quarta-feira, 22 de junho de 2011

CISNE NEGRO: uma leitura

Hoje eu vi o filme “Cisne Negro”. Não é aterrorizante, é uma história surpreendente! Fiquei tensa até o final porque me predispus a vê-lo dentro de um (pré) conceito: soberba. Afinal eu conhecia a história. Sinceramente fiquei chocada. O diretor captou as possibilidades de a alma ser recortada ou reprimida por diferentes motivos e de como essa atitude transfigura uma pessoa quando a volúpia do mundo exige outra performance de maneira imediata. A vida por trás de um cisne (metáfora do sucesso) pode ser de total penúria e conformismo, mas diante dos holofotes ganha nuances quase esquizofrênicas de força, coragem e dor.
Natalie Portman representa uma moça assolada pela ditadura materna porque precisava ir além do corpo de baile de uma companhia de balé. Nina precisava realizar o sonho da mãe a qualquer preço, mesmo que sob o disfarce da delicadeza, do carinho e do afeto exacerbado e castrador. Em torno de Nina, uma vida focada no balé, numa dança que exigia perfeição para aparecer e poder ser escolhida como a Rainha Cisne. Afinal, a mãe deixara um possível estrelato por causa da gravidez inesperada. Uma inconseqüência cuja culpa pesa sobre as costas de Nina.
Como em “O Diabo Veste Prada”, há um jogo perverso em cujo amor físico está fora de questão. A loucura é tanta que Nina parece se transformar no personagem que luta para representar: o Cisne Negro. Oprimida pela mãe, ela cria defesas psicológicas contra a vontade de sair do caminho pré-traçado: ser o cisne principal em nome da mãe. Nina não mais existe sem isso. Insegurança, timidez, ansiedade, tudo serve para que ela não viva sua própria vida. Todos são símbolos do medo: medo de não ser perfeita; medo de decepcionar; medo do fracasso, e isso dentro do sonho de outros. É uma marionete e sua alma está aprisionada num momento do tempo passado.
Nós, espectadores, mais do que nos assustarmos com certas cenas de duplo sentido ou em que aparecem duas personagens, reconhecemos que o diretor trabalha, nas entrelinhas, com o próprio ser humano em cuja personalidade vive o bem e o mal no limite. Este ser humano definha como indivíduo. Este ser humano foi talhado e retalhado para reconhecer e justificar sua existência cheia de antolhos. Quando em casa, há a opressão para o sucesso materno; no teatro, Nina sofre opressão inversa: ela precisa expor, na dança e no palco, uma delicadeza e um vigor sensual quase ao mesmo tempo. Ser frágil e ser dominadora na ponta dos pés e nos seus sentimentos.
No palco, duas irmãs gêmeas, Cisne Branco (Odete) e Cisne Negro (Odile), lutam pelo amor de um príncipe. Do Cisne Branco, ela é a figura perfeita, mas do Cisne Negro, segundo o diretor da peça, falta-lhe emoção, vibração, sensualidade. Falta-lhe o desejo. E sem tomar conhecimento de sua vida fora dos palcos ou dos ensaios, ele a provoca de todas as formas, afinal o Cisne Negro não tem pudores. Ela precisa se arriscar, ser o que é e algo mais, muito mais, e com isso transparecer a paixão do Cisne Negro. Ele provoca sua fúria e sua paixão.
O filme é uma história de transformação pessoal profunda cuja personagem Nina precisa sair de sua intropecção e penetrar na extroversão rapidamente. É preciso perceber que o desejo de perfeição se dá também em lugares escuros e, com o sucesso, ninguém olha mais para a escuridão. Indefesa, ela ensaia, ensaia e ensaia. Não há brilhos sem sombras e Nina sente isso. Todos querem tocar e atrair o lado mais escuro da mente humana: seu inconsciente, aquele que não reconhece limites ou ameaças. Nina é perturbada pela vontade, curiosidade, risco, mundo fora de si. Nina está em desequilíbrio.
Então ela entra num dilema: perfeição ou autoconhecimento? Ambas são naturais dentro do processo de amadurecimento humano, mas para que a tensão permaneça no filme e as cenas sobrepostas se justifiquem, ela é colocada numa encruzilhada e precisa escolher. Em casa e nos ensaios ser o Cisne Branco? Na rua, através do corpo ou quando escolhida, ser o Cisne Negro? Com a mãe, estar Cisne Branco? Com o diretor da peça, se dar ao Cisne Negro? Nina não existe mais, só suas sensações, imaginações e pensamentos. Nina é puro fluido dentro deste mundo caótico...
De repente, sem tempo para pensar, seu mundo está de cabeça para baixo e suas certezas questionáveis. Nina vive prazeres e relações diferentes, porém todos são abruptamente interrompidos por um elemento da realidade. Ela sente o gosto de outra forma de vida, mas o medo é bem maior. Nina atravessa a vida sob coitos interrompidos e estes interrompem o reencontro consigo mesma. Nina é puro medo. Tudo entra em duplicidade em sua vida, mas nada se amalgama. Tudo perde o controle e Nina não mais se reconhece em lugar nenhum. Casa e ensaios se desdobraram em muitas outras possibilidades de encontro com o prazer, mas nada a potencializa. E para Nina não há possibilidade de uma “terceira margem do rio” (Guimarães Rosa): ela vai escolher um dos lados.
Em desarmonia, Nina não segura a onda avassaladora do desejo do eu e aceita um mundo quase surtado. Nina é uma bomba-relógio. Perder-se tudo porque a mente se perde. Ao tocarem seus maiores esconderijos mentais, mãe e diretor distorcem suas certezas e criam uma personagem sem um amanha. Nina vai morrer...
Mesmo o que considera sonho (idolatria a bailaria que a substitui) é mentira. É uma nova versão da metáfora estabelecida pelo filme: Cisne Branco = nova e jovial promessa; já Cisne Negro = a estrela decadente e autodestrutiva. E ela não suporta isso. Ela reconhece a sua idolatria como fonte de morte: aqui surge o Cisne Negro. Aqui lembrei o filme “A Malvada” com Beth Davis. Idolatria como forma de matar e ocupar o lugar do outro. E para isso é preciso sentir e inflingir dor; é preciso ignorar uma das realidades impostas e Nina ignora a mãe na expectativa de voar além das sombras. Isso! Nina é uma sombra cheia de nuances cujo investimento em si mesmo é nulo.
Com o papel em mãos, Nina entra numa espiral decisiva em sua vida. As privações da vida entram em choque com diferentes experimentações, mesmo ilusórias. Desejos reprimidos, sonhos selvagens e atitudes impensáveis destroem todos os seus mecanismos de defesa e a atraem em direção às trevas. Sua conquista é sua ruína. Nina vai morrer. O espectador sabe disso. E uma frase reverbera em todo momento: “Perfeição técnica não supera a necessidade da emoção”.
Sua neurose é radical ainda que tenha aberto a caixa de Pandora um pouquinho. Porém, segundo alguns psicólogos, a neurose não suporta a loucura e a loucura transcende a neurose: Nina vai mesmo morrer. Tudo foi demais em sua vida. Nem o tempo tem o poder de apagar marcas tão profundas produzidas pela castração e centenas de frustrações. Seu abismo está bem próximo. Num átimo de insanidade cega, ela incorpora a perspectiva sombra (Negra) e tira de cena sua maior inimiga. Lily é desdobramento dos seus maiores conflitos internos e polariza sua escolha final: a Rainha Cisne.
Ao se sentir livre de qualquer bloqueio, Nina assume o prazer da dança, de ocupar seu espaço sem constrangimentos, de ser livre para ser livre. E a platéia confirma tudo isso: ela é a idolatrada agora.
No palco a volúpia da conquista. No camarim, o desmascaramento: a faca não atravessara o corpo de Lily, e sim o dela. Em seu delírio, Nina se autodestruiu. Ao retornar ao palco para o ato final, Nina é o lindo Cisne Branco que perdeu sua paixão e que se mata por isso. Perfeição dupla! Em meio aos histéricos aplausos, ela se joga feliz do alto de sua vida sufocante e caótica. Ela está em paz e diz: “Foi perfeito. Perfeito”.
O filme “Cisne Negro” vale para que percebamos que “nosso pior e maior inimigo somos nós mesmos” ou, como Sartre disse uma vez: “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”.
Nunca mais verei “O Lago dos Cisnes” do mesmo jeito!

Referências:

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