Edith Ackermann, psicóloga, discípula de Jean
Piaget e pesquisadora da relação entre educação e novas tecnologias do MIT, diz
que as crianças ganharam um novo suporte mediador da aprendizagem. E que isso
não é ruim.
Maria Celeste Oliveira
Mesmo num mundo onde
a informação é abundante e os meios de comunicação convencionais são
potencializados por meios digitais, a aprendizagem está necessariamente ligada
ao envolvimento com um objeto ou uma situação na qual o aprendiz esteja imerso.
Computadores, laptops e tablets podem ser enriquecedores para a aprendizagem,
mas sem a mediação de educadores, o processo corre o risco de se perder e de se
fragmentar. Afinal, o conteúdo puro não significa muito, pois conteúdo e
processo estão imbricados.
Essas são algumas das
idéias da psicóloga Edith Ackermann, professora de psicologia do
desenvolvimento na Universidade de Aix-Marseille 1, na França. Edith, que
durante 20 anos trabalhou no Instituto Piaget - dos quais sete sob o comando do
próprio Jean Piaget -, trabalha atualmente como pesquisadora visitante na
Escola de Arquitetura do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Sua
trajetória é marcada por pesquisas e estudos que envolvem a construção de
conhecimento, muitos dos quais com crianças, e sobre o impacto da programação
de computadores sobre a aprendizagem.
Leia, a seguir, a
entrevista que Edith Ackermann concedeu à Educação, durante sua visita ao
Brasil no início de maio para participar como palestrante do evento
comemorativo dos 30 anos do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied),
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Qual o impacto das tecnologias no ensino e aprendizagem? Por mais que as novas
tecnologias integrem nossas vidas cada vez mais, são necessários diferentes
momentos para que ocorra a construção do conhecimento e para que a criança
continue a aprender. Um deles tem a ver com estabelecer uma relação, uma
conexão, com algo que faça sentido.
Há outro momento
relacionado com o envolvimento; tem a ver com uma imersão, construção. Um
terceiro momento, muito importante, é o que eu chamo de contemplação, ao invés
de reflexão. Utilizo essa terminologia porque não gosto da maneira como os
educadores tendem a criar rituais em torno da aprendizagem: "Vamos
tentar..." ou "Vamos refletir sobre...". Prefiro pensar em
termos de um momento em que a pessoa está com a mente totalmente engajada, e em
outro momento em que ela se coloca fora da situação e a contempla.
Um quarto momento é o
que chamo de reinterpretação. É como o teatro e está relacionado com dar uma
resposta. É uma reinterpretação de tudo o que intriga, que mobiliza uma pessoa.
Há um quinto momento que tem a ver com colaborar com outras pessoas, que é tão
intenso quanto os demais. Cada um desses momentos requer algum tipo de
mediação, porque não existem experiências diretas, não mediadas. Mesmo aquelas
experiências que parecem ser de primeira mão, são, de alguma forma, mediadas
por aquilo que já sabemos, já vivemos. Então, a tecnologia não é,
necessariamente, imprescindível para o aprendizado.
Suas pesquisas enfatizam a programação de computadores
por crianças. Como isso é possível? A programação é a arte e a ciência de criar
condições para que as coisas interajam entre si e com o mundo, por conta
própria. Ela possibilita que as crianças desenvolvam maneiras próprias de dar
comandos e assumir o controle de determinadas situações, na medida em que elas
desenvolvem, por exemplo, meios para que as coisas façam coisas (instruindo-as
a seguir ordens). Quando programam, as crianças também podem animar objetos ou
fazer com que eles interajam com um ambiente, seguindo determinados parâmetros.Nesse
processo, elas podem seguir rumos inesperados e imprevistos pelos adultos. Mas
as tecnologias são um suporte, possibilitam a mediação para processos bastante
enriquecedores. A mediação também pode ser um suporte físico, um lugar, podem
ser pessoas.
É nesse ponto que
entra a última etapa da aprendizagem, um momento que transforma o processo em
um ciclo, num continuum. E esta é parte complicada, porque a coisa mais
difícil, tanto numa sala de aula, quanto em ambientes informais de
aprendizagem, é superar o primeiro obstáculo, a primeira decepção - aquela que
surge depois da inspiração, da confiança de que consigo fazer as coisas. Quando
o primeiro obstáculo real surge, é o que de fato ajuda as pessoas a irem além.
Esta é a coisa mais difícil em educação.
E é neste ponto que a
orientação é necessária, pois como reagir depois da primeira decepção? Nesse
momento, a orientação é muito importante para que as pessoas não se percam,
para que elas mantenham o foco, o horizonte da tarefa que estão realizando.
Não basta entregar um laptop ou um tablet para cada
criança?
Não, não funciona assim. Durante muitos anos trabalhei no projeto Um Computador
por Aluno [concebido por Nicholas Negroponte, também do MIT] e ainda acho
interessante a ideia de distribuir laptops, desde que não se presuma que as
crianças vão aprender sozinhas, sem um professor. Esta é uma ideia equivocada.
Mas o professor tem de partir daquilo que a criança sabe, caso contrário não há
aprendizagem.
Quando trabalhava com
Piaget, aprendi que informação não é conhecimento, que inteligência não
processa informação e que a mente humana não funciona como um computador,
codificando informação e a arquivando na memória, como se fosse uma biblioteca
que podemos acessar quando necessitamos. A mente humana funciona de um modo
muito mais orgânico, pois existe um paralelismo entre os processos psíquicos e
físicos. Piaget diz que o conhecimento é experiência, mas é a experiência na
qual uma pessoa está imersa, após ter vivenciado várias instâncias dessa
experiência, como variações sobre o mesmo tema.
Como fica a escola nesse cenário? Nenhuma instituição
ou organização pode se responsabilizar, de maneira isolada, pela educação de
uma criança no mundo atual. É difícil dizer o que as escolas devem ser, mas
certamente não se trata de infraestrutura luxuosa ou apenas de tecnologia
avançada. Uma escola pode funcionar até sem eletricidade. O que importa é a
existência de um lugar de encontro. A aula pode acontecer até debaixo de uma
árvore.
Existe hoje uma valorização muito grande do conteúdo.
Como relacionar isso com a construção da aprendizagem? Eu faço parte
de um grupo de estudiosos que não gosta de separar o conteúdo do processo. Ao
mesmo tempo vivemos num contexto em que as maiores universidades do mundo estão
distribuindo o conhecimento que produzem na forma de conteúdo. Mas o acesso ao
conteúdo, mesmo às aulas dos maiores professores, não assegura nada. Esse
conteúdo só tem alguma utilidade para aqueles que têm algum grau de organização
própria, que souberem como utilizá-lo.
O que está em questão
é aquilo que Seymour Papert [matemático do MIT, criador da linguagem Logo nos
anos 1970 e um dos maiores teóricos sobre o uso do computador na educação] diz:
pensar é estar pensando sobre alguma coisa relevante. Essa coisa relevante é,
de fato, o fenômeno que o indivíduo está questionando ou sobre o qual está
aprendendo.
Então o interesse de um menino em videogames não é
necessariamente ruim?
Não, de fato, não é. Os jogos têm a particularidade de criar um ambiente seguro
no qual a criança sabe que pode errar. Acredito que as crianças gostam de
videogames porque sabem que são uma encenação. Enquanto jogam, elas sabem que
podem voltar, repetir o processo até obterem sucesso.
Nesse sentido, está havendo um debate sobre as habilidades
que as pessoas devem ter no século 21. Sim, com a perspectiva dos adultos de
definirem o que as crianças devem saber para serem bem-sucedidas no mundo
contemporâneo. Nos Estados Unidos, existe todo um enquadramento no sentido de
combinar conteúdos com determinadas habilidades, expertises e alfabetizações
para produzir determinados resultados.
Enquanto isso, estão
sendo forjadas novas culturas de participação por meio de tecnologias, que dão
origem a novos tipos de expertises técnicas, em áreas como o vídeo digital,
animação, design de moda. Vivemos numa nova ecologia midiática, um ambiente
híbrido no qual vivemos e aprendemos, em que transitamos de livros para o
Facebook. São várias formas de engajamento, as formas como as crianças (e as
pessoas responsáveis por sua educação) navegam, habitam, renovam esses
ambientes. As pessoas não vivem em um único canal: virtual ou físico. A
tecnologia não está competindo com as outras dimensões; elas coexistem.
Há riscos nesse processo? Podemos aprender
muito quando observamos como as crianças se relacionam com as tecnologias. Há
estudos que mostram que as novas gerações estão desenvolvendo uma relação
diferente com o mundo e com a aprendizagem. Um exemplo é a cultura de
compartilhamento. Muitas vezes, os "nativos digitais" disseminam suas
ideias e criações antes de elas estarem totalmente formatadas, difundindo uma
cultura de colaboração, de trabalho em equipe.
Mas há dimensões às
quais é preciso ficar atento. A escrita passou a ser entendida como uma
justaposição de fragmentos recortados e colados ou como uma combinação de
texto, imagem e som. A leitura se tornou a marcação de um texto ou extrair um
trecho para ler mais tarde. A edição passou a ser vista como um meio de
criação. Isso impõe um desafio enorme aos educadores, que têm de lidar com uma
situação que eles consideram plágio.