sábado, 15 de janeiro de 2011

DOR SILENCIADA

Era uma tarde de sábado chuvosa. Em melancolia, a idéia de ficar em casa ganhou em fluxo na cabeça de Ingrid. Excelente psicanalista, ela olha o vidro da janela e vê os tantos caminhos que as gotas de água podem fazer até chegar o seu fim. Cada gota, ainda que comece sua trajetória de maneira individual, para seguir seu caminho, tem que se juntar a outras e aos tantos caminhos que outras já fizeram. As gotas não seguem marcas iguais, apenas aqui e ali aproveitam o espaço desbravado de outras tantas gotas. Interessante as gotas. De sua espreguiçadeira, Ingrid é a gota. Ela está escorrendo e, hoje, sem nenhum controle. Sem querer, ela enfrenta um luto: um luto proibido. De longe imagina: se as gotas me olham aqui, sei que elas não me vêem. Sou também mais uma para elas. Sou parte de um painel cuja passividade ou movimento não lhes diz respeito, nem as impede de ‘caminhar’. Seus caminhos são percorridos à revelia de minha presença. Sou um objeto frio e desconhecido cuja função é nada. Interessante a gota. Hoje eu sou a gota. A chuva aumenta e Ingrid perde a gota. Dor. Tudo se fundiu tal e qual ela. De onde ela está o fogo é imenso. O calor é cáustico. Ela está muito emocionada e não sabe o que fazer com o que lhe aconteceu. Na casa há vozes familiares. Na janela, gotas univitelinas. Dentro dela, a ardência de um luto proibido. Dentro dela, a voracidade do amor estancado por decreto. Eu não quero mais! Ela não quer mais! Prazer de conquistar, prazer de descartar. Eros e Thanatos têm a mesma intensidade e, ali, não estão separados: ela ainda ama demais! Ingrid sabe que seu ponto de equilíbrio com a vida foi decepado. Ela sabe o que fez. Nem o movimento dos olhos distrai sua memória: sou impotente diante do amor demais. A pulsação está vertiginosa e ela tinha que viver isso tudo sozinha, de novo. Fracasso e impotência apesar da decisão tomada estão presentes. Um pensamento: as vozes familiares têm que ser respeitadas. Com uma força sobrenatural, vai até a escrivaninha e se senta. À sua frente, uma foto: o seqüestro de um momento secreto. Ela está invadida pela sensação de morte. Ela se toca e se descobre vapor: ela não é mais ninguém! O único contato com a dimensão pública era seu olhar: impávido e frio. Foram 20 anos de mundos diferentes em que nunca pôde se extravasar porque o julgamento social seria ferino demais. Não podia se inaugurar em ondas emocionais sem construir explicações mirabolantes. Ela perdeu um afeto sempre tão plenamente protegido por decreto. Ela perdeu a energia com a qual se mantinha sã e viva todo dia por respeito. E agora? Sem perceber, chora copiosamente e se diz: amo demais, mas amar é saber o momento de separar. Mas isso não convencia o seu coração, sua pele e seu olfato. O sentido de lateralidade estava perdido e seu labirinto, tantas vezes atravessado, estraçalhado. Isto só deveria acontecer com os outros. Ela deveria apenas falar sobre os outros. Ela só tinha que tratar dos outros. Mas também a finitude está na existência dos outros. Seu corpo já sentia a solidão. Não há o que velar ou enterrar, havia apenas a realidade de um desligamento abrupto: sou, de novo, apenas de mim. E o ‘de mim’ se integra ao mundo cheio de imperfeições: eu não sei o que mais fingir. Ela sabia que tinha que raciocinar e refletir, mas só sabia sentir. A chuva pára. As gotas não correm mais. Ela se deita embaixo do vidro e espera sem esperança. Nem dormir ela consegue. Os sonhos sempre foram bons esconderijos e ajudavam a manter o sorriso social. Mas hoje, Morpheus a abandonou. Ela está sem conforto, no chão, à espera da total inconsciência. Ela tem 34 anos e estava de luto por algo muito desejado. Quais os mecanismos certos para viver isso? Nenhum! É viver ou viver! Suas costas doíam demais. As gotas ‘viviam’ suas vidas com destreza e intensidade porque o tempo não lhes era nada. Sem que soubesse como, se viu sentada na garagem de casa, dentro do carro. De soslaio lembrou-se de suas histórias de liberdade e prazer. Fechada e em silencio, o que mais valiam eram as lembranças e sofria por causa delas. Qual o seu sentido hoje? Só o descompasso do coração e a vertência das lágrimas faziam barulho. A linguagem nunca foi uma opção e nem se ofereceu como amiga. Nunca se deixou ultrapassar por verbalizações porque teria que decidir prematuramente. E isso tudo era só dela, corria nela e sempre se voltava a ela: sua energia vital. Em alguns momentos se sentiu desfalecer, mas estava proibida disso também. Sem mais nem menos era preciso reconhecer, aceitar e lidar com tudo, mantendo ‘o fora’ longe disso. Seu mundo não tinha manchas de quaisquer julgamentos, apenas a força de um desejo, de uma paixão, de um amor vivido com volúpia e liberdade. Nunca sentiu vergonha, raiva, medo ou culpa, mas hoje, além desses sentimentos, ela estava desiludida, solitária e triste. Todo o corpo doía demais! Toda a alma doía demais! Era carga demais! Isso se chama ‘dor silenciada’ - reflete - cujo melhor resquício a se esperar era a amargura... De novo, o choro sonoro... Não há mais segredo. Ela não é diferente. Ela estava turva e sem cor. Ela voltou a ser apenas alguém sem méritos e sem um rosto. Ela começa a se pentear... se pentear... se pentear... passa batom... coloca brincos... acerta o relógio. Demitida de tudo, liga para uma amiga e disse quero lhe contar minha história...

Profa Claudia Nunes

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