71 Quando o sol nasceu, o corpo se
expandiu. Houve uma vibração intensa. Nada ficou de fora: amava. Amava
intensamente. Não houve tempo; era uma emoção incompreensível de tão absoluta.
Para onde ir? Lugar nenhum. ‘Eu não quero me sentir assim’, disse ele. Mas a
vontade perdia terreno para a insensatez. Vontade e insensatez, estados de
calamidade emocional para ele. Nada parava a vibração, nem o esforço do
fingimento ou o investimento no trabalho: ele amava intensa e novamente. Seus
olhos procuravam algo confortável: uma desculpa, uma distração, um blefe.
Positivo ou negativo? Nenhuma resposta: apenas pulsava de desejo irresistível
de experimentar vontade e insensatez. ‘Ridículo! Ele era ridículo!’ – pensava.
Sem arrependimento, resistência ou pensamento disse: ‘hoje eu só quero que o
dia termine bem!’. Ao vê-lo se aproximar, Paula sorriu de esguelha e lhe
ofereceu um lugar à mesa: ‘tem toda...’ Claudia
Nunes
72 Nunca pensara em perder. Não
aceitara a perda. Agora a informação era: ‘perdeu...’ Lia livros, resolvia
problemas, experimentava psicologias, mas a mensagem era: ‘perdeu...’ Num mundo
de muitas exigências, agora ela teria que praticar o desapego. Sem controle,
fora do ritmo, ela fluía pelos dias descoloridos e procurava, na periferia,
algo em que se apoiar. Ideia inicial? Ignorar, afinal, ‘perdeu...’ De volta ao
começo: longas noites inúteis em sucessão e seu corpo sem atendimento. Às
vezes, saia do prumo e aceitava as nebulosidades das razões e dos argumentos:
‘ela não era possível!’ – dissera ele. Ela era um ser sem ligações densas. Como
uma aranha tecia seus afazeres sem conexões básicas: os nós dos beijos de pura
confiança e entrega. Suava, cansava, caminhava, pedalava: a vida era um
exercício inútil de recondicionamentos e disso era impossível desapegar. Em
academia, era preciso perder os vícios e autossugestionar-se: short azul ou
saia lisa? Eis o simples da vida! Claudia
Nunes
73 Folheando o jornal da manha, Lívia
tomou consciência de si mesma: era uma mulher experiente, num sábado, de manha,
de sol, à espera de um cavalheiro. Sem o julgamento alheio, ela queria
romances... amores... beijos... e filhos. A dor tornou-se lancinante: ela
queria filhos e acalmar sua alma solitária de futuro. Folheando o jornal da
tarde, o corpo deu sinais de atividade: filhos, filhos, filhos. Ela lia e
lembrava: a vida é um conjunto de sentimentos e pensamentos que, as vezes, nos
dizem ‘não!”. A porta da sala bateu e ela se perdeu na angustia do desejo:
filhos, sempre filhos. ‘O que está de errado comigo?”. Folheando o jornal da
noite, uma paz retardou os disparos da natureza. Sem juízo, parou de lutar...
parou de se evitar... e atendeu um gogoboy dos classificados do jornal da
madrugada. Claudia Nunes
74 Desde o nascimento, uma bonequinha.
Na juventude, uma modelo. Em vida adulta, o exemplo. E na velhice, uma clínica
de drogados. Claudia Nunes
75 Noite. Ele não pode ver. Arrepio.
Ele receia: não pode ver. Tudo estava mal iluminado. Tudo se desfigurando. Ele
estranhou: estava irracional. Ele, um ser realista, tremia, olhava para os
lados e o coração acelerava. Que tortura! Ele queria atividade: luz. Ele fugia
da inércia: noite. Cada passo, ele engasgava, tossia, mal respirava... Dez
metros entre ele e seu carro. Dez anos de envelhecimento. Dez séculos de
loucura. E ele continuava: paralisar estava fora de questão. De novo isso: ele
não se sentia natural; não se adaptava; não se organizava. A vida era um
insucesso, os fracassos se sucediam, mas ele lutava por dez metros de
respiração e segurança. Ele não podia pensar, nem regredir, nem ignorar: ele
estava em processo de alucinação das próprias insensatezes sem tempo para
‘curti-las’. Medo. Medo do escuro. Dor. Dor do desconhecido. Não tinha atitude,
apenas o afundamento de sua altivez. Sem o cotidiano, ele era um espectro
vulnerável e em expectativa de morte. Ao longe, o carro representava a luz, o
amor, a casa, a força, o ser e o ter. Barulhos ensurdeciam quaisquer atitudes
mais focadas: e o carro se distanciava. Por quê? Os sentidos aguçados pesavam
as pernas e o corpo doía, tremia, rasgava, se partia... Que sofrimento! Horas
mais tarde, Lúcio foi encontrado em seu carro morto: som altíssimo e têmporas estouradas.
Claudia Nunes
76 As armadilhas da mente são
trágicas. Elas se incorporam em nossos corpos e impõem certezas. Julia tinha
certeza: estava doente. Seus incômodos eram diferentes. Há um sofrimento
contínuo e uma excessiva falta de leveza de ser. Julia continuava trabalhando,
mas sabia da doença: ela estava doente. Diretora de marketing de uma grande
empresa internacional, ela estava chorando pelos cantos a toda hora. Só podia
ser doença. Sem saber o que fazer, fazia o seu melhor: ignorava-se e impedia
quaisquer dramaticidades tidas como estúpidas. Ela não se permitia: era uma
mulher segura. Com o cheiro forte de café, só lhe restou ‘voar’ para o
banheiro, de novo. Será? Claudia Nunes
77 Alívio ao sair de casa para
trabalhar. Menos estresse e livre respiração. Antonio, um entregador de pizza,
queria o vento atravessando seu corpo, assim a raiva passava. Seu humor estava
zerado. Por quê? Vida plena, mulher linda, filho pequeno, grana boa, então por
quê? Em sua motocicleta, um cheiro e um pensamento: melhor no trabalho do que
em casa. Por quê? Curvas, curvas, buzinas, sinais de transito, tudo lhe
atravessa os sentidos: será o perigo? Vivia em adrenalina; tinha jornada dupla,
saúde mental e física. Mas os malabarismos diários não mais o aqueciam... Acelerando
e freando difícil era entender a rua e a casa. Em casa mais afeto e angústia;
na rua, mais objetividade e decisão. Na rua perdeu-se pouco; em casa, perdeu-se
a vida. Na rua, vínculos desatáveis; em casa, vínculos mais primitivos. Em
casa, muitas obrigações inalienáveis. Na rua, ouvem-se os problemas dos outros,
mas sem preocupação; e, em casa, o estresse é contagioso, ‘faz parte’, é
interno, e precisa ser superado a dois. O vento o desmanchava. No fim da rua,
um luminoso: vendem-se sonhos, aproveitem! Claudia
Nunes
78 Será que só existe a realidade em
que vivemos? Sonia aprendeu que não. A realidade tem muitas dimensões e ela se
perdeu em uma delas. Sua situação era grave: perdera a fé. Ela estava seca. Não
queria mais exposições, sucesso ou conquistas. Depois daquilo, ela mudara o
rosto: agora era a vítima. A realidade era uma gaveta vazia num armário de
sótão e as vítimas só choram. Depois daquilo, suas escolhas ajustaram seu olhar
em busca de si mesma, mas a ideia era ‘destruição’. Com a mente conturbada,
próxima opção era sujar o corpo. Turbulência, abundância; insensatez,
insatisfação; Sonia aprendeu que não era ninguém. Depois daquilo, não tinha
jeito: ela precisa voltar e cumprir o seu destino. ‘Que dificuldade!’, pensava
ela. Mas do que ‘tentar’, ela precisava ‘fazer’ e ajudar o universo a conspirar
a favor. Depois daquilo, tempo sem celular... Claudia Nunes
79 Ambos sabiam o seguinte: a decisão
precisava ser tomada. Ansiedade e aflição os limitaram em seus lugares. E o
medo os silenciou. De repente, o sorveteiro grita à porta ‘Sorvete!’. Quando os
olharem se tocaram, as gargalhadas puderam ser ouvidas ao longe. Claudia Nunes
80 Quando pôs os pés na escola,
Cleydes sabia: uma energia estranha a circulara e ela não podia fazer nada. O
coração acelerado denunciou sua ansiedade. Ela sentia os vultos em toda parte.
Sem poder estacionar o tempo, Cleydes se consumia em forças: ir ou não ir? A
energia emanava de todos e causava dores estranhas. Ela lutava para controlar
suas emoções e continuou entrando na escola. “Cleydes, aqui, você vai aprender
a ser gente!” Aos 04 anos, ela desmaiou... ‘Ser gente’ era monstruoso. Claudia Nunes