domingo, 11 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 12 13 14 15

12 Sempre quis ver discos voadores: sentia-se atraída pelo mistério, acreditava em outras vidas. Sua música favorita era “London, London”, que cantava enquanto trabalhava, esquecida do espaço. Todos sabiam de sua mania em Brasília, onde vários já tinham mantido contado por telepatia, visto a luz curva e os pontos brilhantes. Insistiu muito com a amiga, para que a levassem ao local. A emoção transbordava e o coração pulava, depois de três horas no cerrado, caminhando em busca do sonho. Mal teve tempo de gritar, quando se viu estuprada por dez bandidos, fugidos da penitenciária próxima. Claudia Nunes

13 Desde pequeno José é apegado à mãe. O pai, sempre fora, é ignorado. Amigos e amigas suspeitam de sua sexualidade. Por quê? Não é possível, o afeto, o carinho, a delicadeza, a sensibilidade num homem? Para ser homem é preciso mostrar-se rude e truculento? Profissionalmente, o mundo era diferente. De lá para cá, como vendedor, não vivia o ambiente de trabalho e tinha muitas oportunidades de se experimentar. Por amor, amizade ou sexo, ele era possível. Mas vez por outra a suspeita: seria gay? Um dia, um gracejo mais ofensivo, uma briga violenta. Desacordado na calçada se vê num espelho imenso e cheio de facetas. Em cada uma um homem estranho. Muita dor na aparência. O espelho treme e ele não quer sua revelação, não quer este mundo em seu corpo. De repente, cada um dos homens sorri e o afaga. – Não! - ele grita – Não! Ainda tateando no ar, ele procura identidade, personalidade, máscaras. Sem poder se mover daquele chão frio e molhado, José se transveste de palhaço e se deixa escorrer sorrindo pelas veias do coração materno. Claudia Nunes

14 Sandra era pessoa comum. Família classe média, mãe viúva, dois irmãos. Não pudera estudar, contentava-se em ser secretária. Ganhava para a vidinha simples, sem luxo. Não casara, nem queria mudar a rotina; não se imaginava rodeada de filhos, panelas. Naquela tarde Sandra saiu do trabalho e foi ao mercado, antes de seguir para casa: latas, plásticos, prateleiras e prateleiras. Suava, entre a lista de compras e a carteira de dinheiro, empurrando o carrinho cheio. Filas gigantescas à frente, ela aguardava pacientemente em procissão; nem reparou a caixa de ovos a se abrir: de dentro saiu um cavalo alado, que a levou para a nuvem. Horas depois começou a chover. Claudia Nunes


15 Entre os amigos o apelido era ‘Gorila’, mas se chamava Amâncio. Adorava as lutas, não perdia uma: boxe, karatê, judô, sumô, vale-tudo. Na academia malhava horas, socava sacos, dava golpes no ar. A mulher, frágil, aceitava, resignada: macho devia ser forte, briguento. À noite cuidava dos cortes e feridas trazidas da rua. A grande oportunidade veio no jornal: um torneio para amadores, com perspectiva de profissionalização. Os combates diários foram sendo vencidos. Na véspera da final, Laerte ainda tentava explicar à delegada a razão pela qual a mulher estava no hospital, fazendo exame de corpo delito, entre hematomas e dentes quebrados. Claudia Nunes

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