terça-feira, 20 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 21 22 23 24 25

21 Aquele índio não era da mata e também não descera de um objeto resplandecente: não, ele surgira do absoluto nada, para atormentar a vida de Karla, enquanto deitava. Com o tempo, ele passou a aparecer no trabalho, a seu lado no carro, na hora das refeições, nos livros que lia. Karla não sabia o que fazer: só ele, silencioso, a olhar. Ela, no entanto, sentia a ameaça e não lutava para tirá-lo da idéia. Com o tempo, passou a gostar de sua companhia. Quando já se acostumara a sentir o calor de seu corpo, ele sumiu. Dizem que foi visto pela última vez em um espelho quebrado. Claudia Nunes

22 Angel era todo luz: olhos, cabelo sorriso. Mas carregava a dor como quem suporta uma penitência. Seus dias transcorriam entre quatro paredes, desejando a paz. Quanto mais se dilacerava em busca do equilíbrio, maior a angústia. Os amigos se foram, a família sofria. Foi ficando só e sem saída. Cada vez falava menos. Lia jornal em seu quarto, na companhia do fiel cão. Ou então trabalhava, para esquecer a vida. Um dia Angel saiu para cortar o cabelo. Olhou para o infinito azul e voou. Pousou de volta, abraçou uma flor e labaredas subiram: transformou-se em chama e encontrou a felicidade. Claudia Nunes

23 Tinha fetiche por sapatos. O armário contabilizava 70 pares, fora os mantidos em desuso. Nunca os jogava fora, nem podia: lembravam momentos especiais; pelos sapatos ia recordando os saltos, tropeços, chutes e tombos da vida. Com cada namorada mantinha um ritual diferente: Márcia ficava deslumbrante na sandália dourada, Beth era irresistível na bota vermelha, Jane triturava seu coração naquele salto alto preto. Envelheceu, colecionando os sapatos, catalogados e bem cuidados pelo engraxate contratado. Um dia morreu e foi enterrado descalço, porque o caixão era pequeno. Claudia Nunes

24 Era louca por gatos, principalmente filhotes. Onde passava, logo os bichanos a cercavam, enrolando-se em suas pernas, lambendo a mão, querendo o colo. Acostumara-se a todos; no caminho para casa ia recebendo o carinho e retribuindo o afago. Mas apaixonou-se por um, negro, de olhos frágeis: dedicou-lhe tratamento especial, até que não mais resistiu e levou-o para casa, cercou-o de cuidados e afeto. Naquela quinta-feira, porém, foi diferente: à noite não mais havia o gato, a casa estava vazia, a janela aberta. A campainha tocou e um jovem de olhar frágil a abraçou e passou a viver a sua vida. Claudia Nunes

25 Foi numa praia deserta, em pleno verão de 40º, que viu o urso pela primeira vez. O pêlo branco faiscava sob o sol. Não se aproximou por medo, mas encantou-se com a beleza do animal. Desde então sonhava constantemente com ele: viu-se perseguida, querendo correr, e acordava sem ar. Mas gostava de sentir a pata sobre seu corpo, quente e peluda. O tempo ajudou-a: esqueceu-se por completo. Meses se passaram e ela resolveu definitivamente casar-se com Júlio, namorado de tantos anos. O casamento foi alegre e a noite, numa cabana de praia, transcorreu feliz. No dia seguinte, ela acordou com calor: Júlio sumira e um tapete de urso a abraçava, em sono sereno. Claudia Nunes


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