quarta-feira, 17 de junho de 2015

MICROCONTOS 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80

71 Quando o sol nasceu, o corpo se expandiu. Houve uma vibração intensa. Nada ficou de fora: amava. Amava intensamente. Não houve tempo; era uma emoção incompreensível de tão absoluta. Para onde ir? Lugar nenhum. ‘Eu não quero me sentir assim’, disse ele. Mas a vontade perdia terreno para a insensatez. Vontade e insensatez, estados de calamidade emocional para ele. Nada parava a vibração, nem o esforço do fingimento ou o investimento no trabalho: ele amava intensa e novamente. Seus olhos procuravam algo confortável: uma desculpa, uma distração, um blefe. Positivo ou negativo? Nenhuma resposta: apenas pulsava de desejo irresistível de experimentar vontade e insensatez. ‘Ridículo! Ele era ridículo!’ – pensava. Sem arrependimento, resistência ou pensamento disse: ‘hoje eu só quero que o dia termine bem!’. Ao vê-lo se aproximar, Paula sorriu de esguelha e lhe ofereceu um lugar à mesa: ‘tem toda...’ Claudia Nunes

72 Nunca pensara em perder. Não aceitara a perda. Agora a informação era: ‘perdeu...’ Lia livros, resolvia problemas, experimentava psicologias, mas a mensagem era: ‘perdeu...’ Num mundo de muitas exigências, agora ela teria que praticar o desapego. Sem controle, fora do ritmo, ela fluía pelos dias descoloridos e procurava, na periferia, algo em que se apoiar. Ideia inicial? Ignorar, afinal, ‘perdeu...’ De volta ao começo: longas noites inúteis em sucessão e seu corpo sem atendimento. Às vezes, saia do prumo e aceitava as nebulosidades das razões e dos argumentos: ‘ela não era possível!’ – dissera ele. Ela era um ser sem ligações densas. Como uma aranha tecia seus afazeres sem conexões básicas: os nós dos beijos de pura confiança e entrega. Suava, cansava, caminhava, pedalava: a vida era um exercício inútil de recondicionamentos e disso era impossível desapegar. Em academia, era preciso perder os vícios e autossugestionar-se: short azul ou saia lisa? Eis o simples da vida! Claudia Nunes

73 Folheando o jornal da manha, Lívia tomou consciência de si mesma: era uma mulher experiente, num sábado, de manha, de sol, à espera de um cavalheiro. Sem o julgamento alheio, ela queria romances... amores... beijos... e filhos. A dor tornou-se lancinante: ela queria filhos e acalmar sua alma solitária de futuro. Folheando o jornal da tarde, o corpo deu sinais de atividade: filhos, filhos, filhos. Ela lia e lembrava: a vida é um conjunto de sentimentos e pensamentos que, as vezes, nos dizem ‘não!”. A porta da sala bateu e ela se perdeu na angustia do desejo: filhos, sempre filhos. ‘O que está de errado comigo?”. Folheando o jornal da noite, uma paz retardou os disparos da natureza. Sem juízo, parou de lutar... parou de se evitar... e atendeu um gogoboy dos classificados do jornal da madrugada. Claudia Nunes

74 Desde o nascimento, uma bonequinha. Na juventude, uma modelo. Em vida adulta, o exemplo. E na velhice, uma clínica de drogados. Claudia Nunes

75 Noite. Ele não pode ver. Arrepio. Ele receia: não pode ver. Tudo estava mal iluminado. Tudo se desfigurando. Ele estranhou: estava irracional. Ele, um ser realista, tremia, olhava para os lados e o coração acelerava. Que tortura! Ele queria atividade: luz. Ele fugia da inércia: noite. Cada passo, ele engasgava, tossia, mal respirava... Dez metros entre ele e seu carro. Dez anos de envelhecimento. Dez séculos de loucura. E ele continuava: paralisar estava fora de questão. De novo isso: ele não se sentia natural; não se adaptava; não se organizava. A vida era um insucesso, os fracassos se sucediam, mas ele lutava por dez metros de respiração e segurança. Ele não podia pensar, nem regredir, nem ignorar: ele estava em processo de alucinação das próprias insensatezes sem tempo para ‘curti-las’. Medo. Medo do escuro. Dor. Dor do desconhecido. Não tinha atitude, apenas o afundamento de sua altivez. Sem o cotidiano, ele era um espectro vulnerável e em expectativa de morte. Ao longe, o carro representava a luz, o amor, a casa, a força, o ser e o ter. Barulhos ensurdeciam quaisquer atitudes mais focadas: e o carro se distanciava. Por quê? Os sentidos aguçados pesavam as pernas e o corpo doía, tremia, rasgava, se partia... Que sofrimento! Horas mais tarde, Lúcio foi encontrado em seu carro morto: som altíssimo e têmporas estouradas. Claudia Nunes

76 As armadilhas da mente são trágicas. Elas se incorporam em nossos corpos e impõem certezas. Julia tinha certeza: estava doente. Seus incômodos eram diferentes. Há um sofrimento contínuo e uma excessiva falta de leveza de ser. Julia continuava trabalhando, mas sabia da doença: ela estava doente. Diretora de marketing de uma grande empresa internacional, ela estava chorando pelos cantos a toda hora. Só podia ser doença. Sem saber o que fazer, fazia o seu melhor: ignorava-se e impedia quaisquer dramaticidades tidas como estúpidas. Ela não se permitia: era uma mulher segura. Com o cheiro forte de café, só lhe restou ‘voar’ para o banheiro, de novo. Será? Claudia Nunes

77 Alívio ao sair de casa para trabalhar. Menos estresse e livre respiração. Antonio, um entregador de pizza, queria o vento atravessando seu corpo, assim a raiva passava. Seu humor estava zerado. Por quê? Vida plena, mulher linda, filho pequeno, grana boa, então por quê? Em sua motocicleta, um cheiro e um pensamento: melhor no trabalho do que em casa. Por quê? Curvas, curvas, buzinas, sinais de transito, tudo lhe atravessa os sentidos: será o perigo? Vivia em adrenalina; tinha jornada dupla, saúde mental e física. Mas os malabarismos diários não mais o aqueciam... Acelerando e freando difícil era entender a rua e a casa. Em casa mais afeto e angústia; na rua, mais objetividade e decisão. Na rua perdeu-se pouco; em casa, perdeu-se a vida. Na rua, vínculos desatáveis; em casa, vínculos mais primitivos. Em casa, muitas obrigações inalienáveis. Na rua, ouvem-se os problemas dos outros, mas sem preocupação; e, em casa, o estresse é contagioso, ‘faz parte’, é interno, e precisa ser superado a dois. O vento o desmanchava. No fim da rua, um luminoso: vendem-se sonhos, aproveitem! Claudia Nunes

78 Será que só existe a realidade em que vivemos? Sonia aprendeu que não. A realidade tem muitas dimensões e ela se perdeu em uma delas. Sua situação era grave: perdera a fé. Ela estava seca. Não queria mais exposições, sucesso ou conquistas. Depois daquilo, ela mudara o rosto: agora era a vítima. A realidade era uma gaveta vazia num armário de sótão e as vítimas só choram. Depois daquilo, suas escolhas ajustaram seu olhar em busca de si mesma, mas a ideia era ‘destruição’. Com a mente conturbada, próxima opção era sujar o corpo. Turbulência, abundância; insensatez, insatisfação; Sonia aprendeu que não era ninguém. Depois daquilo, não tinha jeito: ela precisa voltar e cumprir o seu destino. ‘Que dificuldade!’, pensava ela. Mas do que ‘tentar’, ela precisava ‘fazer’ e ajudar o universo a conspirar a favor. Depois daquilo, tempo sem celular... Claudia Nunes

79 Ambos sabiam o seguinte: a decisão precisava ser tomada. Ansiedade e aflição os limitaram em seus lugares. E o medo os silenciou. De repente, o sorveteiro grita à porta ‘Sorvete!’. Quando os olharem se tocaram, as gargalhadas puderam ser ouvidas ao longe. Claudia Nunes


80 Quando pôs os pés na escola, Cleydes sabia: uma energia estranha a circulara e ela não podia fazer nada. O coração acelerado denunciou sua ansiedade. Ela sentia os vultos em toda parte. Sem poder estacionar o tempo, Cleydes se consumia em forças: ir ou não ir? A energia emanava de todos e causava dores estranhas. Ela lutava para controlar suas emoções e continuou entrando na escola. “Cleydes, aqui, você vai aprender a ser gente!” Aos 04 anos, ela desmaiou... ‘Ser gente’ era monstruoso. Claudia Nunes

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