quarta-feira, 17 de junho de 2015

MICROCONTOS 66, 67, 68, 69 70

66 Da porta da sala, a brisa atravessava seu corpo sem piedade. A luz da lua lhe alcançava o rosto. As sensações eram muito dolorosas. Sem perceber, a vida trouxe emoções complicadas e outras incompreensíveis. Lucas não sabia o que fazer. Amava a todos e Arlinda com toda a sua força. Mas sua mãe de santo avisara: “cuidado com as energias... cuidado com as forças espirituais... cuidado com os canais desconhecidos.” Ele receava. Sentia magnetismos estranhos. Arlinda nada dizia. Ela o olhava e seu silencio também doía demais. Limpeza! Alguém gritou ‘limpeza!’ Lucas e Arlinda, sensibilidades aproximadas e sensitivas, não se moviam. Lucas e Arlinda, uma comunicação inapropriada, em alguns casos; e de intenso tesão, em muitos outros. No entanto, à luz da espiritualidade, as dores não os deixavam reencontrar meios de sorrir. Única compreensão sobre o tempo: a brisa ininterrupta. E a mãe de santo disse: “não alimentem negações ou culpas... não se culpem... fechem suas vulnerabilidades...”. Embora as dificuldades sejam enormes, Lucas e Arlinda não sabiam pelo que optar: aceitar as sogras em casa ou fugir dos credores da porta dos fundos? Claudia Nunes

67 Coincidências. Ela só pensava no mal estar que as coincidências estavam gerando em sua mente. O universo conspirou e ela perdeu várias oportunidades. A felicidade fugiu e ninguém conseguia lhe entender. Bobagens, todos diziam ‘bobagens’. Ela, então, se separou das pessoas e das coisas, e desistiu de falar. Falar destruía sua relação com o inesperado e exigia o entendimento das rotinas sem graça. Chateada ou feliz, as coincidências não lhe davam trégua: coincidência da perda; da negação; da distancia; mas ela não podia questionar e nem se mostrar. Bobagens, todos diziam: ‘bobagens...’ Restava olhar, sentir e se guardar: respeito; assim não sofria com o julgamento de ninguém. Ela nunca se preocupou muito com isso, mas as coincidências a assustaram: ninguém a olhava com a compreensão. Tudo foi de repente e ela se afogava em ondas de ilógica e dúvida. Coincidências tiram a todos do lugar e ela estava sem saber que próximo passo dar. Como um fantasma, ela decidiu blefar com os dias e não mais questionar a ignorância das pessoas. Diante do seu computador, ela sentiu a vida e os sentimentos ganharem a frieza dos blefes mais criativos. ‘Oi, tudo bem? Nossa, aqui tudo bem... to me divertindo à beça...” Claudia Nunes

68 Amor, um doce que pode amargar as cores do dia. Amar, uma delicia que pode doer os recantos mais obscuros dos pensamentos. VIVIAN estava atordoada: perdeu. De uma noite para outra, perdeu. Os retratos deviam desaparecer. Os presentes guardados. As amizades cortadas. Mas o que fazer com as lembranças? No sofá de sua casa, a tristeza eliminava qualquer expectativa: VIVIAN não tinha vontade de nada. Paralisava e olhava: nada. Único pensamento: solidão de novo. Ela amava, ele não. Começar tudo de novo? Por quê? Qual foi seu erro? Quais foram seus excessos? Ela, de novo, estava à mercê da sorte ou da solidão. Risos, passeios, exposição, trocas, intimidades, família: agora só ela e a culpa. Sem um motivo, VIVIAN enlouquecia de dúvidas e dores. Ela era tão leal, tão simples, tão inteligente, tão animada, tão ela... Que dor louca saber que se perdeu o amor por ser quem se é. Será? Isso! Ela tinha que ser outra. A mágoa se instalou porque ela não foi outra. O desejo fugiu da relação porque ela não era outra. Realmente a culpa era dela: inteligente e burra! Tinha que se permitir proibições e liberdades. Amava, então, por que não? “Não quero mais! Quero liberdade!” – ele gritava em sua memória. Dor! Que dor! Amar sem ser prioridade é arrasador. Sentimentos mexidos, crentes e abandonados. Eternidade e para sempre, tudo mentira. Sentada naquele sofá, só podia fazer parceria com o tempo e os disfarces: de uma noite pra o dia, ela seria seu melhor blefe novamente. Noite caindo e outra rotina: sozinha. Coração aberto para o nada. Choro. Indignação. Raiva. Dor. Dormiu. De manhã, móveis fora do lugar, retratos trocados, perfumes vazios, estante reorganizada, armário do banheiro limpo: os sentidos revistos. VIVIANE invadiu a noite. Festa no Morro do Juramento, lá vai ela! Reconhecer a própria liberdade é a tônica da vida. Viva a vida! Claudia Nunes

69 Lua cheia no céu. Frio no céu dos seus pensamentos. O mal estava feito. Agora era sentir o tempo passando. De repente, uma profunda dor emocional o tirara dos seus hábitos. Andando pela cidade a esmo, ele não conseguia estancar os sentimentos negativos. A vida era assim: fracassos. Incapaz de encontrar luz por entre as pessoas, uma aceitação: era um ser incapaz. Não fora feito para alegrias ou felicidades prolongadas. As rejeições eram suas melhores experiências de crescer e de se identificar entre as pessoas. E ele caminhava. Não tinha para onde ir. Simplesmente olhava em frente e se deixava levar pelos seus ‘mal-estares’. Outra vez, em solidão, se percebia ressentido. Lutava pelo bom humor, pela sensibilidade, pela motivação, mas era um ressentido, uma vítima de recorrentes cegueiras emocionais. De novo, sozinho, inseguro, duro, irritado. De novo, barreiras imensas o fechavam e defendiam. De novo, a negação: sou incapaz. Ele ama, amou e amava demais, e o amor é uma mazela ignorante e egoísta: uma incerteza insolúvel ainda que muito desejada. Ruas, ruas e ruas eram atravessadas por uma dor insuportável, de novo. Um forte barulho de dezenas de buzinas de carros o cerca. Ele se perde, cambaleia, bate num poste, mas não cai: ‘cuidado gato, você pode se machucar, quer ajuda?’ – diz um travesti que o acompanhava até o museu da cidade. Claudia Nunes


70 Quando se ama, há um ciclo que deve ser vivido com atenção e sensibilidade, intensamente, quase todos os dias. Duas pessoas diferentes se desejam juntas para amar, realizar e superar desafios que a vida SEMPRE apresenta. Paixão; amor; amor e amizade; amor, amizade e muito carinho; esses são os pilares fundamentais àqueles que se querem ‘para sempre’ e junto. Os conflitos são naturais? Sim! Naturais e necessários às decisões constantes de se ficar junto. Parceiros com amor, de alguma maneira, todos os dias decidem: quero ficar junto. Mas, e quando não se ama? E quando a consistência deste ‘bolo’ não tem manteiga suficiente para a degustação de ambos? Não há um estrago, não há possibilidade de reflorescimento, há a esterilidade dos dias comuns com base na tranquilidade e na indiferença. No tempo, quem se junta e não ama alimenta várias diferenças, algumas ansiedades e muito mal-estar. Ser bom e tranquilo não são adjetivos ‘próprios’ àqueles parceiros que se amam. Bom e tranquilo é uma parceira inútil, em processo de compressão e que reprime ambas as identidades.  Engana-se quem pensa em fracasso: uma parceria sem amor é só mais uma forma de enganar o olhar social e conviver no social. E sendo assim, o fracasso seria um corte: uma solução. Não é o caso dos parceiros sem amor. Pena! Uma parceria, no mínimo, deveria compor-se pelo respeito e pela admiração das individualidades com emoção. Porém o conforto é um hábito forte demais. Sem amor, mentes têm olhares e ações em rotas diferentes e sem volta. Não há volta para os ‘sem amor’ junto. Depois do blefe do encontro e da conquista, tudo é espiral negativa e sem tempo para pensar. Os parceiros sem amor vivem porque precisam, não porque desejam, tornando a relação um caleidoscópio de sentires e de silêncios. Num tempo qualquer, os parceiros sem amor vivem suas dimensões mais escondidas de qualquer jeito. É melhor. É mais simples. É, de novo, mais confortável. Precedente: uma independência emocional dentro de uma relação social e, em muitos casos, casual, abre o leque de territórios onde se experimentam amores sempre menores: escapamentos emocionais. É uma forma de mudar o foco da mente, sem desgastes e desapegos. Só que, de repente, no presente, em qualquer dimensão, uma pergunta é óbvia: “o que está errado comigo?” Claudia Nunes

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