O cientista condena o construtivismo
como método de alfabetização e diz como os estudos com cérebro podem ajudar
disléxicos a ler
FLÁVIA YURI - Uma das tarefas comuns da
ciência é desvendar a complexidade por trás de atividades aparentemente
simples. O matemático e neurocientista francês Stanislas Dehaene dedica-se a
decifrar as mudanças cerebrais causadas pelo ato de ler. Para ele, a leitura moldou
o cérebro humano e preparou-o para assimilar habilidades impossíveis de ser
aprendidas por iletrados. Em seu livro Os neurônios da leitura (Editora
Penso, R$ 71), ele afirma que o conhecimento do impacto da leitura no cérebro
pode melhorar métodos de alfabetização para crianças e dá exemplos de como esse
conhecimento tem auxiliado pessoas com dislexia. E mais: Dehaene diz que a
pedagogia do construtivismo, altamente disseminada no Brasil, pode ser ineficaz
para o ensino da leitura.
NEURÔNIOS EM ATIVIDADE
O neurocientista Stanislas Dehaene em
congresso na França. Há 20 anos, ele estuda o impacto dos números e das letras
no cérebro (Foto: divulgação)
ÉPOCA
– O que suas pesquisas sobre o impacto da leitura no cérebro revelaram?
Stanislas Dehaene – Constatamos que
nosso cérebro aprendeu a ler a partir de uma reciclagem dos neurônios. Isso
quer dizer que neurônios usados na leitura antes eram empregados em outro tipo
de tarefa. Nosso cérebro de primata não teve tempo de amadurecer para aprender
a ler. A leitura só foi possível porque conseguimos adaptar os símbolos a
formas já conhecidas há milhares de anos. Diferentemente do que disse John
Locke, nossa cabeça não é uma página em branco pronta para aprender qualquer
tipo de coisa. Esse é um exemplo de como a cultura se adaptou às possibilidades
de nossa mente. Concluímos que a leitura despertou em nosso cérebro a
capacidade de perceber diferenças sutis e aumentou nossa capacidade de
memorizar informações. É interessante observar que o cérebro mobiliza a mesma
área para a leitura de qualquer idioma. O processamento da leitura do chinês ou
do hebraico, da direita para a esquerda, acontece na mesma região que
decodifica o inglês, o francês e o português.
ÉPOCA
– O senhor disse que a leitura usou uma parte do cérebro antes destinada a
outras funções. Que funções eram essas e o que aconteceu com elas?
Dehaene – Antes de aprendermos a
ler, usávamos essa parte do cérebro para reconhecer formas de objetos e de
rostos. Se você escanear o cérebro de pessoas que não leem e comparar com as
alfabetizadas, a identificação de rostos para as iletradas mobiliza uma parte
maior do cérebro que a mesma função nas alfabetizadas. Existe certa competição
de competências na mesma região do cérebro. É como se ele tivesse de abrir
espaço para a leitura.
ÉPOCA
– Isso quer dizer, nesse exemplo, que o cérebro letrado passou a usar um número
menor de neurônios para a mesma função? Isso tem impacto na qualidade da
função?
Dehaene – Não temos provas
científicas de que ocorra perda de competência. Um mesmo neurônio pode ter um
número desconhecido de sinapses, de acordo com o estímulo do ambiente. Mas essa
é uma suposição lógica. Afinal, temos de dividir um mesmo número de neurônios
em várias atividades. Nosso grupo de pesquisas na Amazônia mostrou que o
cérebro de pessoas que não leem tem habilidades relacionadas à noção espacial e
de matemática muito avançadas. Não temos dados científicos que provem que eles
sejam melhores nessas tarefas porque não leem. Mas essa é uma possibilidade.
ÉPOCA
– De que forma suas descobertas podem auxiliar no processo de educação?
Dehaene – Verificamos, por meio de
várias experiências, que o método mais eficaz de alfabetização é o que
cha-mamos fônico. Ele parte do ensino das letras e da correspondência fonética
de cada uma delas. Nossos estudos mostraram que a criança alfabetizada por esse
método aprende a ler de forma mais rápida e eficiente. Os métodos de ensino que
seguem o conceito de educação global, por outro lado, mostraram-se ineficazes. (No
método global, a criança deve primeiro aprender o significado da palavra e,
numa próxima etapa, os símbolos que a compõem.)
Jogos simples de leitura, de rimas
e de troca de sons podem ajudar crianças com dislexia a ler
ÉPOCA
– No Brasil, o construtivismo, que segue as premissas do método global para a
alfabetização, é amplamente disseminado. Por que os sistemas que seguem o
método global são ineficazes?
Dehaene – Verificamos em pesquisa
com pessoas de diferentes idiomas que o aprendizado da linguagem se dá a partir
da identificação da letra e do som correspondente. No português, a criança
aprende primeiro a combinação de consoantes e vogais. A próxima etapa é
entender a combinação entre duas consoantes e uma vogal, como o “vra” de
palavra. Essa composição de formas, do menor para o maior, é feita no lado
esquerdo do cérebro. Quando se usam metodologias para a alfabetização que
seguem o método global, no qual a criança primeiro aprende o sentido da
palavra, sem necessariamente conhecer os símbolos, o lado direito é ativado.
Mas a deco-dificação dos símbolos terá de chegar ao lado esquerdo para que a
leitura seja concluída. É um processo mais demorado, que segue na via contrária
ao funcionamento do cérebro. Num certo sentido, podemos dizer que esse método
ensina o lado errado primeiro. As crianças que aprendem a ler processando
primeiro o lado esquerdo do cérebro estabelecem relações imediatas entre letras
e seus sons, leem com mais facilidade e entendem mais rapidamente o significado
do que estão lendo. Crianças com dislexia que começam a treinar o lado esquerdo
do cérebro têm muito mais chances de superar a dificuldade no aprendizado da
leitura.
ÉPOCA
– É possível quantificar esse atraso de leitura que o senhor menciona?
Dehaene – Quanto mais próxima for a
correspondência da letra com o som, mais fácil para um indivíduo automatizar a
ação de ler. Português e italiano são idiomas muito transparentes, pois cada
letra corresponde a um som. Inglês e francês são línguas em que a
correspondência de sons pode variar bastante. Pesquisas mostram que, ao ter
aulas regulares, todos os dias, na escola, a criança leva dois anos a mais para
dominar o inglês que para dominar o italiano.
ÉPOCA
– É possível identificar diferenças no cérebro de quem consegue ler palavras e
frases, mas tem dificuldade na interpretação de textos (no Brasil, eles são
conhecidos como analfabetos funcionais) em relação a alguém que lê e interpreta
o conteúdo com fluência?
Dehaene – Não identificamos isso em
pesquisa de imagens. Mas a dificuldade que algumas pessoas têm de interpre-tar
o que leem ocorre basicamente porque elas ainda não automatizaram a decodificação
das palavras. Decodificar pede esforço para quem não tem essa função bem
desenvolvida. Isso mobiliza completamente a atenção e os es-forços de quem está
lendo, a ponto de não conseguir se concentrar na mensagem. A solução para
melhorar a in-terpretação de texto é automatizar a leitura. Por isso, é
importante que crianças pequenas leiam de forma regular até que isso se torne
uma rotina. As crianças começam a interpretar textos com eficiência depois que
a leitura se torna um processo automatizado.
ÉPOCA
– Aprender a ler partituras tem o mesmo efeito para o cérebro que ler palavras?
Dehaene – As áreas do cérebro
usadas para ler letras não são exatamente as mesmas usadas para decodificar
mú-sica. Não há muitos estudos sobre a parte cerebral usada no aprendizado de
música. Mas há diversas pesquisas sobre o efeito da música na vida das
crianças. Crianças que aprendem música desenvolvem habilidades escolares
avançadas, especialmente no domínio da leitura. Elas têm mais facilidade para
se concentrar. Aprender música aumenta os níveis de inteligência (Q.I.).
Aprender música é uma forma excelente de desenvolver o cérebro, espe-cialmente
o de crianças.
ÉPOCA
– Pessoas com dislexia leem de forma diferente ou apenas mais devagar?
Dehaene – Pessoas com dislexia tendem
a ter problemas com a conexão entre letra e som. É muito difícil para elas
entender essa ligação. Em parte, porque não podem distinguir muito bem as
diferenças dos sons da língua. Elas têm problemas com fonologia. Não com o som
de letras como a, b, c e d. Mas com o som da linguagem, como dã, bã e pã. Há
diferentes tipos de dislexia. Há pessoas que têm dificuldade em enxergar as
letras em determinados lugares da palavra ou em visualizar símbolos
específicos. O que os disléxicos têm em comum é a dificuldade em criar o mapa
dos símbolos e dos sons.
ÉPOCA
– Sua pesquisa pode ajudá-los de alguma forma?
Dehaene – Antes não era óbvio que a
maioria dos disléxicos tinha problemas com os sons da linguagem. Agora que
sabemos disso, começamos a trabalhar com jogos de reabilitação com ótimos
resultados. É possível ajudar as crianças com dislexia com jogos de leitura, de
rimas ou brincadeiras de mudar sílabas. Pode-se brincar de trocar o som de
“bra” de Brasil por “dra” ou “pra”. Vimos que brincadeiras orais fáceis têm
facilitado o aprendizado.
ÉPOCA
– Que resultados esse tipo de exercício já produziu?
Dehaene – Constatamos com exames de
imagem que partes do cérebro não usadas em pessoas com dislexia passam a ser
exercitadas com esse tipo de atividade. Isso as ajuda a perceber os sons da
linguagem, o que é muito importante para o aprendizado da leitura. Para surtir
resultados, é importante aplicar esses jogos todos os dias, de forma intensiva.
ÉPOCA
– Se o cérebro dos disléxicos é organizado de forma diferente, isso sugere que
eles possam ter outras habilidades que alguém sem a dislexia não tem?
Dehaene – Essa é uma questão
interessante. Assim como há a possibilidade de perdermos algumas habilidades
quando aprendemos a ler, existe a possibilidade de o cérebro disléxico ter
facilidade com algumas áreas. Ainda faltam pesquisas para podermos constatar
isso. Mas estudos sugerem que o senso de simetria do disléxico pode ser mais
desenvolvido, e isso ajuda em matemática. Sabemos que há muitos disléxicos que
podem ser bons em matemática. Estudos sugerem que eles podem enxergar padrões
sofisticados com mais facilidade.
ÉPOCA
– Pode haver gênios em matemática que não sabem ler?
Dehaene – Isso é algo muito, muito
raro. Pode haver pessoas iletradas muito boas em cálculos. Mas elas não serão
gênios em matemática sem ler. Para avançar em matemática, a pessoa precisa
entender diferenças sutis num nível muito sofisticado. É justamente a percepção
dessas diferenças sutis que a leitura ativa no cérebro. Ler é uma habilidade
extraordinária que pode transformar o cérebro e prepará-lo para outros níveis
de aprendizado. Não dá para ir muito longe sem leitura.