domingo, 1 de março de 2015

MICROCONTOS 36, 37, 38, 39, 40

36 O amor não está no ar. Vivemos em um mundo de simulações emocionais e nem os sonhos se salvam. Sonhar é inútil: é passar o tempo sem dar conta que o tempo ignora nossos desejos e vontades. Parece até que os sonhos são referências de um mundo impossível e uma forma de se acovardar da vida. Sonhar custa muito porque exige foco em sua realização. E FOCO é o que se perde quando os acontecimentos fogem à nossa vontade ou determinação. Somos soberbos demais! Nesse processo, pouco aguentamos os desvios ou as obstruções. Diante destes eventos, reações de toda sorte e a aprendizagem na esquina de tudo, na lateral de nossa passagem. Lamentável... Lamentável... Aprender deveria ter o seguinte reconhecimento: há quedas, desilusões, cansaços, deslizes e muitas, muitas dúvidas; mas ir em frente é o básico. Vamos além do foco, isso se chama META. Necessário saber que, no mundo, sobreviver SEMPRE se dá por adaptações constantes, INCLUSIVE dos sonhos. Quem disse que tudo deve acontecer como imaginamos? Somos um conjunto de todas as nossas vivências e, nestas, múltiplos fatores podem intervir e modificar sonhos, focos, metas e OBJETIVOS. Esses elementos sempre existirão, mas as formas pelas quais poderão acontecer, ah, isso muda muito! Sonhar, portanto, custa muito e o amor ainda não está no ar. Creia: a vida só pode nos apresentar potenciais à ação de aprender a vivê-la quando medos, perigos e sustos são vividos e superados; e quando oportunidades e espaços se abrem às nossas habilidades e capacidades de entendê-las e, de novo, vivê-las sem grades ou algemas sensórias. Então o que fazer? MUDAR DE PLANOS! Pais e mães: não façam planos com as vidas dos filhos. Pais e mães: não façam planos que não possam cumprir. Pais e mães: não façam planos sem a experiência dos mesmos. Filhos são seres de e com dois mundos, e se constituem um terceiro mundo / elemento. Filhos não são a metáfora do outro. Filhos são o OUTRO! E neste 'terceiro mundo' não se tem garantias, não se estabelece seguranças frias, não se dá conta do alcance das suas variadas pontas. Neste 'terceiro mundo', a vida se instala aos poucos, com o tempo e, principalmente com a PARTICIPAÇÃO respeitosa de todos em volta. Pais e mães: mesmo com sonhos e planos, há um ponto de mutação independente de vocês cuja fervura do cotidiano cria ebulições singulares e por vezes assustadoras. ‘Não foi isso que pensei para você!’ ou ‘Não foi assim que lhe criei!’ já sugerem que alguma coisa SEMPRE estará fora da ordem. Cuidado? Sim! Proteção? Sim! Limite? Sim! Controle? Sim! O problema será sempre a participação do prefixo ‘SUPER’ em tudo isso. Isso é o maior dos absurdos: podar sonhos, liberdades, expressões, gestos. Isso, HOJE, é um absurdo! Nem recorram ao argumento: ‘não nos julguem’, pais e mães. Antes de tudo, isso é um alerta: sonhos só morrem porque o amor não está no ar EM CASA! Insistir nas ‘algemas’ é ‘dar murro em ponta de faca’ e ferir a vocês mesmos; é denegrir a beleza e a importância do tempo passando... sempre passando independente das suas vontades. Por que se sentem tão impotentes quando o tempo passa e seus filhos crescem? Eles são filhos de dois mundos, então, são vocês também... Hoje um pai transferiu sumariamente sua filha da escola porque descobriu que a filha adolescente estava namorando e que o ‘dito’ namorado gostaria de pedi-la em namoro EM CASA! Ou, como diz o senso comum, o futuro namorado queria pedi-la em namoro ‘como manda o figurino’. Mas ai o sonho acabou, o amor saiu totalmente do ar e o fruto foi tirado do pé antes mesmo de amadurecer. O celular tocou, o pai avisou: ‘arruma suas coisas, estou indo lhe buscar, você será transferida desta escola hoje’. Sem mais, no meio da aula, o pai a leva para sempre. A loucura do amor ou da conquista do amor interrompida se reflete na perda do discernimento paterno e, principalmente, pela falta de explicação e entendimento da jovem. Não dá para pensar em equilíbrio, afinal, por quê? Uma jovem se faz essa pergunta numa noite sozinha em seu quarto: por quê? Ela nem sabe que o dia poderá surgir com outras oportunidades. Ela só sabe que o dia virá sem seus sonhos e imaginários em par. Ela só sabe que o dia virá trazendo sua incompetência etária ou emocional. Ela só sabe que tem milhares de dúvidas e uma enorme sensação de fracasso. Ela só sabe que os sentidos se perderam. Ela só sabe que não vai acordar...  Claudia Nunes

37 Todo processo terapêutico demanda interpretações. Tal e qual uma mesa de carteado, tudo precisa ser posto à mesa na intenção de provocar efeitos e, lógico, alguma mudança. Positivas? Não sabemos. Alberto também não sabia, mas ele estava lá. De conflito em conflito, vivia agitado da própria ansiedade. Era alpinista, atleta, amante, ator. Tudo vivido numa ferocidade que quase o matara. Um dia, emergência de um hospital, ameaça de morte, enfarte barulhento. Agora terapia: a vida aos pedaços para recompor as próprias emoções e os batimentos cardíacos. Fato claro: não se vive para sempre. E o medo de morrer o colocara ali e numa cadeira de rodas. ‘Por que estou vivo?’ se perguntava. Deitar e respirar. Deitar e sonhar. ‘Alberto, Alberto, acorda, acorda, o helicóptero chegou, os bombeiros chegaram, tome seu casaco, vamos descer a montanha, estamos salvos!!!’. Claudia Nunes

38 O mundo acabou: depois de anos, sexo era tabu. Esther estava envolvida em muitas atividades e funções, mas era mulher. Dentro e fora do casamento, era mulher. ‘Falta alguma coisa...’, pensava. As sensações eram outras; os limites mais curtos; o sexo sem prazer dos tempos de glória e pele lisa. Se menopausa não é castração, o que acontecia com ela? Não havia nada a rescindir: amava o marido. Mas dentro e fora do casamento, era mulher. Irresponsabilidade? Imprudência? Inconsequência? Esther lavava sua louça e pensava: eu me tornei um prato lavado pelo tempo. Era a velhice... Estava velha... Aos 40 anos estava na antessala do próprio ocaso e cheia de sintomas. E a louça não acabava? O que falta? Dentro e fora do casamento, era mulher! “Casa vazia, filhos na escola. Quer saber? Vou ao cabeleireiro!”. Claudia Nunes

39 Sem querer ela se viu só. Sem perceber, muitas ausências. Sem magia, o olhar que procura e não acha ninguém. Agora eram precisos muitos cuidados. Ou era ela, ou era ela. Sem vínculos, sem bengalas, sem opções, ela jazia em casa com suas primeiras decisões. Não adiantava espernear, a vida devia continuar. Quais encantamentos deveria se impor para suportar este momento? Tudo doía demais. Vassoura? Esfregão? Flanela? Iria começar pela limpeza da casa. As tarefas iriam subornar seus pensamentos e fazê-la ir por ir porque ir era melhor que voltar. De aprendiz, ela era, agora, a feiticeira. E voou pelos céus sem nuvens ou certezas. Claudia Nunes

40 Depois do filme, os dois traçaram um rumo: tinham que reinventar a magia do amor. Em silencio, tentavam compreender o comando dos ventos, da grana, das respirações, do sucesso e das contas de casa. Tudo é uma arte em equilíbrio. Enquanto voltavam, o silencio era sua força. Suas mãos se entrelaçavam, mas olhavam estrelas diferentes. Que rumo tomar? Era preciso sair do sono dos justos e entrar no sonho dos loucos. Cada passo era uma audácia sem possibilidade de arrependimento. Numa esquina, um olhar, um sorriso, um beijo. Adeus... Claudia Nunes


MICROCONTOS 31, 32, 33, 34, 35

31 Depois do seminário sobre ‘Doenças em ratos’ na universidade..., Estela se vê vomitando no banheiro da sala dos professores. Ela preferia dissecar ratos a saber o que sabia agora: Lucio tinha outra mulher e, pior, era feliz. Ninguém veio lhe contar. Todos sabiam, mas ninguém veio lhe contar. Ao abrir a porta do auditório, observa a platéia em busca de um lugar. Um casal ‘arrulhava’ entre si o seu amor. Tinha certa aversão a estas exposições acintosas de carinho, mas ninguém se importava. Ao se aproximar de uma cadeira, uma frase lhe tira a respiração: - Deixa me beijar seus brincos, amor... Sente seu corpo e sua memória sendo atacados por este som ancestral. – Lucio... – pensa ela. Mesmo caminhando em busca de um lugar, tudo perde a graça e o sentido. Seu olhar acompanhou o som e encontrou o homem da sua vida! Arfando tenta duramente controlar suas lembranças. Impossível! Cenas no parque, nas festas, nos restaurantes, ela não fica sem paz. Ao seu redor, tudo e todos perdem a gravidade. Entre os destroços, apenas seu amor cambaleante. – Este brinco era eu! – ela agoniza... Sem pensar, arrebata brincos e cordão, e os engole avidamente. De olhos abertos, suporta a espera solitária. Esperar sempre foi a parte mais difícil. – Preciso vomitar... Claudia Nunes

32 Um fio solto. Que susto, um fio solto. Sem pensar puxou com a ponta dos dedos aquele fio. Que dor, que incomodo, sua vida não podia ser pior. Em cada ponto, um desmanche, uma escuridão. Sem parar, sem parar. Alice não podia parar. Tantos complexos, tantas insatisfações, e o fio não terminava... e tudo se desmanchava. Por que tinha que ser assim? O tempo passou e ela dentro daquele provador puxando fios... puxando lembranças... sendo infantil, adolescente, infantil, adolescente. Não houve o salto, havia defeitos, havia fios, havia desatenções. Impotente, houve Lucio, ao seu lado: amor, ficou bom? Claudia Nunes

33 Aos 79 anos, Julia se aposentara. Linda caminhava na praia todas as manhas alimentando o desejo de encontra alguém. Nada demais, apenas alguém para viver seus sonhos mais audaciosos. Mas era difícil. O tempo quente parece que afugentava almas e animais. Seria preconceito? Alzira, sua amiga do segundo andar, sempre lhe dizia: ‘Julia, no fim da vida, a ideia é viver, só isso’. Como sonhar é livre, homens passavam e não a transformavam. Raquete, tênis, bolsa, vamos à vida, pensava ela todos os dias. No portão do prédio, um mal súbito. Na caixa do correio, um postal de Alberto, seu vizinho de porta, “oi, tomei coragem, te amo!”. Claudia Nunes

34 Amon, homem separado. Vida de solteiro. Mas um sonho: uma mulher independente. Carmem morava com ele. Ex-mulher, amante, empregada. A vida de sonhos. Numa calçada de rua, mulheres-amantes não tinham mais interesse. Como a onda perfeita, ele surfava pelos dias querendo a mulher-perfeita: provedora. Nem tinha certeza das vantagens materiais, mas mulher-autônoma era tudo. Numa mesa de jogo, uma dama e a cartada final: perdera as calças e a mãe. Claudia Nunes

35 Amor, amor, amor! Quanto romantismo Inácio ainda iria viver até encontrar o verdadeiro amor. Mulheres admiráveis, atletas, domésticas, ilusionistas, dramáticas, determinadas, tontas, reféns, submissas, corretas, fálicas... Sem separar o joio do trigo, mulheres era sua aventura de viver a vida. Só que seus lustres estavam sujos, sua casa fria, seu corpo solto, suas ações sem destino, seus desejos sem ponto de apoio. Na loucura, o jogo de squash. Squash era seu movimento de reflexão e liberdade. Ali suas incontinências afetivas se iludiam com outras químicas internas. Era preciso doer o corpo para esquecer o corpo. Ploc, ploc, ploc... bolinhas iam e vinham das paredes com a força dos seus braços e no jogo de pernas. Numa de suas voltas, o cheiro, a distração, Rodrigo. Claudia Nunes


MICROCONTOS 26, 27, 28, 29, 30

26 Como saber se ela o traía? A desconfiança era constante, por causa daquele brilho no olhar. Não suportaria perdê-la: um fracasso existencial inadmissível! Começou a mimá-la com presentes e companhia constante, para neutralizar o rival. Depois instalou escuta no telefone. Nenhum indício, apesar do brilho. Contratou detetive caro, mas o resultado foi nulo. Então, resolveu largar o emprego para segui-la. Perdia os dias escondido, em busca do delito. Nada. Por fim, tomou a decisão: enquanto ela dormia, entrou em seus sonhos e só então descobriu que seu rival era ele mesmo, mais moço, antes de casar. Claudia Nunes

27 Uma rua deserta. Clara, a menina, caminha assustada, teme o escuro. De repente, a sombra. Não era ela, era outra. Era definida, difícil, rude, sincera e ia à frente. Apesar do medo, menina e sombra são o mesmo paradigma. Outras sombras se apresentam, se misturam, mas não as apagam. Na esquina, independente, a sombra some. Por quê? A moça pára, olha, procura e se entristece. A rua perdeu o sentido. Percebe, então, que a sua frente há uma linha quase transparente. Transparente? Sombra? Pensa, lembra e vai. Forte. É uma mulher! Claudia Nunes

28 No pátio, uma galinha assumia o poder: o quintal era ser. Perninhas para lá, perninhas para cá. Cada pedacinho de chão alimentava sua fome. Em alguns momentos, animais enormes tentavam pegá-la. Suas pernas eriçavam e ele sentia que devia correr. Qualquer lugar servia. Por que não a deixavam em paz? Por que querem ocupar seu espaço? E os dias passavam. De longe movimento e cheiros diferentes. Outras galinhas chegam e freqüentam o ‘seu’ lugar. Não incomodam, mas são invasoras! De repente, um laço na garganta, não há como respirar, uma dor lascinante e... de novo... seu quintal. Distraída, vê uma família animada sorrir para um frango ao molho pardo. Claudia Nunes

29 Ivete é estilista. Da comunidade em que morava, agarrou uma oportunidade de viajar e assumiu sua profissão. Agora está namorando. Julio, amigo de seu patrão, a encantou com seu espírito esportivo. Em cheque, seu futuro. Na realidade, a intensidade da paixão. No coração, a liberdade dos desejos. Sem duvidar, sonha junto. Hoje repentinamente Julio se acabou. Acabou. Em meios aos tecidos, tesouras, manequins e fitas métricas, Angela é encontrada morta. Claudia Nunes

30 Cadê minhas chaves? Já colocou o café na mesa? Preciso de novas meias! Todo dia Esther andava pela casa, escutava e atendia aos chamados do casamento. Pura insatisfação! Por que parei de trabalhar? - ela se perguntava todo dia. Roupas, casa, filhos, marido, comida, tudo bem organizado, mas era pouco. Suas atenções eram de outros... Mas o que ela queria? Respirar... Por que deixei de trabalhar? – perguntava às louças na pia. Em algum momento ela não foi fisioterapeuta, operadora de telemarketing, secretária. No futuro, é dona de casa. O que pensaria meu pai? O que pensariam meus amigos? Fracassada! Imatura! Covarde! Mesa posta. Meninos na escola. Marido no trabalho. Lava as mãos. À noite, na piscina, velas acesas e um bilhete: ‘fui na fé’. Claudia Nunes


Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...