Vi ‘Alice no país das Maravilhas’ de Tim Burton e não gostei. Questão de imaginário, preconceito e de ser uma imigrante digital: o 3D me incomodou muito. Adjetivos como insólito, absurdo ou surrealista estão exacerbados em cada cena. Bom enfim, é a ‘nova onda do Imperador’ EUA.
Já adolescente, Alice esquece-se de si mesma? Esqueceu-se das aventuras? Assimilou tanto assim o mundo real que sua memória realocou a experiência no mundo dos pesadelos? Bom, é assim que começa o filme. Alice está na aventura da independência, das amizades, dos enfrentamentos, das superações e da autonomia: uma agonia só.
São tantas as referências à literatura, à matemática, à psicologia, à lingüística etc. que todo o texto torna-se ‘de difícil interpretação’. Mas mesmo assim, eu vi meus alunos ali; eu vi o esforço de aprender que têm; eu vi como é difícil ser respeitado quando jovem; eu vi o tanto de criatividade interior que se renega em nome de um paradigma educacional antigo.
Tim Burton parece improvisar. No filme há duas Alices, a ‘do país das maravilhas’ e a ‘do outro lado do espelho’. Real e imaginário / razão e emoção fundidos e ditando as regras dos comportamentos e das relações. Alice precisa ‘reaprender-se’, precisa reviver parte da sua experiência anterior, precisa aprender autonomia, postura, liberdade e, principalmente argumentação. Enquanto se entende naquele lugar cujas indicações e impressões sugerem familiaridade, Alice se fortalece como ser humano e como sujeito social importante.
Eu vejo meus alunos como verdadeiras “Alices’. Só que eles não conseguem sair do campo do imaginário. Seu imaginário é heróico, sempre promissor e pleno de conquistas. Mas ainda não se reconheceram, ainda não se enfrentaram ‘na real’, ainda não romperam o conforto do casulo do prazer. Nesta perspectiva investem no encontro das novidades diárias e aprender demora.. demora muito... Acreditam que têm ‘corpo fechado’ para sempre para qualquer problema ou discurso.
Há uma ânsia e expectativa no sentido de aprender e praticar tudo rápido. É outro tempo. É outra duração de tempo. É outra dimensão de tempo. É outra vivêncio do tempo. Nada de aprender pelas horas. Ações como ler e refletir são 'chatas'. É ler e agir, fazer logo. A idéia é aprender (se informar) agora e prática logo. É experimentar as informações no instante em que elas são conhecidas. E se não der certo, parte-se para outra informação, sucessivamente. Operações mentais como refletir e interpretar é ‘coisa de gente antiga’.
Como estamos em tempos de revisitações do imaginário infanto-juvenil (veja-se Homem de Ferro, Homem Aranha, Hulk, Batman, Robin Hood, Fantasma, Thor, Transformers, Super-homem e dos heróis metamorfoseados X-Men), surge timidamente uma releitura do Pequeno Príncipe e estrondosamente o filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, meus alunos viram tudo e estão mais inquietos. Em muitos casos, eles transferiram suas identidades para os personagens ficcionais. Eles querem uma identidade secreta. Eles querem ser outros. Eles querem ser alguém. Mas 'ser alguém' de forma rápida.
Mas, de repente, eles têm que tomar banho, ir para escola, fazer atividades, fazer compras com a mãe, limpar o banheiro, ajudar o irmão, ‘fazer sala’ para tia, levar o lixo fora de casa, ganhar dinheiro etc. Com o imaginário recheado de possibilidades massificadas na mente, não entendem o valor de aprender valores e conceitos, não entendem mesmo as boas maneiras, a obediência e o momento de fazer silêncio, por exemplo. No confronto ou conflito, reagem desgovernadamente. Ou seja, procuram resolver qualquer questão de qualquer jeito e rápido. Aqui diferente de Alice, eles não tem a oportunidade de rever/refazer seus passos por si mesmo e chegar a um final feliz. Segue na vida ‘aos trancos e barrancos’ com mais decepções do que sucesso.
Como seria esperado, Tim Burton é o fragmentador de imaginários. Desde ‘Edward Mãos de Tesoura’ e ‘Os Fantasmas se divertem’, este diretor revisita contos e livros da literatura mundial inutilizando expectativas ou memórias. Não há um tom negativo nisso, apenas ele pincela exageradamente histórias seculares e, em muitos casos, a surpresa é admirável e estonteante, ainda que frustrante.
Assim é Alice... Imagens densas, cores quentes e exóticas. As primeiras cenas apresentam-se opacos, sem vibração e insosso. De novo, me vi diante das histórias de muitos de meus alunos: famílias que perderam o status; famílias em que um dos pais é um sonhador e joga tudo ou se droga muito; famílias cuja doença ou violência matou um dos responsáveis; família que investe em laços matrimoniais por interesse; famílias cuja violência é a tônica; famílias estranhas aos alunos etc.
De alguma maneira, a família, ponto nevrálgico do processo educativo, está remexida, desequilibrada, sem parte da base. E sabemos, em toda família, há jovens e crianças nos quais não pensamos quando tragédias, separações, discussões ou mesmo papos de adulto acontecem em frente a elas. Mas eles estão ali, atentos, absorvendo e aprendendo o sentido do ‘não’ sem mediação ou intermedição.
Eu poderia falar que eles aprendem o fingimento porque o percebem em casa. Mas o que se dá é uma indiferença emocional. Eles crescem entre aqueles que ignoram: ignoram a cultura, o respeito, a escuta, o diálogo. Não vai aqui denúncia ou crítica, apenas um esclarecimento sobre as convivências de milhares de jovens muito relacionadas à sobrevivência financeira e não emocional. Entre um e outro, hoje, o dinheiro fala mais alto sim. E meus alunos chegam à escola ou chegam a mim repletos de (pré) conceitos (inclusive cognitivos) duros de dirimir ou extirpar.
Meu trabalho? Ensinar Literatura!
Profa Ms Claudia Nunes