quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O QUE ACONTECEU ENTRE 1959 e 2011??

PARA REFLETIR

Entre 1959 e 2011

Cenário 1: João não fica quieto na sala de aula. Interrompe e perturba os colegas.

·        Ano 1959: É mandado à sala da diretoria, fica parado esperando 1 hora, vem o diretor, lhe dá uma bronca descomunal e até umas reguadas nas mãos e volta tranqüilo à classe. Esconde o fato dos pais com medo de apanhar mais. Pronto.
·        Ano 2011: É mandado ao departamento de psiquiatria, o diagnosticam como hiperativo, com transtornos de ansiedade e déficit de atenção em ADD, o psiquiatra receita  Rivotril. Transforma-se num zumbi. Os pais reivindicam uma subvenção por ter um filho incapaz e processam o colégio.

Cenário 2: Luis, de sacanagem quebra o farol de um carro, no seu bairro.

·       Ano 1959: Seu pai tira a cinta e lhe aplica umas sonoras bordoadas no traseiro. A Luis nem lhe passa pela cabeça fazer outra nova "cagada", cresce normalmente, vai à universidade e se transforma num profissional de sucesso.
·        Ano 2011: Prendem o pai de Luis por maus tratos. O condenam a 5 anos de reclusão e, por 15 anos deve abster-se de ver seu  filho. Sem o guia de uma  figura paterna, Luis se volta para a droga, delinqüe e fica preso num presídio especial para adolescentes. 

Cenário 3: José cai enquanto corria no pátio do colégio, machuca o joelho. Sua professora Maria, o encontra chorando e o abraça para confortá-lo...

·        Ano 1959: Rapidamente, João se sente melhor e continua brincando. 
·        Ano 2011: A professora Maria é acusada de não cuidar das crianças. José passa cinco anos em terapia pelo susto e seus pais processam o colégio por danos psicológicos e a professora por negligência, ganhando os dois juízos. Maria renuncia à docência, entra em aguda depressão e se suicida...

Cenário 4: Disciplina escolar

·        Ano 1959: Fazíamos bagunça na classe... O professor nos dava uma boa "mijada" e/ou encaminhava para a direção; chegando em casa, nosso velho nos castigava sem piedade e no resto da semana não incomodávamos mais ninguém.
·        Ano 2011: Fazemos bagunça na classe. O professor nos pede desculpas por repreender-nos e fica com a culpa por fazê-lo. Nosso velho vai até o colégio dar queixa do professor e para consolá-lo compra uma moto para o filhinho.

Cenário 5: Horário de Verão.

·        Ano 1959: Chega o dia de mudança de horário de inverno para horário de verão. Nada acontece.
·        Ano 2011: Chega o dia de mudança de horário de inverno para horário de verão. A gente sofre transtornos de sono, depressão, falta de apetite, nas mulheres aparece até celulite.

Cenário 6: Fim das férias.

·       Ano 1959: Depois de passar férias com toda a família enfiados num Gordini ou Fusca, é hora de voltar após 15  dias de sol na praia. No dia seguinte se trabalha e tudo bem.
·        Ano 2011: Depois de voltar de Cancun, numa viagem 'all inclusive', terminam as férias e a gente sofre da síndrome do abandono, "panic attack", seborréia, e ainda precisa de mais 15 dias de readaptação...
   
Cenário 7: Saúde.

·        Ano 1959: Quando ficávamos doentes, íamos ao INPS aguardávamos 2 horas para sermos atendidos, não pagávamos nada, tomávamos os remédios e melhorávamos.
·        Ano 2011: Pagamos uma fortuna por plano de saúde. Quando fazemos uma distensão muscular, conseguimos uma consulta VIP para daqui a 3 meses, o médico ortopedista vê uma pintinha no nosso nariz, acha que é câncer, nos indica um amigo dermatologista que pede uma biópsia, e nos indica um amigo oftalmologista porque acha que temos uma deficiência visual.  Fazemos quimioterapia, usamos óculos e depois de dois anos e mais 15 consultas, melhoramos da distensão muscular.

Cenário 8: Trabalho.

·        Ano 1959: O funcionário era "pego" fazendo cera (fazendo nada). Tomava uma regada do chefe, ficava com vergonha e ia trabalhar. 
·        Ano 2011: O funcionário pego "desestressando" é abordado gentilmente pelo chefe que pergunta se ele está passando bem. O funcionário acusa-o de bullying e assédio moral, processa a empresa que toma uma multa, o funcionário é indenizado e o chefe é demitido.

Cenário 9: Assédio.

·        Ano 1959: A colega gostosona recebe uma cantada de Ricardo. Ela reclama, faz charminho mas fica envaidecida, saem para jantar, namoram e se casam.
·         Ano 2011: Ricardo admira as pernas da colega gostosona quando ela nem está olhando, ela o processa por assédio sexual, ele é condenado a prestar serviços comunitários. Ela recebe indenização, terapia e proteção paga pelo estado.

Pergunta-se:
EM QUE MOMENTO FOI, ENTRE 1959 E 2011, QUE NOS TRANSFORMAMOS NESTE BANDO DE BOSTAS?

domingo, 20 de novembro de 2011

PAPO DE RESPONSA: conspiração de sensibilidades


“Esforço-me por descobrir como avisar meus companheiros... para dizer na hora certa uma simples palavra, uma senha, como conspiradores: Unamo-nos, mantenhamo-nos juntos, juntemos nossos esforços, criemos para a Terra um cérebro e um coração, emprestemos um significado humano à luta sobre-humana” (Nikos Kazantzakis)

Depois que voltei de Curitiba, assumi uma conspiração. Depois de Curitiba, de novo, tive a necessidade de reler o livro ‘Conspiração Aquariana’, de Marylin Ferguson, em seu capítulo ‘A Conspiração’. Como este livro me arrebata e atrai vez por outra e em momentos de ‘repensamento’. Livro de cabeceira? Talvez...

Quarta e quinta. Dois dias em que estive tensa e preocupada. Sexta em diante: dias de estupefação com o que ouvi. Difícil dialogar com os meus sentimentos. A profusão de pensamentos positivos é enorme. Eu promovi sobressaltos e fui sobressaltada acintosamente. Eu pensei em provocar o outro e estou provocada em inúmeros pontos das minhas emoções e sensibilidades. Estudo transformações tecnológicas e fiquei espectadora de um acontecimento de repercussão e grande mudança de uma simplicidade gratificante. Hoje, em duas escolas em que trabalho, houve palestras do projeto ‘Papo de Responsa’, grupo parceiro do Afroreggae. Público alvo em princípio: primeiros anos do Ensino Médio noturno.

Dois homens: um policial e um ex-detento já ressocializado juntos compartilhando mudanças. Não sei exatamente descrever seus ideais ou verdades internas. Aliás, nem preciso. Sei que a idéia de mudança é abaladora, sofre saraivadas de questionamentos, mas vem acontecendo apesar de. Como diz em seu site (www.papoderesponsa.com.br), estive diante de “vozes de pessoas que compartilham da mesma inquietude e que propõem mudanças”. Um policial civil e um ex-detento ressocializado são seres sociais, logo sofrem, na pele também, suas mazelas.

Do olhar mais intenso à fala mais incisiva, as experiências assustam, desequilibram e incomodam. Como diz o coordenador do Projeto, Roberto Chaves: ‘estranho...’ Este é o terreno pleno para irrigação de seus (do projeto) ideais na tentativa de cultivar uma nova mentalidade dentro de uma realidade tão violenta e agressiva. Uma mentalidade que acredita na capacidade de se sonhar de olhos abertos, com responsabilidade, comprometimento, escolhas coerentes e muito respeito às verdades das pessoas. Sem adivinhação ou risco desnecessário, é preciso dar uma reviravolta nas zonas de conforto para se estabelecer uma consciência significativa dos papéis a serem desenvolvidos em torno de tudo e de todos. São todos conspiradores!

Ao reler Ferguson, acredito que são todos conspiradores. Mas em que acreditam? Para onde estão nos levando? No imensamente poderoso e amplo leque das possibilidades humanas, sabemos que há uma rede de pessoas trabalhando para criar um diferente tipo de sociedade baseada no potencial humano à solidariedade, ao diálogo, à escuta, ao silêncio de si e à compreensão do outro. Em diferentes instituições culturais: medicina, política, negócios, educação, religião, saúde, segurança e família, cada vez mais pessoas estão acreditando que o papel crucial das tensões e crises pode levar a uma nova abertura ao próximo passo da evolução humana: amor ao próximo, comunhão com o outro, mais compreensão quanto às mazelas do outro, mais responsabilidade sobre as próprias atitudes.

Estas pessoas, além dos sinais do inferno, buscam a realização da esperança. E hoje, cada vez mais um pouco, acredito que o projeto ‘Papo de Responsa’ possa refletir esse ideário de esperança em pessoas melhores! Isso! Conspiradores que pensam e divulgam pessoas melhores. Pensam em pessoas com mente aberta o suficiente para experimentar ser melhor mesmo se diante dos piores preconceitos ou repressões.

Não há utopia quando se está predisposto a experimentar ou simplesmente respeitar o próximo. Não há cansaço, displicência ou indiferença quando encontramos grupos de pessoas predispostas a conspirar de cara limpa e empolgados quanto a possibilidade de (se) transformar um pensamento, uma atitude, uma vida, uma família; ou “transformar o mundo com justiça em favor do coletivo”. E as palavras “palavra, diálogo e exemplo tornam-se as principais energias em favor da realização dos sonhos. Nada é mero acaso!” É paradoxal? É contraditório? É estranho? E o que não é assim nos dias de hoje? O que basta é o valor e a razão dessas ações. O que basta é acreditar que cada um tem (e deve buscar em si) “um instrumento de transformação e esta depende da vontade particular de não fechar os olhos para o que se passa lá fora”.

No ‘Papo de Responsa’, há um conluio entre seus integrantes e um conluio é um movimento de CONSPIRAÇÃO a favor de um bem comum. Infelizmente temos a tendência a ler com conotação negativa esta palavra. Mas que tal pensá-la literalmente apenas? CONSPIRAÇÃO, segundo Ferguson, significa ‘RESPIRAR JUNTO’. É a construção de uma ligação íntima e forte, no caso, entre pessoas para o bem, para uma qualidade maior nas relações entre pessoas diferentes ou com papéis sociais diferentes. Neste sentido, o ‘Papo de Responsa’ destrói a contradição acima referida e o sentido negativo da palavra sempre presente, discutida, pensada em mais e mais redes de pessoas em diferentes lugares onde o olhar, a voz e o tato alcançarem.

De outra forma, o ‘Papo de Responsa’ é o âmago daquela contradição porque une pessoas, segundo regras sociais, de mundos diferentes. Um policial civil e um ex-detento reintegrado se unem para inaugurar novos procedimentos amorosos às formas de relação social até mesmo com aquelas instituições. Apesar do choque do uniforme, da arma e da experiência marginal (fora dos padrões da lei), aos alunos é justamente isso que provoca a (re)abertura na escuta tão difícil nos dias de hoje. De novo: fato que o Coordenador do Projeto, Roberto Chaves, chama de: estranho... Todavia, é a aceitação do estranhamento que pode provocar, trabalhar e difundir mudanças em nosso status quo com mais energia. É o estranhamento que pode nos tornar, também, ‘conspiradores’ a favor de uma nova ordem carioca (estadual).

Sentada diante das duas vozes e dos múltiplos olhares, tenho um insight e este me reconduz à Ferguson e sua conspiração: mais do que apresentar ‘por que fazer’, o ‘Papo de Responsa’ propõe ‘o que fazer’ e isto é um mergulho profundo no desconhecido diante de um conhecido que nos tem falhado absurdamente. É uma conspiração que “visa a uma modificação na consciência de um número crítico de indivíduos, suficiente para produzir uma renovação da sociedade”. Não somos platéia dos movimentos do mundo. Não devemos apenas apontar pontos inseguros ou descuidados do cotidiano. Não temos muito o que pensar. Nós mesmos somos o futuro dialogando entre si no presente. Portanto não dá para esperar tempos de bonança sem fazer nada.

Em ambas as escolas, tive alunos atentos às palavras como nunca vi. Mesmo os papinhos transversais ou risinhos fora de hora, estes não eram distrações, eu os entendi como reações ao estranhamento das palavras e das emoções que teimavam em acontecer sem seus controles. O novo será sempre recebido com frieza, descrédito e até com certa zombaria e hostilidade, mas será recebido e isso é um grande começo. Em tempos de geração X, Y e Z; em tempos de novas tecnologias e novos paradigmas; em tempos de nativos e imigrantes digitais; em tempos de discussões sobre as tantas gerações embutidas na sala de aula, o estímulo a um novo pensamento ou uma nova atitude diante dos outros ou da diversidade precisa de certos choques, muitos sobressaltos, sinceros silêncios e muito carinho. É preciso realmente que se criem as ondas de Toffler. Lembremos: não se pode resolver problemas atuais com o instrumental antigo. Segundo Ferguson,
“As possibilidades de salvação nesse momento de crise não são a sorte, a coincidência ou a crença naquilo que se deseja verdadeiro. Armados com uma compreensão mais elaborada de como a mudança se produz, sabemos que as próprias forças que nos levaram à beira de uma catástrofe planetária trazem em si as sementes de renovação” (p.29).

É sabido que adolescentes não sabem lidar bem com os incômodos e se remexem muito. Mas são particularmente desinibidos e adeptos à essência transformadora. Mas também ainda não confiam em si mesmos e por isso são seduzidos pelas performances (e vontades) do outro. Um perigo constante. E justamente ai que se configura o ambiente a ser alcançado pelo Papo de Responsa. É a novidade de uma escola brasileira ainda sem grandes mudanças ou oportunidades aos mais jovens em termos de demonstração de proximidade, afetividade e entendimento das questões do outro sem separatismos, preconceitos ou deboches, mas voltada à uma transformação em doses mínimas, principalmente de confiança e respeito.

Duas salas em dois dias, de um novembro sempre cheio de evasões por causa do mercado de trabalho natalino, lotados de curiosos ouvintes silenciosos. Não era filme, não era mágica, não era bronca, não era a escuta de quaisquer desqualificações intelectuais aos berros. Foi a escuta das vozes do real e das possibilidades. Outra vez Ferguson, “os conspiradores nos instam a retomarmos o poder que de longa data cedemos ao hábito e à autoridade, a descobrir, por trás da confusão, de todo o nosso condicionamento, o núcleo de integridade que transcende convenções e códigos” (p. 34). Foram momentos em que os alunos se viram refletidos naquelas experiências, puderam acreditar que são possíveis e capazes e, basicamente, experimentaram a expressão do que sentem sem medo de serem julgados. Foram momentos de sentir e refletir sob a ótica do próprio mundo e atitudes até aquele momento. Mais uma vez Ferguson me suporta: “somente aquilo que sentimos profundamente pode nos modificar. Argumentos racionais, por si só, não podem penetrar as camadas de temor e de condicionamento que compõem nossos defeituosos sistemas de convicções” (p. 35).

Fim de noites. Sensação de alegria. O Papo de Responsa ofereceu oportunidades reais para que as pessoas experimentassem mudanças de consciência, senão ofereceu a oportunidade de que os alunos voltassem ao seu cotidiano, modificados: pensando e discutindo o que foi dito e até o que não foi dito. E isso foi apenas a primeira onda. É a nossa mais profunda e necessária conexão sem mensuração. Em espiral voltamos para casa, torcendo para que a essência dos ideais apresentados tenham chegado a um número enorme de mentes e que isso possibilite a vontade de tentar fazer as escolhas certas.

Obrigada Papo de Responsa!

Profa. Claudia Nunes

APEGO ÉTICO

À minha amiga Fátima Ornelas

De tanto falarem em DESAPEGO, outras questões me incomodaram: o que é apego e por que é tão prejudicial ao sujeito? Estou de malas prontas para viajar e, de repente, uma sensação de insegurança: será o apego? Ao receber um convite de trabalho super legal, fico indecisa: será o apego? Diante de uma transformação radical em minha vida pessoal, me percebo depressiva: será o apego? O que é tão dramático em se apegar às coisas? Por que não posso aceitar que certas coisas (valores, conceitos, comportamentos) são boas para mim e por isso devo repeti-las sempre? Será isso apego? Será isso destrutivo ou meu grande esconderijo? Estou inconformada com essa lógica que demanda dos sujeitos processos de desapego enormes em detrimento de uma realidade ou de um contexto. Qual é o problema de se ter um apeguinho básico?

Estudos científicos afirmam que o ser humano age de qualquer maneira para sobreviver. E sobreviver não é um agarrar-se a alguma coisa? Não seria o tal do apego? É importante se transformar quando as dinâmicas e surpresas da vida nos acobertam de impasses e decisões. É duro reorganizar a mente e o corpo dentro de outro ambiente que não o costume e o hábito. Alguns dirão que isso gera sofrimento, eu penso que isso sim é o tal do desapego. É estar livre para limpar e revitalizar tudo o que se aprendeu para viver a experiência de certos riscos. Existencialmente isso não é catastrófico, isso é amadurecimento, vivência, conhecimento.

Hoje, diante de um amigo de luto por um amor perdido, eu me assustei com seu nível de desapego. Anos de convivência fiel à uma companheira; anos de luta para construírem sua família; e, em sua falta definitiva, o riso frouxo, o papo singelo, a sensação de liberdade no ar e muitos planos para o futuro. Quase palpável, presente estava o sentido do ‘antes ela do que eu’. Impressionante! E isso seria bom? Esse é o desapego bacana, positivo, que todos incentivam? O aluno vai à escola e dois dos seus três professores do dia faltam e ele sai feliz porque está livre, sem compromisso, desapegado. É isso mesmo? Que sentido as pessoas dão a essas palavras, pelo amor de Zeus? Eu, cada vez mais, tenho uma única certeza: a questão das mazelas pelas quais passamos está contida na palavra EXCESSO. Tudo em excesso é realmente prejudicial!

Desde pequena, por exemplo, aprendi a ter ética em tudo e com todos. Nenhum vacilo era permitido. Ética no trabalho, nas atuações, com os amigos, com os filhos, com as obrigações, com os desconhecidos, com as certezas, com os conceitos e valores, com a minha inteligência. Não eram permitidos deslizes, releituras, rebeldias: era seguir a ética e tudo ficaria bem. Infância, adolescência e maturidade, rígida, linha reta, ética. Que loucura!

Hoje, aos 50 anos, descubro que a vida não tem pontas limítrofes; descubro o quão quente pode ficar meu corpo próximo ao corpo do outro de repente; descubro que a questão do controle é balela; descubro que não dou conta da energia (ou da cabeça) do outro; descubro, em rompantes, outros jeitos de ser e pensar que tem sucesso também; descubro que ética é outro nome para o ‘bendito’ apego. Isso é arrasador em minha vida. Isso torna tudo o que se acredita um grande conjunto de posturas em crise. Sem cuidado, quase há um esfarelamento de mim mesma. Tudo é um susto só.

Sem ter o que fazer, eu me agarro. Eu me agarro num mundo pré-fabricado, já bem mapeado por mim e super confortável. Eu ajo como sempre. Mas o estrago está feito. Diante de um arranhão ou rachadura, o objeto de porcelana (eu) surge como outra coisa. Não quero entender que a ética seja permissiva, não é isso mesmo, afinal não vou me descaracterizar (perder o caráter). Ética é um bom modo de viver e conviver. Ética é a busca do melhor estilo de vida, tanto privada, quanto pública. Então se o mundo está mudando, eu não deveria fazer o mesmo com essa ética? Tal e qual afirmaria Clarice Lispector, o que me aconteceu é incorrigível. Não há a menor possibilidade de revisão porque não sou rascunho de nada. Sou hoje alguém com mais algumas marcas, logo nunca igual ao ‘sou’ de ontem. Então como fico eu diante da ética anterior? Fico agarrada para todo o sempre e perco os sabores dos dias seguintes? Fico destemperada (sem tempero) e firmo pacto com o ‘de sempre?

Não revelo o que me aconteceu porque não interessa. Porém não sei o que faço de mim hoje. Sou ética e nada desapegada. Ai mentira! Ser ética me determina como parceira das mudanças e o que está acontecendo mais me traumatiza do que me reinaugura. Logo, sem controle do ar ou do vôo, é hora de ser ética de outra maneira. Os ferrolhos éticos do passado nem chegam perto da formatação que venho adquirindo hoje em dia. E pior, eu fui em busca dessas diferenças, desses desassossegos existenciais, dessas maneiras esfoliantes de revitalizar a pele e a alma. Só não sei o que fazer comigo diante do que vejo, sinto ou ouço por dentro e por fora. Este sim é um apego pernicioso: o apego ético das certezas sucesso de público é desastroso. Leva mais aos erros do que aos acertos porque demoro demais para decidir, para me dar ups originais.

Estou pensando: tanto tempo dentro de um padrão genealógico que acreditei que eu era aquilo e o outro se tornou uma ilusão de ótica, um borrão na paisagem real. Meu olhar não ganhou o horizonte e avistou o Gigante Adamastor de Os Lusíadas. Meu olhar aprendente se fixou no umbigo a procura de uma (re)ligação qualquer sem abrir mão de quase nada. Tudo por questões éticas. Tudo por causa do apego. Máscara amorosa firme que não condiz com a verdade.

Hoje me aconteceu. De hoje em diante me acontecerão. Dentro da fala comum: preciso me desapegar. Até mesmo da ética, preciso me desapegar. Nada que me comprometa no mundo ou que me desgoverne completamente, não tenho idade mais para isso. Mas é preciso reencontrar o processo assimilador e integrador de tudo o que me aconteceu para entender emoções, gerar ações e viver um pouco mais. Não posso ficar presa às rotinas ‘de sempre’ por medo ou pensando demais sobre o que acontecerá depois do ‘pulo do gato’.

Agora de madrugada, o apego ético me tira o sono. A permissão para novos envolvimentos, estudos, amizades etc. é minha única posse e é intransferível. A rotina diária deve encarar novos contornos e novos rumos com certa galhardia e sem certos costumes e hábitos. Não vou me catapultar ao ar livre nua de dogmas. Na minha atual conjuntura etária preciso apenas das crises. Estas devem chegar de ‘voadora’ às portas da minha mente e me romper cheias de autoridade, afinal sou leonina nata!

Estou tensa. Meus apegos éticos me sustentaram bem por décadas. E de novo lembrando Clarice Lispector, o que fazer de mim quando mim virou eu? Mim é diferente, é concentrado, é possessivo. Eu é mundo, é exposição, é porosidade. Como aproveitar essa porosidade com apegos éticos eternos? Em tempos de novas tecnologias e incremento das redes sociais virtuais criar laços (elos) emocionais é se jogar na incerteza do outro. Como fazer isso recheada de apegos éticos eternos? Nestes laços, há um nível grande de alegria, de prazer e de conforto. E quem não se apegaria a isso? E onde estaria o sofrimento? Excesso, eterno, para sempre, estas sim são palavras e expressões de sofrimento. Estas sim são palavras ou expressões que não nos fazem transcender e crescer. Estas sim são palavras ou expressões que nos impedem de viver no mundo em múltiplas dimensões quando estas nos reencantam.

Fim de semana e estou pensando: o que fazer de mim quando o mim virou eu e com apegos éticos estão ‘geneticamente’ modificados? Crise... crise ética mesmo.. Não quero manter em mim nada que não me faça bem. Não quero a falsa ilusão do amor, da amizade, do controle ou dos comportamentos. Não quero cegueiras. Não quero minha sobrevivência nas mãos de ninguém ou ‘no nada’. Quero poucas ansiedades. Quero lidar com o que me aconteceu com outros olhos e respiração. Quero ter coragem de me deixar viver e, com certeza, recriar novos apegos. Quero um pouco mais de espaço e serenidade para me espalhar pelos meus sonhos e fantasias. Não sei o que tenho para dar, mas antes preciso abandonar vários apegos éticos e me observar. Isso! Vou me observar em tentativa de ‘eu’ aos poucos...

Apego, mesmo o ético, é estar em poder de... é isso não é bom o tempo todo, muito menos a vida toda. Então é preciso livrar-se das idéias errôneas sobre mim mesma e sobre os outros para descobrir a outra face ou o outro lado da minha moeda com poucas complicações. Vou tomar consciência de que as idéias fixas (e imaginárias) não me ajudam. Diante do que me aconteceu, tornei-me mais sensível e consciente quanto ao modo do outro ser e isso teve um preço: minha vida anterior.

Lembrando Nelson Rodrigues, ter habilidade de aceitar a vida como ela é exige a perda de apegos éticos que me defenderam a vida toda. Está na hora de raspar isso e ressurgir parcialmente repaginada de opções, leituras e ética. É possível? O que acham?

Claudia Nunes

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A CANECA E O ABISMO

No escuro de um bar da cidade, uma caneca vazia encara uma figura silenciosa. Ao redor, muitas pessoas sorriem umas para as outras e contam histórias sem muitas explicações. Em cada história, diferentes seduções e muitos burburinhos. Ali ninguém se lembra de suas posições sociais, todos são personagens em busca de enredos afetivos fortes. É uma rede amorosa cuja perspectiva é conquistar mais e mais pares desejantes de histórias de uma noite, de um fim de semana ou de uma vida inteira. Nada interessa, nada é sério, ali a idéia é ‘ficar junto’ e se experimentar em diferentes encontros e atrações. Num canto mais íntimo, uma caneca vivia aquilo como se fosse uma total perda de razões.

Não havia polidez ou dúvida nos movimentos, as pessoas esvaziavam emoções e suas bocas procuravam compor outras bocas com certa urgência. E ali estava a caneca, sustentando o tempo, a memória e o desejo de um alguém que, de repente, perdera o prumo. Uma caneca com trajetória indefinida e cheia de surpresas. Indo da boca à mesa, a caneca sentia que a figura amara muitos e, agora, amava por um motivo e grande intensidade. Era uma boca ansiosa em uma caneca fria, mas esperta.

Enquanto a caneca tivesse função, o desejo era um ponto de chegada. A caneca era feminina e, toda noite, ela precisava ajudar a compor novas sensações e histórias. Mas a figura em sua frente, dentro de um carro, não se movia, mal respirava. Susto fora seu sentimento. Surpresa fora sua emoção. Gozo interrompido e um gosto estranho eram sua vida, novamente... No trajeto de volta, ela revivia seus 17 anos.

A caneca presenciava a agonia de uma decepção. A figura alisava a caneca cheia de intenções, cheia de incompreensões, cheia de insatisfações. Diante da caneca, depois de 20 anos, um coração arranhado novamente. No fundo a figura sabia: ela se deixara levar pelo doce abraço das expectativas. Viver um grande amor não era fácil e nem produto de artimanhas artificiais. Viver um grande amor, mesmo o mais romântico ou idealizado, precisava da oportunidade, da necessidade e da vontade dos dois. E a caneca sabia: em sua frente, uma face e um olhar em parte; um brilho e uma maquiagem que se acinzentaram, por inocência e esquecimento.

Não era um corpo, era uma pele criada por outros amores para disfarçar o amargo das indecisões e interrupções do amor romântico. A caneca e a figura eram mulheres surfando por histórias e emoções sem gosto definitivo ou próprio: e todas aceitáveis. Mesmo diante da maturidade, as duas estavam quase vazias. Nenhuma das duas se entendia. Tudo preparado. Tudo montado. Mas ambas se viam, de novo, em compasso de espera. Depois de encurtar os espaços, ambas se colocaram disponíveis a um alguém imaginário que não soube aproveitá-las e isso doía demais...

Diante da desilusão, a certeza da presença do hábito e do condicionamento: diante da caneca, a figura chora enfim. Sorri para o mundo, bebe o resto de vinho, mas chora a doçura de um tempo e de um corpo ainda intocáveis daquele amor amante tão esperado. A caneca sabia a verdade, mas a figura, não. Esta era atraente, animada, espontânea, mas, com a caneca, se apequenava e se magoava: ela estava com 17 anos. E, de novo, recebera o dom de iludir e, de novo, se esfarelava diante do Outro.

Sem nenhum pudor, beija a boca da noite suspensa e leva a caneca para o quarto. Não iria perder uma amizade por nada: estava tudo bem... No sofá, depois do banho, a figura tenta dormir, mas a caneca é enjoada e lhe encara. Mesmo de olhos fechados, a figura sente a presença da caneca e sua melancolia cresce: não tem explicação. Houve um pacto, uma doação, uma viagem, uma liberdade, uma oportunidade. Ela nunca o amara em definitivo. Ela nunca provara o gosto do segredo. Ela se sustentara em preliminares afetivas. Ela era uma mulher-figura em expectativa anos a fio, ali, sozinha e brilhante. Mas, embora cheia de intenções, ela perdera sua atitude e o jeito era silenciar-se.

Sozinha, em sua cama, procura lembrar o que fez de tão errado para desmerecer a definição amorosa. Ali, num quarto de hotel, depois dos filhos criados, se incomodava com a pressão da caneca por um laço insatisfeito. Como dar nós nos sapatos e continuar a vida tendo pendências emocionais tão profundas? Apostara em seu sonho. Apostara em sua maturidade. Apostara em sua mente engenhosa. Apostara em roupas, maquiagem, perfume e charme. Só se esquecera de uma coisa: a caneca. Do fundo de seu coração, não imaginara uma caneca, como seu único ganho, na noite da recompensa dos seus 17 anos. Ela era a surpresa do seu fim de noite. Cheia de vinho, ela era a alegria de suas mãos e boca. Mas, nela, as lágrimas de um momento nunca ultrapassado.


         O som de uma música romântica preenche sua mente. Com displicência, procura seu celular: queria reencontrar as pistas que lhe levaram até ali. Será que se enganara tanto assim? Por que não percebera as mesmas ações de antes? Sua memória abria ainda mais a ferida recém aberta. Marcações feitas, declarações pressentidas, toque de mãos, papo cabeça, beijo na boca, muitos beijos na boca, mãos brincalhonas e... apenas. Diante de um último gesto ou passo, a liquefação da emoção de um jeito muito inseguro. De volta ao quarto, pedaços de sentimentos e a caneca. A realidade lhe dera um presente para não mais esquecer: a caneca.

Durante a noite, seu corpo está inquieto. É o desentendimento mexendo com o subconsciente. Ao correr para o encontro dos seus longos 17 anos, sua paixão solitária ganhara profundidade. Nenhum impedimento, nenhum desconforto, nenhum estresse, apenas a beleza do que se chama ‘conjugal’ procurando a noite do prazer pleno. Mas as mesmas névoas da insegurança adolescente de 20 anos atrás não se desfizeram. As gorduras sentimentais do coração não foram eliminadas. E ela caminhara de volta à realidade abismal como um recipiente sem uso que anseia por líquidos hidratantes na pele ou em suas encostas: ela e a caneca são a mesma coisa, olhando um precipício sem fundo.

Na passagem da noite, a sensação de desamparo lhe faz voar pelas nuvens de uma história sem fim e que projeta o corpo pelos abismos dos amores (in)concebidos e cristalizados. A paixão retumbante não aconteceu. A paixão mitificada não a fizera levitar. Sua paixão tivera desatino, mas não alcançara seu destino. Sua paixão ganhara uma longevidade disfarçada e cheia de convenções. Ela e a caneca foram jogadas num abismo sem energia. Passaram por um confronto emocional forte. Todo o coração sacolejava. Todo o corpo se debatia. Elas, agarradas uma a outra, se sentiam desconfortáveis: o abismo era seu pior medo e sua melhor realidade, afinal as emoções precisavam ser replantadas e cuidadas, de novo, do início...

Com a caneca colada no corpo, a figura fora jogara sem atenção aos novos tempos e outras intenções. Ela não se esfarelava pelo acaso porque fora esbofeteada pela vida real. Ela se distraíra no tempo e assumira aventura da liberdade sem medo como certeza da emoção: e o abismo fora sua sorte. Por que o Outro não assumira o compromisso combinado? Por que o abismo se tornara sua herança? Por que a caneca se prendera em seu corpo? Em queda livre, não adiantava criar um andaime de ‘porquês’, tinha que bater no fundo e voltar sem procurar encaixes ou quebrar a caneca. Se não tivera méritos, o jeito era ‘partir para outra’.

Com o sol já batendo em seu rosto, se levanta agitada, guarda sua caneca, faz sua maquiagem, prepara seu cabelo e sai em busca de outros ganchos de prazer para sua história de vida, afinal voltara aos 17 anos...


No hall, um recado foi esquecido: “Faça um bom retorno. Consegui terminar meu artigo hoje. Ufa! No seu retorno aqui, será diferente...”

Profa Claudia Nunes

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CHORAR POR ÉTICA

Hoje só a psicologia pode me ajudar. Sem querer fiz parte de um jogo histérico cujo final foi o alívio. Parada numa sala de estar observo, de maneira quase palpável, como a hipocrisia pode se dissipar de um ambiente diante de uma notícia, uma situação ou o simples desaparecimento de alguém. Neste momento, a fala baixa, o sorriso amarelo, a sensação de menosprezo, as irritações, tão comuns no cotidiano do trabalho, se esvaem porque uma massacrante repressão acabou. A ditadura de um pretenso poder acabou!

Em muitos anos, houve uma desonestidade nos comportamentos de todos porque, humanos, era preciso preservação e sobrevivência. Tal e qual uma cadeia hierárquica de uma grande empresa, as altas patentes detiveram o controle e o poder da vida e da morte financeiras das pessoas. E por mais que, nas aparências, as relações fossem de cordialidade e educação, de onde estou olhando agora, as ações se pautavam na dinâmica do fingimento.

Pelo que entendi, todos conviviam de sobreaviso, tensos, sobressaltados, diante da passagem ou presença de outro alguém impressionantemente manipulador e estrategista. Sendo assim, a histeria significava alívio coletivo, respiração livre e a possibilidade de ir-e-vir sem ‘ponta dos pés’. Sentada naquele sofá, ouvia com atenção histórias e muitos sorrisos, histórias e comemorações, história e outras histórias de negações, humilhações e ‘puxadas de tapetes’, aparentemente sem sentido, incompreensíveis.

De um teatro tragicômico de hipocrisias cotidianas e múltiplas para o bem viver, surge um teatro histérico das liberdades cômicas para um mundo melhor. Explico caro leitor: houve uma demissão.

De uma equipe de trabalho, há anos sendo lapidada pelas intempéries de uma personalidade, um ser foi demitido. Pelo que observo primeiro com alegria e compartilhamento e, depois com apreensão e expectativa, este fora um desejo de todos nas entrelinhas dos horários de trabalho. Eu presencio quase uma festa bacante de abraços, almoços, sorrisos, telefonemas, e-mails e torpedos: todos de muitas congratulações. Impressionante! A perda, o corte, o desaparecimento, a saída fora um desejo coletivo.

No meio do corredor, uma pergunta ditava a linha da alegria: “é verdade?”. E daí recomeçaram os ritmos dos corpos histéricos. Eu estou deslumbrada. Não alcanço a possibilidade de alguém gerar estas manifestações e, por conseqüência, tantos ‘alguéns’ felizes com a perda da convivência social. Ao contrário do que alardeamos por aí, além da hipocrisia, sumia gradativamente frustrações, friezas, silêncios e desafetos. Eu estou presenciando outra realidade emocional.

Tudo expunha a certeza de que este fora um ambiente traumático. “Difícil retornar para os afazeres” – eu pensei. Realmente era uma complexidade de sensações e percepções criando vários desentendimentos em mim. Após este momento de euforia coletiva, volto ao meu carro com minha melhor amiga. Esta chora. Ela se sente triste pelo passamento. Não é assim que ela pensava resolver as coisas ou como as coisas se resolveriam. Ela tem sentimentos controversos, mas luta para sentir o certo e não se deixar dominar pelas felicidades alheias. Isto é inconcebível para ela. Ela não sabe quem é pior: eles ou o outro.

No carro, um desabafo ético. A convivência, para ela, fora extremamente desagradável, humilhante, degradante e sem mais nenhuma empatia. Sua sensibilidade e competência foram postas à prova diversas vezes. Ano a ano, sua auto-estima fora minada com feedbacks dissimulados, estigmatizados e preconceituosos. Fora provocada e exposta inúmeras vezes sem direito à réplica. E mesmo assim preferiu o ‘junto’ ao invés do ‘separado’. Era uma aposta mais em si, em sua capacidade de superação profissional e de sustentação física e mental, do que num possível diálogo transformador.

Minha amiga ignorou as vozes da agressão, da indisciplina, da réplica insubordinada ou da saída definitiva porque aprendera que certas coisas na vida são encargos que precisam ser vividos até o fim. Esta idéia a levara a construir uma couraça de subserviência enganadora. Ainda assim fora uma fase de pensamentos e vivências de enormes discrepâncias e muitos questionamentos: ela, às vezes, duvidara de si mesma. O que os outros (ou outro) achava(m) dela apresentava-se como mais forte do que o que ela mesma sabia de si. Em meio às lágrimas, minha amiga se analisa: eu me sabotei?

Quem então estaria fazendo da vida um grande teatro, uma grande fantasia? Ela não sabe, mas grandes foram suas dificuldades adaptativas, afinal sua auto-avaliação global e profissional fora muito positiva em diferentes lugares, exceto ali. O mundo do trabalho pode ser muito cruel quando, ao estabelecer metas, nos deparamos com seres que, sorrateiramente, nos obrigam a reformular tudo a cada segundo da vida. Este processo mais do que crescimento, pelo volume e sordidez das exigências, gera insegurança e pouca proatividade. Começamos a agir na dependência da análise do outro, só do outro, e isso é/foi péssimo.

No bolo desses maus presságios trincados ficam nossa competência, nossa saúde, nossas relações interpessoais e até mesmo nossa sorte. E aí as doenças do século XXI começam a invadir corpo e mente. Depressão e estresse se amalgamam em nosso nome e sobrenome. Nossas emoções tornam-se desordenadas e confusas. Minha amiga sofria assédio moral, mas não entrou na cena farsante do processo cotidiano e nem na euforia coletiva do ‘apagar das luzes’. Minha amiga sofreu arrogâncias, empáfias, orgulhos, intimidações, mas optou sempre (e agora) pelo silêncio dos justos, dos inocentes e dos crédulos.

Hoje, no meu carro, ela chora compulsivamente não por hipocrisia ou alívio, mas porque perdeu a oportunidade de se fazer entender, de criar outro clima de trabalho, de mostrar que as coisas poderiam ser de outra forma, de modificar a visão sobre ela, de estabelecer outro tipo de diálogo e, principalmente, de mostrar que nunca fora uma ‘mosca-morta’.

Minha amiga chora pela ética.
Minha amiga chora por ética.

Enfim, parabéns!

Ms Profa Claudia Nunes

sábado, 8 de outubro de 2011

ATÉ QUANDO?

ATÉ QUANDO?

Há novos ares sendo respirados na educação estadual carioca. Há nova administração instaurando novos procedimentos que dinamizem as práticas pedagógicas. E há professores ainda extremamente descrentes quanto às mudanças ou quanto à possibilidade de se obter mais qualificação nas formas de aprender. Até quando?
Há o reconhecimento de que as políticas públicas voltadas à educação, por exemplo, do Ensino Médio, dependem da gestão em questão e em seu tempo de serviço na pasta. Há a certeza de que as propostas governamentais já nascem com data de término: a mudança de governo ou do próprio secretário. Até quando?
Diante desta situação híbrida, os educadores criaram uma couraça em torno de si mesmos: todo e qualquer indicativo ou projeto de mudança é desacreditado, questionado e, por vezes, anulado. E isto não é um posicionamento por infantilidade ou imaturidade. É uma postura contextualizada, ou seja, surgida a partir das várias experiências interessantes que realizaram (os educadores), mas quase nunca valorizadas. Em cada experiência de projeto ou de mudança estratégica de governo, muitos esforços, desgastes, apostas e... nada! Sem respaldo, sem retorno, sem valorização, esquecido, o educador se percebe inútil, então também se pergunta: até quando?
            Atualmente, de novo, apresenta-se uma luz ao final do túnel: há uma política pública de revalorização dos educadores por meio de pequenos (e contínuos) aumentos de salários, diferentes gratificações, aberturas de espaços de formação continuada e alguns bônus de incentivo à pesquisa e à leitura. Nada de excelência ou que transforme a visão da sociedade sobre o educador ou a visão do próprio educador sobre si mesmo com agilidade, mas, diante de uma terra árida (políticas anteriores), dos males o menor; ou diante de um ‘nada’ anterior, apresenta-se uma primavera diferente. Até quando?
            Segundo minha avó, porém, ‘para todo bônus, há um ônus’. E, no caso do ensino, este ônus apresenta-se nas exigências de reestruturação física e pedagógica da escola quase que urgentes, lembremos que o tempo das mudanças de governantes está próximo. Primeiro, há apresentação e conscientização dos gestores (entendidos como multiplicadores) quanto ao novo momento. Segundo, há a implantação de um programa cujos itens devem ser observados e suplantados quando fora dos padrões (ou metas) estipulados. E terceiro, há a construção de uma filosofia pedagógica voltada à dinamização, estímulo e motivação dos educandos. Sendo bem simples, duas questões devem ser revertidas: a ‘infrequencia’ e a indisciplina. Até quando?
            Entende-se, então, que a introdução, por exemplo, de recursos tecnológicos digitais e virtuais às atividades de aula e mesmo a realização de aulas inovadoras e diferenciadas (mais dinâmicas) são fundamentais para o reposicionamento da escola como ambiente de encontro com a informação e de construção do conhecimento, além fazer com que os educandos permaneçam mais tempo em seu interior. Até quando?
           Nesta perspectiva, tem-se observado a realização de vários projetos interdisciplinares, ou didáticos dentro da compreensão de inovação dos processos de aprendizagem. Vários educadores têm se esforçado em reler suas práticas de ensino e estabelecer novos desafios ao ato de ensinar. Mais do que o conteúdo, percebe-se que os educadores investem em carregar os educandos com variadas ferramentas que lhes proporcionem melhor integração em sociedade. As ações coletivas começam a ser focalizadas como pontos de onde os educadores podem resgatar as atenções de seus educandos ao contexto de maneira geral. Mas até quando?
            Esta semana houve novo projeto de sensibilização na escola. Mas uma sensibilização dos educadores quanto a si mesmos; sua posição, hoje, em sociedade e, mesmo diante dos seus educandos. A equipe pedagógica promoveu um encontro pedagógico com outro projeto, o “PAPO DE RESPONSA”, projeto que prioriza as vozes desejantes de mudanças e a responsabilização sobre os sonhos e o futuro de si e dos outros, sob sua (aqui, dos educadores) responsabilidade ou não. Houve estranhamento, certo mal-estar e uma grande expectativa: os educadores não foram informados sobre o porquê do encontro. Era um desconforto necessário. Era uma experiência necessária, afinal, educadores fazem isso o tempo todo com seus educandos. Até quando?
            Tudo correu bem. Depois das primeiras palavras dos palestrantes (um policial a caráter e um ex-criminoso), o desconforto virou surpresa e a surpresa, novos pensamentos. A desconfiança virou possibilidade e entendimento. Mas, e ainda assim, houve educadores ausentes e os que agiram com descaso: estavam na escola, mas optaram por não participar. Não há aqui inocência de expectativa: todos iriam participar. Há, talvez, a esperança de que a ética falasse mais alto do que a tradição; ou que a delicadeza e o coleguismo fossem mais fortes do que uma visão de mundo tão rude. Neste momento não há como não julgar: estes educadores se anularam; anularam a possibilidade de discussão; de confronto, nunca de conflito; de vitalizar o papo com um ideário carregado de outras informações; anularam a possibilidade de crescimento de todos. Até quando?
            Fora isso, estes educadores discursaram, pelos corredores, sobre a inutilidade da proposta do projeto porque, segundo eles, pertencem à escola tradicional, gostam da aula tradicional, ministram aulas mesmo e que ‘essa coisa’ de projeto (ou promoção de palestras) é ação de quem não gosta de trabalhar sério. Triste, muito triste... Estou incomodada. Até quando?
            Esta fala não os desqualificam como profissionais de ensino. Anos de exercício do ensino, com suas dinâmicas tradicionais, não podem ser desconsideradas e nem descartadas. Mas se considerarmos que os educandos são outros, mais envolvidos com as novas tecnologias, com novas responsabilidades profissionais e experiências relacionais, mas se acreditando com poucas expectativas de futuro, como ficam estes educadores?
            É difícil entender que a questão dos desenvolvimentos dos mais variados projetos e/ou atividades didáticas diferentes criam opções ao ensinar e ao aprender? Aprender a aprender tornou-se primordial para estimular o aprender a ser, a conviver, e principalmente, a fazer. Não dá mais para se manter uma postura indiferente às mudanças. Não dá mais para, como São Tomé, ‘pagar para ver’ de longe. Este fechamento absoluto quanto à possibilidade de inovar pode provocar incompreensão nos educandos quanto à sua realidade e divergências entre os outros educadores quanto ao seu papel, fatos que, hoje, mais atrapalham, do que ajudam a transformação da escola, do ensino-aprendizagem, da educação em geral.
            Até quando?

Ms. Profa Claudia Nunes

Quando a MÁSCARA vira ROSTO



Ter um ou mais personagens para encarar a pedreira do mundo é não só necessário, como uma questão de sobrevivência. Especialmente se você tiver uma sensibilidade extremada. Nascemos com uma pelezinha de bebê também na alma (e aqui não me refiro ao sentido religioso do termo) e precisamos protegê-la. Se há algo que os outros pressentem é o tamanho da nossa fragilidade. Por isso um chefe abusivo sempre sabe com quem pode gritar – e com quem é melhor não. Muita gente é como aqueles cães de caça farejando o flanco mais indefeso para atacar sua presa. Triste, triste. Mas mais triste é quando, em nome da necessidade de sobreviver, criamos um personagem que se mostra tão útil que acaba se confundindo com nossa derme mais profunda. Se criar personagens é preciso, despir-se deles constantemente é vital.

Como ando bastante por aí, tanto por razões profissionais quanto por gosto, observo muito as pessoas. E seus personagens. E, muitas vezes, tenho vontade de dizer, e em algumas delas, se há um grau de intimidade que me permita falar sem ofender, eu digo: “Pronto, você já fez o seu show. Agora, por favor, para jantar comigo enfia a máscara dentro da bolsa e relaxa”.

Ninguém se iluda de que é absolutamente verdadeiro o tempo todo, até porque somos muitas verdades ao mesmo tempo e seguidamente elas são contraditórias. Aquelas pessoas que parecem muito “autênticas” porque são extrovertidas, dizem coisas chocantes, se arriscam no estilo, estão muito bem cobertas por suas máscaras e morrem de medo de serem reveladas. A máscara do “autêntico”, “louco” ou “excêntrico” é uma das mais corriqueiras. Este tipo faz piada com o ponto fraco dos outros, dando gargalhadas e batendo nas costas da vítima e, quando alguém reclama, uma meia dúzia de amigos sai em sua defesa dizendo que “é o jeito dele”. Ahan.

Há o tipo “bonzinho” que, mesmo fazendo coisas horríveis e muito bem dissimuladas de vez em quando, é tão convincente no “foi sem querer” ou “ele jamais faria isso de propósito” que é imediatamente perdoado. Existe a “mulherzinha”, tão frágil que parece que vai quebrar a qualquer adjetivo mais eloquente. Esta manipula brilhantemente nossos mais primitivos instintos de proteção e, se você tem a coragem de dizer para ela tomar jeito e prescindir do diminutivo, imediatamente é você quem vira uma megera. E há o seu oposto, “a mulher alfa”, esculpida a navalhadas, que se arma de sapatos de bico fino, terninhos de grife e cortes de cabelo modernos, mas práticos, para arrasar meio mundo a bordo de sua armadura como se o melhor produto do feminismo fosse uma mulher se tornar um clichê de homem.

Enfim, são muitas as fantasias que vestimos para não sermos engolidos pelo mundo. Em geral não somos nem mesmo uma máscara definida, como as que acabei de expor apenas como recurso didático. Não somos Batman, Coringa, Gilda, Bambi ou Madre Tereza de Calcutá. Somos uma mistura de vários estereótipos. E, se é verdade que vestimos máscaras, também é verdade que não há um “eu” essencial – mas sim um “eu” fluido e incapturável, em constante movimento de mutação. E é nesta fluidez do eu, que não pode ser confundida com ausência de rosto, que residem nossas verdades mais profundas.

Acho que nossas máscaras começam a colar no nosso rosto ainda na infância. Uma mistura entre a necessidade de rotular que os pais em geral têm e o nosso desejo de satisfazê-los – ou de escapar da prisão que intuímos. Numa família com mais de um filho é mais fácil perceber. Um é o extrovertido, o outro é o tímido, outro ainda é o rebelde. Ou um é o estudioso que “não dá trabalho nenhum”, o outro é o vagabundo que ninguém sabe “por quem puxou”. E há o outro que tem – socorro! – “transtorno do déficit de atenção e hiperatividade”.

Os pais costumam botar um rótulo em cada filho, e a escola raramente tem competência para, em vez de reforçá-los, quebrá-los para que as crianças tenham outras possibilidades de expressar aquilo que são ou se tornar algo diferente do que foram levadas a ser. Uma pena, porque quebrar máscaras impingidas ainda na infância talvez seja a grande função de um educador. É muito difícil identificar se alguém “é assim” ou se tornou o que sempre ouviu que era. Agora, que as crianças são medicalizadas cada vez mais cedo e os rótulos ganharam status de “diagnóstico”, com a entrada do “especialista”, danou-se.

De fato, ninguém é – todos nós nos tornamos. E este “tornar-se” não é um caminho linear rumo a um rosto definitivo, que daria conta de nossa essência. Não há essência, o que existe é construção a partir de um conjunto de genes, de influências ambientais e experiências as mais variadas, de inscrição no momento histórico e de livre arbítrio – ainda que o livre arbítrio nunca seja tão livre assim. Embora possa ser assustador pensar que não há um “eu” essencial a ser alcançado, de fato é bastante libertador.

Somos uma constante invenção e reinvenção. E, tão importante quanto, desinvenção. Vale a pena não esquecer que sempre podemos nos desinventar. Ainda que carreguemos conosco tudo aquilo que vivemos, a mágica está em dar novos significados a antigas experiências e ter a sabedoria de nos livrarmos do que não é nosso, apenas foi impingido a nós como uma roupa de gosto duvidoso. Por isso, é bom tomarmos muito cuidado para não rotular os outros, como se nossas sentenças fossem imunes de preconceitos. E mais cuidado ainda se estes outros forem os nossos filhos, para que nossos rótulos não virem destino.

Acho que a melhor forma de não impingir máscaras aos outros é não impingi-las a nós mesmos. É bem fácil cair na tentação de transformar uma de nossas máscaras, aquela que nos parece mais eficaz no embate cotidiano, em nosso rosto definitivo. A máscara se torna tão usada que vai se fundindo primeiro à nossa pele, depois aos nossos ossos. Não é que vire ferro, como no clássico de Alexandre Dumas. O problema é que vira carne humana, mesmo. E aí, meu amigo, fica bem difícil de arrancá-la, porque passamos a acreditar que morreremos no processo. Ou que, por trás dela, não há um ou muitos rostos, mas um vazio infinito. Muita gente se agarra a seu personagem com medo de que, se a máscara for arrancada, descubram que não há nada lá. A máscara serviria, neste caso, para esconder a ausência de face.

Tento me livrar da tentação de virar personagem, uma máscara só, pela própria escrita. Parte do ímpeto que me move a inventar outras vozes narrativas para mim e outras bases para estabelecer o cotidiano se dá pelo meu temor de acabar gostando demais de alguma máscara conveniente. Tento me quebrar o tempo todo me jogando em desafios novos sem pensar muito nos riscos para me desgarrar da tentação das certezas sobre mim. Tem funcionado.

Além das mudanças mais profundas, que quem me acompanha nesta coluna está cansado de saber, há pequenas trocas de atitude que podem ser bem divertidas. Eu sempre fui disciplinadíssima, por exemplo. Estou numa luta feroz comigo mesma para deixar de ser. No último final de semana consegui um feito inédito em 45 anos de vida: dormi 16 horas seguidas. Almocei e ainda me entreguei a mais duas horas de sesta. Vou acabar esta coluna e tomar uma cerveja em comemoração a isso.

Sempre fui pontualíssima e, como todas as pessoas pontuais deste país, esperava muito. A ponto de o garçom ficar com pena e vir conversar comigo. Agora, com exceção dos compromissos de trabalho, resolvi deixar todo mundo me esperando. É uma delícia a cara de surpresa dos amigos. Chego e está todo mundo lá. Costumava comer chocolates aos poucos. E, quando ia comer, antecipando o gosto do bombom desmanchando na minha boca, alguém lá de casa já tinha dado cabo dele. E ainda me acusava: “Você faz isso de propósito, para me tentar. Por sua causa, acabo engordando”. Pronto, além de ficar sem chocolate, ainda era culpada pelo descontrole alheio. Mudei. Agora devoro compulsivamente meus chocolates e também o dos outros.

Não, não parecem mudanças muito salutares, eu sei. Mas elas cumprem, pelo menos por algum tempo, a função de me desconstruir tanto aos meus olhos como aos olhos dos outros, que cultivam a pretensão de que a gente seja a mesma até o final dos tempos. Um peso que, com licença, não pretendo arrastar por aí como se fosse meu.

Especialmente nas questões mais profundas, desmascarar a si mesmo é uma prática importante do cotidiano. E também um ato que precisa ser constantemente recriado. Nosso instinto de sobrevivência engendra armadilhas e argumentos bem convincentes para absorver este “duvidar de si mesmo”, que nos mantêm alertas com relação a nossos próprios ardis, e acaba por torná-lo mais um penduricalho que tem apenas um efeito placebo. O que o mercado faz com a contestação ao mercado, transformando-a em um produto, nós fazemos com relação à nossa porção contestadora, ao transformá-la em nossa versão de mercado. De tal forma que, um dia, sem perceber, paramos de tirar a maquiagem no fim da noite e dormimos acreditando que a máscara é a nossa cara.

Dias atrás encontrei um conhecido muito talentoso. É brilhante mais vezes do que a maioria. Arrasta com ele uma legião de fãs. E, principalmente, tem o que dizer por que é um grande criador. Fazia algum tempo que não o encontrava pessoalmente e fiquei estarrecida ao perceber que ele tinha virado um personagem, um bufão. Não mais um bufão como forma de contestar a hipocrisia, mas um bufão como forma de não ser contestado em sua hipocrisia.

Torço para que ele perceba a tempo que a máscara é uma versão bem pobre dele mesmo, já que não tenho intimidade para dizer a ele eu mesma. Enquanto isso, ao testemunhar a figura triste em que ele se transformou, tratei de aprimorar meus próprios alarmes antimáscaras. E escrevi esta coluna na esperança de que ela possa ajudar a acionar a sirene em cada leitor. As máscaras têm sua função, desde que não nos apeguemos a elas a ponto de fazer da mais confortável um rosto que agrada a todos – menos a nós mesmos.


Eliane Brum


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O PASSADO PODE NOS ENSINAR A SEU PRÓPRIO RESPEITO

Embora a atitude crítica não seja cultivada pelos seus praticantes, os estudos de arqueologia da mídia, pela sua própria metodologia, estabelecem confrontação de seus resultados com o culto do novo que tanto marca a cultura da mídia e o avanço das tecnologias, constata Francisco Rüdiger
Por: Thamiris Magalhães


A arqueologia da mídia pode ser entendida como um “método de estudo da história, em que as técnicas de comunicação são iluminadas pela cultura e o imaginário social de cada época, em que se pesquisam as conexões, mas também as rupturas, as continuidades e esquecimentos do processo em que os fenômenos de comunicação, seus meios sobretudo, se vão formando e entrelaçando com outros processos e estruturas coletivas”. É o que afirma o docente Francisco Rüdiger, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para Rüdiger, os estudos de mídia costumam ser ofuscados pelo fetiche da novidade. “O novo tem um valor intrínseco nesse meio profissional e intelectual. O resultado é uma cegueira para o fato de que um processo histórico precede e ajuda a entender o seu aparecimento, tanto quanto a dinâmica de seus fenômenos”. Para ele os estudos arqueológicos evitam o historicismo puro e simples, que nega a criação inovadora, mas também o culto do modismo de última hora, que desconhece o lastro do presente dentro do passado.


Francisco Rüdiger é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1995) e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987). Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Seus estudos concentram-se no campo da crítica à indústria cultural e dos estudos sobre pensamento tecnológico e cibercultura. É autor, dentre outros, de As Teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores(Porto Alegre: Sulina, 2003, 2007, 2011) Cibercultura e pós-humanismo (Porto Alegre: Edipucrs, 2008) e As teorias da comunicação (Porto Alegre/São Paulo: Artmed/Penso, 1995, 2010).


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos definir a arqueologia da mídia? 
Francisco Rüdiger – Inspirando-se na metáfora da arqueologia do saber proposta no final dos anos 1960 por Foucault, alguns estudiosos contemporâneos têm se valido da expressão para dar conta, hoje, dos estudos que buscam as formas e inventos culturais originários, ou melhor, que subjazem ao que se entende por meios de comunicação desde o final da II Guerra Mundial. Siegfried Zielinski, Tom Standage , Erkki Huhtamo  e Jussi Parikka, esses dois últimos finlandeses, são alguns dos pesquisadores considerados referenciais em relação ao desenvolvimento desta linha de investigação. Também inspira esses autores o estudo inacabado de Walter Benjamin  sobre a Paris do século XIX, o qual ele pensou que pudesse valer como um estudo de pré-história da cultura e modo de vida instalados plenamente no século XX. Lá e cá, existe a preocupação em entender as relações entre técnica e cultura sem reducionismo e desde um ponto de vista genético, ainda que descontínuo.


IHU On-Line – De que maneira estudar o conceito pode contribuir para o melhor entendimento das “mídias mortas” e das atuais? 
Francisco Rüdiger – Os estudos de mídia costumam ser ofuscados pelo fetiche da novidade. O novo tem um valor intrínseco nesse meio profissional e intelectual. O resultado é uma cegueira para o fato de que um processo histórico precede e ajuda a entender o seu aparecimento, tanto quanto a dinâmica de seus fenômenos. Os estudos arqueológicos evitam o historicismo puro e simples, que nega a criação inovadora, mas também o culto do modismo de última hora, que desconhece o lastro do presente dentro do passado. A contribuição que nos fornecem está, em resumo, na lembrança do fato de que as formas técnicas e culturais, incluindo aí as da mídia, não costumam falecer, mas, uma vez criadas, são antes reelaboradas em novas circunstâncias, ainda que por vezes possam sofrer uma longa hibernação. O helicóptero foi desenhado por Leonardo da Vinci , para se tornar realidade no século XX. Serviços que hoje nos presta a internet são derivados de experimentos noticiosos com a telefonia no começo do século XX.


IHU On-Line – Podemos compreender a mídia como histórica, a partir do conceito de arqueologia da mídia?
Francisco Rüdiger – Sim, mas considerando que a perspectiva desta última abordagem não é necessariamente continuista. A pesquisa deve estabelecer os casos e os planos em que há continuidade no fenômeno de mídia em consideração, tanto os casos e planos em que se verificam rupturas ou, mesmo, perdas, abandonos, esquecimentos de um elemento histórico.


IHU On-Line – Com os estudos da arqueologia da mídia seria possível “desenterrar caminhos secretos na história”, como disse Zielinski? E isso poderia nos ajudar a encontrar nosso caminho para o futuro? Por quê?
Francisco Ricardo de Macedo Rüdiger – A conexão entre passado e presente, sempre que colocada em perspectiva, em vez de retrospectiva, é, em geral, um expediente assegurador de nossa boa consciência ou um esforço legitimador de nossos projetos – o que é problemático desde uma reflexão criticamente estruturada. O passado pode nos ensinar a seu próprio respeito e muito sobre as situações de onde viemos, mas não creio que possa nos dizer para onde vamos ou o que devemos fazer atualmente e/ou doravante. A contribuição que ele pode nos dar, nessa direção, é no sentido de aumentar nossa massa crítica e capacidade de reflexão sobre o que está ocorrendo e, eventualmente, sobre as bases dos planos de ação que pretendemos pôr em prática. Os “caminhos secretos da história” não são da história mesma, do processo histórico, mas do saber que, vasculhando seus materiais, seu legado, descobre planos, fatos e processos que podem nos ampliar não apenas o conhecimento do passado, mas o saber com que podemos intervir no contemporâneo. O processo histórico, embora se ancore em estruturas legadas pelo passado e que ele mesmo reproduz, é histórico, sobretudo porque é, também, criação.


IHU On-Line – A arqueologia da mídia é um conceito que pode ser tensionado com a pós-modernidade, especialmente por esta trazer a ideia de amnésia histórica?
Francisco Rüdiger – Levando em conta que o conceito de pós-modernidade é, em seu sentido mais forte e apropriado, um conceito de filosofia da história, fica difícil aceitar que ele, no plano reflexivo, onde se constitui, implique em amnésia histórica. Pelo contrário, vendo bem, constata-se que os pós-modernos e, às vezes, os pós-modernistas (os cultores do pós-moderno) são essencialmente historicistas. Claro que se trata de um historicismo renovado, distinto daquele que se impôs no começo da modernidade, com as filosofias da história de cunho progressista. O novo historicismo dos pós-modernos pode, inclusive, ser entendido como uma redução do saber ao ato de construir e relatar histórias (no plural). Nesse sentido, reflexivo, ele seria bem o oposto da amnésia que, por outro lado, verifica-se em meio ao cotidiano da pós-modernidade. O capitalismo pós-moderno, radicalizando o consumismo e passando a se apoiar em uma economia que faz da informação cada vez mais veloz, múltipla e renovada a fonte do valor, está na raiz da consciência privada de memória coletiva e, cada vez mais, individual, que encontramos em nosso tempo. Sem dúvida, há aí, portanto, mas falando genericamente, um antagonismo ou um tensionamento dialético entre os estudos de arqueologia da mídia e o mundo tal como esta mídia está ajudando a instituir cotidianamente.


IHU On-Line – Muitos acreditam que, com o advento da internet, surge uma revolução. Algo nunca antes vivido pela humanidade, com a participação dos usuários. Como a arqueologia da mídia se posiciona perante esta ideia?
Francisco Rüdiger – Embora a atitude crítica não seja cultivada pelos seus praticantes, os estudos de arqueologia da mídia, pela sua própria metodologia, estabelecem uma confrontação de seus resultados com o culto do novo que tanto marca a cultura da mídia e o avanço das tecnologias. Vendo retrospectivamente, verifica-se que toda mídia, da escrita à internet, surgiu em meio a opiniões contra e a seu favor, em meio a vozes que a saudavam ora como uma revolução benfazeja, ora como uma invenção perniciosa, mas sempre e em comum como algo singular, inédito. A perspectiva historicista, em geral, e os estudos arqueológicos, em particular, podem constituir um bom antídoto deste tipo de discurso, cuja proveniência pertence muito mais ao sistema ou às condições mais ou menos gerais que presidem ao surgimento de um meio de comunicação do que à reflexão interessada em seu entendimento. À atividade intelectual caberia ter claro quando é autônoma e quando não passa de um vetor interessado do que ocorre fora dela; quando é livre ou independente, e quando não é senão expressão de um sujeito social roteirizado, isto é, não passa de exercício de vassalagem a algum poder estabelecido. À criatividade que esta atividade sempre contém conviria que estivesse claro, como ideia reguladora ao menos, sua condição emancipada ou heterônoma.


IHU On-Line – Siegfried Zielinski afirmou em A arqueologia da mídia que “se quiser lazer audiovisual ou ler construções de som-imagem-texto, colocarei um disco no drive do CD-ROM quando ele ultrapassar a complexidade que um livro e um videoteipe me oferecem”. Como o senhor avalia essa afirmação?
Francisco Ricardo de Macedo Rüdiger – De Zielinski, conheço o trabalho citado, mais um ou outro ensaio, e não tenho sobre eles um conceito favorável, tanto do ponto de vista epistêmico quanto do ponto de vista intelectual mais abrangente. Lendo o autor, fica-se, ao menos como primeira impressão, com a ideia de um antiquarismo curioso que resgata materiais em si mesmo interessantes, mas que os explora como matéria morta devido à falta de reflexão histórica mais abrangente. O questionamento, nos seus textos, é ao mesmo tempo muito pobre e exaustivo; exaustivo, porque a análise envereda por uma micrologia do detalhe por demais cansativa; pobre, porque o discurso procede por blocos estanques, não explorando, por desinteresse epistêmico, as conexões dos fatos e problemas descobertos com os processos sociais em curso e os processos históricos de longa duração já conhecidos pelo saber disponível.


IHU On-Line – De que forma a pesquisa (an) arqueológica pode nos ajudar a compreender a arqueologia da mídia?
Francisco Rüdiger – Creio que o emprego da expressão arqueologia, no fenômeno em foco, é, sobretudo, metafórico e, portanto, o trabalho dos arqueólogos strictu sensu talvez tenha pouco a influir no seu desenvolvimento. Arqueologia da mídia seria, a meu ver, bem entendida como um método de estudo da história, em que as técnicas de comunicação são iluminadas pela cultura e o imaginário social de cada época, em que se pesquisam as conexões, mas também as rupturas, as continuidades e esquecimentos do processo em que os fenômenos de comunicação, seus meios sobretudo, se vão formando e entrelaçando com outros processos e estruturas coletivas. Aproximam-se bastante desse critério as análises sobre a eletricidade e a telegrafia propostas por Carolyn Marvin em When old technologies were new (1990).


IHU On-Line – Quais foram as contribuições de Foucault e Flusser para a construção do conceito?
Francisco Rüdiger – De Flusser parece provir uma preocupação com a materialidade dos meios, enfoque que ele adotou, aliás, de McLuhan . Flusser passou a ser cultuado no final da vida entre alguns pesquisadores europeus, como uma espécie de McLuhan com pedigree. Lendo seus textos sobre mídia e comunicação, porém, não se vislumbra muito além do que fora dito pelo pensador canadense. Excetuando seus textos sobre a fotografia e a arte digital, encontra-se nele muito pouco que justifique atenção maior do que a devida a tantos outros pesquisadores contemporâneos. Já Foucault elaborou uma sofisticada reflexão metodológica sobre o que chamou de arqueologia do saber. O problema é que essa, embora referida, não comparece como tal nos estudos dos arqueólogos da mídia, sendo inclusive uma referência muito mais fraca do que a que neles exerce a pesquisa sobre a pré-história da modernidade proposta e esboçada, em vários textos, por Walter Benjamin. Creio que uma reflexão crítica e epistemológica sobre a arqueologia da mídia, comparativamente, teria de passar muito mais por esta última referência do que pelos textos de Flusser ou Foucault.


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Francisco Rüdiger já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:
McLuhan, da filosofia pop ao ostracismoRevista IHU On-Line, edição 357, de 11-04-2011


http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4106&secao=375

Nada nunca é igual

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