terça-feira, 15 de novembro de 2011

A CANECA E O ABISMO

No escuro de um bar da cidade, uma caneca vazia encara uma figura silenciosa. Ao redor, muitas pessoas sorriem umas para as outras e contam histórias sem muitas explicações. Em cada história, diferentes seduções e muitos burburinhos. Ali ninguém se lembra de suas posições sociais, todos são personagens em busca de enredos afetivos fortes. É uma rede amorosa cuja perspectiva é conquistar mais e mais pares desejantes de histórias de uma noite, de um fim de semana ou de uma vida inteira. Nada interessa, nada é sério, ali a idéia é ‘ficar junto’ e se experimentar em diferentes encontros e atrações. Num canto mais íntimo, uma caneca vivia aquilo como se fosse uma total perda de razões.

Não havia polidez ou dúvida nos movimentos, as pessoas esvaziavam emoções e suas bocas procuravam compor outras bocas com certa urgência. E ali estava a caneca, sustentando o tempo, a memória e o desejo de um alguém que, de repente, perdera o prumo. Uma caneca com trajetória indefinida e cheia de surpresas. Indo da boca à mesa, a caneca sentia que a figura amara muitos e, agora, amava por um motivo e grande intensidade. Era uma boca ansiosa em uma caneca fria, mas esperta.

Enquanto a caneca tivesse função, o desejo era um ponto de chegada. A caneca era feminina e, toda noite, ela precisava ajudar a compor novas sensações e histórias. Mas a figura em sua frente, dentro de um carro, não se movia, mal respirava. Susto fora seu sentimento. Surpresa fora sua emoção. Gozo interrompido e um gosto estranho eram sua vida, novamente... No trajeto de volta, ela revivia seus 17 anos.

A caneca presenciava a agonia de uma decepção. A figura alisava a caneca cheia de intenções, cheia de incompreensões, cheia de insatisfações. Diante da caneca, depois de 20 anos, um coração arranhado novamente. No fundo a figura sabia: ela se deixara levar pelo doce abraço das expectativas. Viver um grande amor não era fácil e nem produto de artimanhas artificiais. Viver um grande amor, mesmo o mais romântico ou idealizado, precisava da oportunidade, da necessidade e da vontade dos dois. E a caneca sabia: em sua frente, uma face e um olhar em parte; um brilho e uma maquiagem que se acinzentaram, por inocência e esquecimento.

Não era um corpo, era uma pele criada por outros amores para disfarçar o amargo das indecisões e interrupções do amor romântico. A caneca e a figura eram mulheres surfando por histórias e emoções sem gosto definitivo ou próprio: e todas aceitáveis. Mesmo diante da maturidade, as duas estavam quase vazias. Nenhuma das duas se entendia. Tudo preparado. Tudo montado. Mas ambas se viam, de novo, em compasso de espera. Depois de encurtar os espaços, ambas se colocaram disponíveis a um alguém imaginário que não soube aproveitá-las e isso doía demais...

Diante da desilusão, a certeza da presença do hábito e do condicionamento: diante da caneca, a figura chora enfim. Sorri para o mundo, bebe o resto de vinho, mas chora a doçura de um tempo e de um corpo ainda intocáveis daquele amor amante tão esperado. A caneca sabia a verdade, mas a figura, não. Esta era atraente, animada, espontânea, mas, com a caneca, se apequenava e se magoava: ela estava com 17 anos. E, de novo, recebera o dom de iludir e, de novo, se esfarelava diante do Outro.

Sem nenhum pudor, beija a boca da noite suspensa e leva a caneca para o quarto. Não iria perder uma amizade por nada: estava tudo bem... No sofá, depois do banho, a figura tenta dormir, mas a caneca é enjoada e lhe encara. Mesmo de olhos fechados, a figura sente a presença da caneca e sua melancolia cresce: não tem explicação. Houve um pacto, uma doação, uma viagem, uma liberdade, uma oportunidade. Ela nunca o amara em definitivo. Ela nunca provara o gosto do segredo. Ela se sustentara em preliminares afetivas. Ela era uma mulher-figura em expectativa anos a fio, ali, sozinha e brilhante. Mas, embora cheia de intenções, ela perdera sua atitude e o jeito era silenciar-se.

Sozinha, em sua cama, procura lembrar o que fez de tão errado para desmerecer a definição amorosa. Ali, num quarto de hotel, depois dos filhos criados, se incomodava com a pressão da caneca por um laço insatisfeito. Como dar nós nos sapatos e continuar a vida tendo pendências emocionais tão profundas? Apostara em seu sonho. Apostara em sua maturidade. Apostara em sua mente engenhosa. Apostara em roupas, maquiagem, perfume e charme. Só se esquecera de uma coisa: a caneca. Do fundo de seu coração, não imaginara uma caneca, como seu único ganho, na noite da recompensa dos seus 17 anos. Ela era a surpresa do seu fim de noite. Cheia de vinho, ela era a alegria de suas mãos e boca. Mas, nela, as lágrimas de um momento nunca ultrapassado.


         O som de uma música romântica preenche sua mente. Com displicência, procura seu celular: queria reencontrar as pistas que lhe levaram até ali. Será que se enganara tanto assim? Por que não percebera as mesmas ações de antes? Sua memória abria ainda mais a ferida recém aberta. Marcações feitas, declarações pressentidas, toque de mãos, papo cabeça, beijo na boca, muitos beijos na boca, mãos brincalhonas e... apenas. Diante de um último gesto ou passo, a liquefação da emoção de um jeito muito inseguro. De volta ao quarto, pedaços de sentimentos e a caneca. A realidade lhe dera um presente para não mais esquecer: a caneca.

Durante a noite, seu corpo está inquieto. É o desentendimento mexendo com o subconsciente. Ao correr para o encontro dos seus longos 17 anos, sua paixão solitária ganhara profundidade. Nenhum impedimento, nenhum desconforto, nenhum estresse, apenas a beleza do que se chama ‘conjugal’ procurando a noite do prazer pleno. Mas as mesmas névoas da insegurança adolescente de 20 anos atrás não se desfizeram. As gorduras sentimentais do coração não foram eliminadas. E ela caminhara de volta à realidade abismal como um recipiente sem uso que anseia por líquidos hidratantes na pele ou em suas encostas: ela e a caneca são a mesma coisa, olhando um precipício sem fundo.

Na passagem da noite, a sensação de desamparo lhe faz voar pelas nuvens de uma história sem fim e que projeta o corpo pelos abismos dos amores (in)concebidos e cristalizados. A paixão retumbante não aconteceu. A paixão mitificada não a fizera levitar. Sua paixão tivera desatino, mas não alcançara seu destino. Sua paixão ganhara uma longevidade disfarçada e cheia de convenções. Ela e a caneca foram jogadas num abismo sem energia. Passaram por um confronto emocional forte. Todo o coração sacolejava. Todo o corpo se debatia. Elas, agarradas uma a outra, se sentiam desconfortáveis: o abismo era seu pior medo e sua melhor realidade, afinal as emoções precisavam ser replantadas e cuidadas, de novo, do início...

Com a caneca colada no corpo, a figura fora jogara sem atenção aos novos tempos e outras intenções. Ela não se esfarelava pelo acaso porque fora esbofeteada pela vida real. Ela se distraíra no tempo e assumira aventura da liberdade sem medo como certeza da emoção: e o abismo fora sua sorte. Por que o Outro não assumira o compromisso combinado? Por que o abismo se tornara sua herança? Por que a caneca se prendera em seu corpo? Em queda livre, não adiantava criar um andaime de ‘porquês’, tinha que bater no fundo e voltar sem procurar encaixes ou quebrar a caneca. Se não tivera méritos, o jeito era ‘partir para outra’.

Com o sol já batendo em seu rosto, se levanta agitada, guarda sua caneca, faz sua maquiagem, prepara seu cabelo e sai em busca de outros ganchos de prazer para sua história de vida, afinal voltara aos 17 anos...


No hall, um recado foi esquecido: “Faça um bom retorno. Consegui terminar meu artigo hoje. Ufa! No seu retorno aqui, será diferente...”

Profa Claudia Nunes

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