Embora haja
estudos profundos sobre o cérebro e sua plasticidade diante do volume de
informações, ainda se discute os limites da memória ligada a essa forte
adaptação cerebral. Ainda que haja memórias artificiais favorecendo a convivência
entre pessoas, discute-se a perda da memória em assuntos / aspectos cotidianos
como guardar número de telefone de um amigo, achar chaves de casa ou do carro,
compreender conceitos e lembrar datas importantes. Alguns chamam isso evolução;
outros de transformação; outros ainda de ‘simulação’ alienante dos
‘seres-no-mundo’. Porém o que vem acontecendo com a transformação da memória e
das formas de memorizar é o esquecimento do ‘eu-do-outro’.
Além do processo
cognitivo cujos resultados são profissionais de sucesso, novas tecnologias e
avanços científicos; as informações sentidas (emoções) tornam a memória um
ambiente associativo dos afetos mais profundos, duradouros, complexos e
utilizáveis no decorrer da vida. E as memórias do ‘eu-do-outro’ almagamam
formações, interesses, valores e aprendizagens em/no diálogo. Nesta
perspectiva, o valor da memória vai além do simples registro factual de
informações por associações interessantes; ela se transforma em um sistema em
que se estabelecem pontos de contato com o mundo por conexões emocionantes e
desafiantes: e assim humanos aprendem.
Não há rede
social, por exemplo, sem memória; e rede social não é apenas lista de contatos;
é um território cujos contatos têm raízes nas experiências afetivas reais,
ainda que mínimas ou articuladas por outros ‘eus’. Daí, em nosso cotidiano,
‘salvar um contato’ é incorporar à memória outras sugestões de mudança, de
entendimento, de compreensão e de solidariedade; é uma possibilidade de se
construir pontes e fontes de energia de futuro; é o início de um processo de
alfabetização emocional para futuras relações e interações.
Só que o mundo
apresenta distrações, ruídos nas comunicações, e o que era memória / experiência
positiva de ser um ‘eu-com-os-outros’, reconhecendo o ‘eu-do-outro’, torna-se
incerteza, receio, estranheza do ‘ser-em-si’. Instala-se a angústia, a
ansiedade e a incompreensão. De repente não sabemos mais; há um refluxo de
informações na memória procedimental e de longo prazo; e perdemos o
conhecimento: um chão por onde pisamos forte, ainda que com cuidados.
Instala-se o famoso ‘branco’ e o cérebro se ressente e se desgoverna um pouco.
Mesmo as memórias afetivas precisam de treino para se revitalizarem e se
manterem vivas e com qualidade, ainda que, por vezes, a distância.
Seres humanos
são defeituosos e erram. Envoltos em emoções intensas ou negativas em longo
prazo, reinventam formas de agir, sentir e pensar para se proteger e se
defender das novidades com ‘unhas e dentes’: a isso chamam de ‘mudança’
responsável e necessária. E, neste instante, há esquecimento sobre o
‘eu-do-outro’ cujas emoções pouco mudaram: as experiências de um não são as
experiências do outro. O que fazer? Ou como reagir? O diálogo do eu e do outro
exige a convergência das memórias com foco e concentração, sem dependências e
exigências. Uma das belezas de se construir memórias é a liberdade de expressão
e de reação (diálogo com a vida do/com os outros) em que se estabelece, por
exemplo, a amizade.
Mas atenção: a
memória do ‘eu-do-outro’ precisa ser respeitada, mesmo em tempos emocionais
obscuros. Respeito é o ponto de equilíbrio de quaisquer reflexões sobre os
comportamentos mais reativos. Quando se aceita o dilema da memória do
‘eu-do-outro’, em compasso com o desenvolvimento pessoal, duas palavras devem
ser bem entendidas: expectativa e vulnerabilidade. Se pensarmos o cérebro como
uma máquina, cuidado com o seu manuseio emocional: nada pode quebrar, molhar,
queimar ou pifar. Os riscos negativos às memórias serão grandes demais e
impossíveis de ignorar. Quando se perde a memória do ‘eu-do-outro’ ascendem
repensamentos sobre confiança, credibilidade, gratidão e parceria. São
sensações ruins, incomodas e que podem provocar outros apagões e
constrangimentos sempre prejudiciais às relações, na sequencia dos dias.
As memórias
precisam ser vigiadas de perto. Ou seja, as reprogramações cerebrais precisam
acontecer periodicamente para que as memórias sejam ‘arejadas’ ou ‘oxigenadas,
e se tornem permanentes. Os esquecimentos podem ser evitados, principalmente
quanto ao ‘eu-do-outro’. Não se pode perder o contato com a natureza humana:
mude o rumo da prosa; aceite imperfeições; faça silencio de si; seja livre para
sorrir junto; desafie intelectualmente; desapareça um pouco; torne-se desejado;
disponibilize-se; ajude; reflita; não julgue; seja estrategicamente criativo.
Basta parar e pensar: achemos um equilíbrio entre emoção e razão SE valer a
pena.
Nos tempos
atuais, frustrações e decepções tem muito mais a ver com a perda da noção do
‘eu-do-outro’ do que quaisquer outras razões. Ai outra percepção: acreditar em
superações é viver com perdas e esquecimentos. Pensar a memória apenas ao nível
intelectual é balela. O esquema crescente de agressividades e violências que
observamos no cotidiano mundial é produto do esquecimento do ‘eu-do-outro’;
falta de ‘escuta sensível’ ou do ‘silêncio de si’ do outros eus que se
relacionam com o ‘eu-do-outro’. E por isso as memórias artificiais não prestam,
por exemplo, para agregar valor ao humano dos humanos que chamamos de
‘contatos’ ou de amigos.
Cuidado... Sem a
prática, estamos nos ‘destreinando’ para a experiência e manutenção dos afetos.
Os HDs mentais estão se desconfigurando ou entrando em conflito; estão se
tornando rasos e vazios de conteúdo, e as perdas podem ser irreversíveis
simplesmente porque está se perdendo o valor das memórias do ‘eu-do-outro’.
A perda da
memória do ‘eu-do-outro’ é a perda da empatia e isso é triste em quaisquer
relações.
CLAUDIA
NUNES
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