domingo, 11 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 16 17 18 19 20

16 Era ambicioso. Nascera pobre, mas queria aparecer na TV, freqüentar colunas sociais. Começou comprando um galpão, onde dava aulas para a criançada miserável. Cobrava cada centavo de seu espaço e tempo. Meteu-se com marginais, enquanto o dinheiro saltava. Logo conseguiu uma cadeia de colégios. Já não se lembrava da infância, no iate de luxo ou no carro importado, a não ser pelo sonho de ter um chafariz no seu jardim. Chamou o engenheiro e o projeto se fez. A inauguração foi linda, mas ele sumiu: enquanto fumava o charuto, foi-se transformando em líquido e entrou na fonte, jorrando mil cores e sons. Claudia Nunes

17 “Mulheres são dissimuladas”, pensava. “Elas fingem gozar”. Vivia atormentado, sem saber se as parceiras, com quem se relacionava, verdadeiramente tinham orgasmo. Quanto maior o tormento, mais as assediava. desdobrava-se no ato, levava as mulheres à exaustão, cobrava as dúvidas em infindáveis perguntas. Ah, o ponto G! Teria tocado? Até que Luiz encontrou Dora. Apaixonou-se, quis casar. Mas antes precisava da certeza. Foram para um motel e a noite seria dos anjos e demônios: champagne, massagem, piscina. Envolveu a amada, cobriu-a de beijos, despiu-a, penetrou e morreu de enfarte. Claudia Nunes

18 Olhava aquela mulher no palco e a desejava loucamente. Bebia cada palavra por ela proferida, guardava pobres pedaços de jornal onde seu nome brilhava, sonhava fantasias arrebatadoras. “Deusa”, pensava ele, “não é para mortais”. Como sombra a seguia, cada passo, itinerante pelas casas de teatro, na expectativa de um dia ser notado. Esqueceu-se de si em função dela. Foi numa segunda-feira, quando o teatro não funcionava: saiu para jantar e lá estava ela, em verde e esperança. Aproximou-se, sentou-se, conversavam. Hoje, ator consagrado, ainda não entende o tiro que a matou no restaurante. Claudia Nunes

19 Nascera com a vocação para o desenho. Menino ainda, fazia figuras na areia, enquanto a mãe inchava de orgulho. Os cadernos de escola quase não tinham apontamentos: eram caricaturas, formas livres, arabescos. Com o tempo, comprou um computador e perdia horas entre quadrados e círculos, montando trabalhos. Entrava em todos os concursos, até que ganhou o prêmio: três meses nos EUA, com tudo pago. Embarcou, com a esperança na mala e o patrocínio no bolso. Os controladores de vôo não entendem como o avião desapareceu, sem deixar vestígios, no Triângulo das Bermudas. Claudia Nunes


20 Os telefonemas eram constantes. A voz desconhecida a alegrava, abalava seu sono, alimentava fantasias. Logo descobriu o nome e endereço. Bateu à porta, vieram a mulher e os dois filhos: o marido, aviador, viajara. Ficou desnorteada. Mas ele voltou, continuou a telefonar, falava em amor. Acostumaram-se às manhãs de quarta-feira, na estação rodoviária. Um dia ele insistiu: queria comemorar os cinco anos de relacionamento. Seguiram pela estrada e pegaram o Concorde. Hoje vivem felizes, em Paris. Claudia Nunes

Nenhum comentário:

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...