Sentada em sua sala recém-construída, Simone pensa: ‘depois de 08 anos de casamento, estou sozinha’. O casamento não acabara. Rodrigo estava no chuveiro se aprontando para uma noite de festa: seu chefe o convidara para um happy hour. Depois de tantos anos de trabalho duro, Rodrigo fora convidado para um evento de diretores da empresa e por isso cantava bravamente no banheiro. Eles adoravam festas, badalações e encontros com amigos e família, mas um evento da empresa era diferente, havia um tanto de tensão e expectativa, afinal, como casal-casado, fariam sua primeira aparição ‘profissional’.
Diante de suas pernas bem torneadas e das fotografias espalhadas pelas paredes, Simone sabia que sua relação estava em crise. Era preciso parar e dar um tempo. Suas trajetórias juntos tinham mais sucesso que problemas. Em frente às adversidades iniciais, estavam num tempo de mais frescor, liberdade e carinho. Ainda assim, no redemoinho complexo e crescente das superações, algo se quebrara e ficara sem remendos. Então, ‘como sair de cena? Ou melhor, como modificar sua cena?’ – ela se perguntava.
Enquanto o relógio ‘tiquetaqueava’, seu olhar enevoou-se por sentir um futuro incerto dentro de uma relação certa. O tempo passa... passava... passou... Em cada toque, ela se pergunta: ‘será que eu quero o fim?’, ‘será que desejo ficar longe de Rodrigo?’, ‘o que está acontecendo comigo?’. Simone lembra as palavras de uma amiga, anos atrás, num show de rock: ‘ah, crise eu resolvo com hiatos estratégicos! Se eu sinto que a ‘barra tá pesando’, construo hiatos estratégicos e sigo em frente’. Na época todos riram, mas tímida, Simone não perguntou o que eram esses hiatos. ‘Mas será que estava precisando deles?’ Ela não sabia.
De onde estava, percebeu que seu aparador estava com poeira, sua cortina estava com a barra levemente puída e a janela se mantinha fechada. ‘Hiatos estratégicos... interessante’, pensava ela. ‘Será que saberia inventar algo a Rodrigo? Ou se afastar de Rodrigo? Ou desaparecer da vida de Rodrigo?’ – estava desconfiada de si mesmo. Lembrou-se que, no mural da universidade, havia um cartaz anunciando um congresso em Foz do Iguaçu dali a 04 dias. Algo em seu corpo vibrou: hiatos estratégicos...
Com a naturalidade de sempre, descruzou as pernas e ampliou o sorriso. Se há uma crise no ar, sua alternativa era renovar a atração para espairecer ou para reestruturar sua vida. Ela estava no centro da própria sala, no centro da própria memória, muito cansada de só pensar e resolvida: ela não vai à festa. Num impulso grita: ‘Rodrigo, eu não vou mais, estou cansada e estranha, eu não vou!’. Sem pestanejar, Simone se dirige ao quarto e começa a trocar de roupa: ‘não pode ser castigada por assumir uma verdade’, reconhecia.
Depois de tanto tempo, trocar de roupa é se desmanchar, se descascar das mesmas coisas sem vergonha. Quando nada flui bem, o jeito é se transformar: da maquiagem mais forte à plástica mais incisiva, a idéia é marcar encontro com outra pessoa e experimentar outros espelhos. Era hora de se mexer. Existia um mundo lá fora totalmente desconhecido por ela e que agitava seu imaginário.
Pouco a pouco, em frente ao espelho, Simone se despe. Que sensação boa se despir. A cada peça retirada a sensação de embates descartados, vaidades abandonadas, crescimento da intuição e planos revisitados. Com o casamento, a maior exigência (e sua maior dificuldade) era contornar as tensões e aceitar a presença do cotidiano, com amor e sedução!
Rodrigo era um cara positivo, esportista, falante, brincalhão e que levava muito a sério tanto a relação quanto a profissão. Nas poucas vezes em que discutiram a cama revelou-se bom campo de ‘acertos’. Mas Rodrigo tinha um defeito: era prepotente. Ela pensara que esta atitude se restringiria ao ambiente de trabalho porque, desde muito cedo, Rodrigo assumira muitas responsabilidades. Ledo engano! Rodrigo trazia trabalho para casa e, em alguns momentos, agia tal e qual um soberano com suas concubinas. Ela odiava isso! Diante de seu corpo no espelho, Simone vê ruborescer seu rosto: ela odiava isso! Ela vinha de família de professores de filosofia e arte, logo seu olhar sobre as pessoas era mais ponderado, aberto e dialogal. ‘Qual é o sentido de Rodrigo hoje?’ – teve vontade de gritar.
Três anos antes, o princípio do fim: em suas conversas mais densas, pareciam dois estranhos que mal se observavam. Era o marco zero dos desentendimentos. Nesta hora, a voz do pai ecoava em seus ouvidos: ‘querida, a prepotência é a burrice tentando se fazer passar por uma coisa válida’; e Simone abandonava o palco das discussões para tomar um longo banho. Como defesa, assumiu essa atitude: longos banhos para se liberar dos envolvimentos. Mas mesmo assim, uma pergunta ficava sem resposta: quem era aquele homem que dividia sua vida, além do grande amor da juventude?
Um barulho a despertou de sua nova vida: nada, impressão, besteira. Despertar para o que se é não ocorre com remendos ou colagens internas, ao contrário, potencializa fragmentos de emoções esquecidas e revigora uma grande vontade de respirar o perfume das lembranças juvenis.
Agora, nua, Simone se olhava atentamente: seus arrepios são saudáveis e razoáveis. Não há necessidade de cordialidades e silêncios. Sem roupas o jeito é assumir hiatos estratégicos e se testar na novidade de outros sentimentos. Simone quer uma ‘pegada’ original e sem abordagens antigas. Ela quer se permitir luzes diferentes, mesmo as mais ofuscantes. Ela está inédita e plena.
Repentinamente um cabide cai: é seu vestido de casamento. No chão, suas decisões, seus desconcertos, suas dúvidas e seus desejos. A vida lhe atravessa como uma sucessão de ‘saias justas’ em que foram precisas adaptações. No chão, sua liberdade e suas maiores cobranças. ‘O que faço?’ – ela chora. Num movimento, volta-se ao espelho e grita: ‘Ai!!!’
Rodrigo está às suas costas, todo molhado, e pergunta:
‘O que você vai fazer agora?”
Profa Ms Claudia Nunes
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