto de arrepios surge quando nos emocionamos, pensamos ou desejamos qualquer futuro. Aos 60 anos, ela tinha o luxo de se entender como uma ‘porta’ que, silenciosa, abre e fecha todos os dias, sem pestanejar. Alias pestanejar é lembrança da sua humanidade. Ela não quer nem pestanejar.
Toda a rotina da volta para casa estava acontecendo sem erro. Ela não tropeçou em nada! Nada fora alterado por nada! “Ufa, que bom o nada!”. Por costume, olha os retratos espalhados pelos quartos e paredes de casa com alegria, e pensa: “todo mundo está longe, posso deixar de ser eu e suspirar sem dar explicações...” Anos a fio viveu as atrapalhadas do crescimento dos filhos sem recusas e com muitas promessas. Ela sabia que dera à luz promessas para outro mundo e dela fora exigido desbastar cautelosamente as gorduras como limites, educação, moral, valores.
Sua humanidade passou a vida ocupada e hiperativa tratando de cordões umbilicais com paciência e carinho. Hoje, a sensação de que tudo isso fora um vislumbre de tão rápido. Hoje há dois pratos, dois garfos, duas colheres e duas canecas em cima da pia. Depois dos vôos afetivos e filiais ‘para todo o sempre’, sua casa e sua vida tornaram-se só dela... tornaram-se só ela.
Alma e sua humanidade foram feridas muitas vezes: mortes, discussões, ironias, separações, desentendimentos; mas agora, o melhor dos mundos: suas roupas se espalhavam pelo quarto e só arrumaria se o tempo ajudasse. De pijama, fez um chá e ligou o rádio. Não queria a companhia paralisante da TV, queria as opções libertárias e libertinas do rádio. “Que bom a falta de humanidade, por opção” – pensava ela. Em sinergia com os barulhos dos andares, especulava: “Enfim, eu não sou mais eu!” Um sorriso largo alcançou suas orelhas de forma infantil. “Convivo com inúmeras dificuldades, mas convivo possessivamente com minhas melhores superações!” pensou ela.
A névoa vinda do chá desarticulou seu olhar e ela se introspectou. “Tantas pessoas, tantas atitudes, tantas emoções e, no fim, passei a vida amante de mim mesma, que sorte!”, ela concluiu e continuou: “Engraçado é que tudo foi amor. Tudo se fez (e faz) em nome do amor. No entanto, no amor, há dores enormes, magoas eternas, decepções inimagináveis... para quê?”.
Ao mergulhar em sua memória, Alma se desconhece: está com medo e perdeu as articulações físicas e verbais. É puro marionete em meio à força motriz da racionalidade anterior cuja fonte está esquecida. Mãe, filhos, marido, colegas de trabalho, amigos, amantes, todos a ultrapassam como flashes do que entende por amor, porém todos são passantes, inabitáveis e opacos. Alma está uma aquarela recheada de composições de um futuro recompensador que nunca chegou. Isso não desagrada, é um fato, e Alma reconhece.
Sua vida foi feita de buscas, suspenses e gestos teatrais. Essas inaugurações não se deram (ou dão) sem erros, deslizes e paradas obrigatórias, mas fincam preferências e determinam conquistas na pele mais sensível. Alma se perdeu porque quis se encontrar. Alma indeterminou seus motivos e se assumiu no mundo dos fulanos e dos beltranos sem rótulos. Tudo isso era melhor do que permitir a ascensão dos arrependimentos cruéis que solapam a simplicidade que é optar por sentir e não sentir o que for para viver novos momentos. Alma está enevoada e perplexa consigo mesma: ‘Nossa! Sou ninguém e todo mundo! Como posso?”.
Há um furor emocional lhe alcançando, lhe envolvendo e sem culpa, ela se esclarece. Sem pestanejar, levanta de pronto, põe uma roupa branca e vai jogar flores para Iemanjá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário