domingo, 1 de março de 2015

MICROCONTOS 26, 27, 28, 29, 30

26 Como saber se ela o traía? A desconfiança era constante, por causa daquele brilho no olhar. Não suportaria perdê-la: um fracasso existencial inadmissível! Começou a mimá-la com presentes e companhia constante, para neutralizar o rival. Depois instalou escuta no telefone. Nenhum indício, apesar do brilho. Contratou detetive caro, mas o resultado foi nulo. Então, resolveu largar o emprego para segui-la. Perdia os dias escondido, em busca do delito. Nada. Por fim, tomou a decisão: enquanto ela dormia, entrou em seus sonhos e só então descobriu que seu rival era ele mesmo, mais moço, antes de casar. Claudia Nunes

27 Uma rua deserta. Clara, a menina, caminha assustada, teme o escuro. De repente, a sombra. Não era ela, era outra. Era definida, difícil, rude, sincera e ia à frente. Apesar do medo, menina e sombra são o mesmo paradigma. Outras sombras se apresentam, se misturam, mas não as apagam. Na esquina, independente, a sombra some. Por quê? A moça pára, olha, procura e se entristece. A rua perdeu o sentido. Percebe, então, que a sua frente há uma linha quase transparente. Transparente? Sombra? Pensa, lembra e vai. Forte. É uma mulher! Claudia Nunes

28 No pátio, uma galinha assumia o poder: o quintal era ser. Perninhas para lá, perninhas para cá. Cada pedacinho de chão alimentava sua fome. Em alguns momentos, animais enormes tentavam pegá-la. Suas pernas eriçavam e ele sentia que devia correr. Qualquer lugar servia. Por que não a deixavam em paz? Por que querem ocupar seu espaço? E os dias passavam. De longe movimento e cheiros diferentes. Outras galinhas chegam e freqüentam o ‘seu’ lugar. Não incomodam, mas são invasoras! De repente, um laço na garganta, não há como respirar, uma dor lascinante e... de novo... seu quintal. Distraída, vê uma família animada sorrir para um frango ao molho pardo. Claudia Nunes

29 Ivete é estilista. Da comunidade em que morava, agarrou uma oportunidade de viajar e assumiu sua profissão. Agora está namorando. Julio, amigo de seu patrão, a encantou com seu espírito esportivo. Em cheque, seu futuro. Na realidade, a intensidade da paixão. No coração, a liberdade dos desejos. Sem duvidar, sonha junto. Hoje repentinamente Julio se acabou. Acabou. Em meios aos tecidos, tesouras, manequins e fitas métricas, Angela é encontrada morta. Claudia Nunes

30 Cadê minhas chaves? Já colocou o café na mesa? Preciso de novas meias! Todo dia Esther andava pela casa, escutava e atendia aos chamados do casamento. Pura insatisfação! Por que parei de trabalhar? - ela se perguntava todo dia. Roupas, casa, filhos, marido, comida, tudo bem organizado, mas era pouco. Suas atenções eram de outros... Mas o que ela queria? Respirar... Por que deixei de trabalhar? – perguntava às louças na pia. Em algum momento ela não foi fisioterapeuta, operadora de telemarketing, secretária. No futuro, é dona de casa. O que pensaria meu pai? O que pensariam meus amigos? Fracassada! Imatura! Covarde! Mesa posta. Meninos na escola. Marido no trabalho. Lava as mãos. À noite, na piscina, velas acesas e um bilhete: ‘fui na fé’. Claudia Nunes


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