O sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos, reflete Erick Felinto de Oliveira
Por: Márcia Junges e Thamiris Magalhães
A arqueologia da mídia, segundo Erick Felinto de Oliveira, nasce do encontro do pós-estruturalismo francês com a contribuição alemã de certas formas de abordagem históricas e filosóficas. “Sua importância para os estudos de mídia, hoje, me parece que tem a ver com a necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente”, diz, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o pesquisador, o sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos. “Aliás, já afirmei algumas vezes que alguns pesquisadores das mídias digitais demonstram uma assustadora ignorância histórica, isolando o presente numa ‘cápsula temporal’ que nos impede de enxergar quadros culturais, políticos, econômicos ou tecnológicos mais amplos”. Erick Felinto de Oliveira é doutor em Literatura Comparada pela UERJ/UCLA e tem pós-doutorado em Comunicação pela Universität der Künste, Berlim. É pesquisador do CNPq e professor adjunto na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, instituição em que realiza pesquisas sobre cinema e cibercultura. É autor dos livros A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura (Porto Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (com Ivana Bentes. Porto Alegre: Sulina, 2010); e A imagem espectral: cinema e fantasmagoria tecnológica (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a definição mais adequada para o conceito arqueologia da mídia?
Erick Felinto de Oliveira – Este ano precisamente, graças aos esforços de meu amigo Jussi Parikka e de Erkki Huhtamo, foi publicada a primeira coletânea de ensaios dedicados a delinear as feições da assim chamada “arqueologia da mídia” (PARIKKA, J.; HUHTAMO, E. Media archaeology: approaches, applications and implications. Berkeley: University of California Press, 2011). Como os autores deixam claro na introdução da obra, não existe uma definição “normativa” da proposta da arqueologia da mídia, assim como tampouco existem métodos definidos de pesquisa. Aliás, um dos elementos que me parecem interessantes nesse paradigma de investigação é precisamente sua relativa indefinição (que lhe dá grande flexibilidade e abrangência). Isso não significa que não existam linhas de força ou feições capazes de caracterizá-la minimamente. A arqueologia da mídia é algo bastante novo (ainda que o termo em si já possua alguma história), e apenas agora começa a popularizar-se e conquistar um estatuto mais definido. Ela dialoga com certos aspectos importantes de abordagens características da teoria pós-moderna, como o materialismo cultural, as teorias de gênero, a análise do discurso, os estudos pós-coloniais, noções de temporalidade não linear etc. O que ela faz essencialmente é vasculhar os arquivos textuais, visuais e auditivos das mídias (de todas as mídias, analógicas ou digitais), enfatizando as manifestações discursivas e materiais da cultura. Pode-se dizer que ela tem traços e uma história de desenvolvimento com fortes acentos germânicos – ainda que esteja rapidamente se popularizando também em outros ambientes intelectuais. Isso porque muitos teóricos alemães da mídia, como Friedrich Kittler, Siegfried Zielinski e Wolfgang Ernst demonstram o mesmo interesse pelas abordagens históricas, pela relação com a obra de Foucault, pelo fascínio com as ideias de registro e arquivo, pelo foco na questão das ‘materialidades da comunicação’... Esses temas, essenciais à proposta da arqueologia da mídia, têm certo apelo cultural no universo germânico que seria muito difícil explicar em poucas linhas. Um aspecto importante da arqueologia da mídia é sua preocupação em efetuar uma leitura da história “a contrapelo” (para usar um termo de Walter Benjamin). Ou seja, uma história que rejeita as narrativas triunfalistas e dominantes da grande odisseia tecnológica em benefício de um foco em narrativas heterodoxas, direcionada a ‘coisas’ (objetos, ideias, tecnologias) que não ‘deram certo’ ou que representaram paradigmas minoritários. Além disso, os arqueólogos da mídia se inspiram na arqueologia dos saberes de Foucault, mas compensando, através dos estudos de mídia, seu baixo interesse pelos suportes materiais (meios e tecnologias) por meio dos quais os discursos dominantes de uma época são veiculados.
IHU On-Line – Qual é o contexto de seu surgimento e qual é sua importância para os estudos da mídia atualmente?
Erick Felinto de Oliveira – Eu já esbocei rapidamente o contexto de origem da arqueologia da mídia; mas eu complementaria isso dizendo que ela nasce do encontro do pós-estruturalismo francês com a contribuição alemã de certas formas de abordagem históricas e filosóficas (e aqui autores como Heidegger e Benjamin são referências fundamentais). Sua importância para os estudos de mídia, hoje, me parece que tem a ver com a necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente. O sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos. Aliás, já afirmei algumas vezes que alguns pesquisadores das mídias digitais demonstram uma assustadora ignorância histórica, isolando o presente numa ‘cápsula temporal’ que nos impede de enxergar quadros culturais, políticos, econômicos ou tecnológicos mais amplos.
IHU On-Line – Em que aspectos a arqueologia da mídia pode ser um antídoto contra a amnésia histórica que caracteriza parte da pesquisa sobre os meios na atualidade?
Erick Felinto de Oliveira – Acho que a resposta a essa questão foi pelo menos esboçada nas formulações acima. O fato é que muitos autores hoje, mesmo sem usar o termo “arqueologia da mídia”, já começam a fazer uso de abordagens históricas e de uma atenção ao passado que os aproxima dessa proposta. É o caso de Lev Manovich, Lisa Gitelman e Oliver Grau, por exemplo. Manovich aborda o cinema digital através de sua aproximação a certas formas estéticas e tipos de experiência características dos momentos de origem da tecnologia no século XIX. Gitelman estuda as formas como os meios característicos de diferentes épocas são experimentados e estudados como sujeitos históricos.
IHU On-Line – Qual é o papel da arqueologia da mídia para compreender a era da memória total e do esquecimento contínuo?
Erick Felinto de Oliveira – A arqueologia da mídia se articula sobre duas questões que estão profundamente ligadas a esses dois polos: o tema dos arquivos (analógicos ou digitais) e da armazenagem e registro (os “sistemas de notação” de Kittler) e o das rápidas e descontínuas mutações culturais e tecnológicas, especialmente a partir da modernidade. Assim, estruturam-se, em certo sentido, em torno dessas duas – paradoxalmente contraditórias – tendências da nossa época. Além disso, como fica mais claro nas obras de Kittler e de Ernst, apresenta-nos um modelo de subjetividade não apenas bastante esvaziado de memória, mas também muito enfraquecido em todos os aspectos. Um conceito de subjetividade, diríamos, essencialmente “anti-humanista”, no qual o sujeito não é normalmente o senhor das tecnologias e dos discursos, mas seu assujeitado. Como diz Kittler, “os meios determinam nossa situação”. No contexto brasileiro, conquistou grande êxito o chavão de “determinismo tecnológico” para se criticar pensadores como McLuhan. Esse chavão seria aplicável, com muito mais justiça, a Kittler (em alguma medida, também a Bruno Latour). Mas, na perspectiva da teoria da mídia alemã ou da arqueologia da mídia, ele na verdade não faz sentido algum, pois a arqueologia da mídia parte do princípio de que os meios e materialidades comunicacionais estabelecem as condições de produção dos discursos e saberes sociais. Seguindo a pista de Foucault, Kittler afirma que o “assim chamado homem” (Der sogennate Mensch) teve data de nascimento recente e já vivencia desde agora seus últimos estertores. Para muitos, isso parecerá pessimista ou apocalíptico. Prefiro não entrar nessas discussões aqui, pois não vejo muito sentido nelas.
IHU On-Line – Qual é a atualidade da ideia de ressentimento nietzschiano, se pensarmos no excesso de memória e no paradoxo do esquecimento a que estamos submetidos?
Erick Felinto de Oliveira – Ela parte de uma concepção de história absolutamente não evolucionista, não linear, e estuda as rupturas, os choques, as “catástrofes”. É uma história de descontinuidades – mais uma vez inspirada em Foucault – que a história dos meios ilustra belamente. Basta pensar como determinadas tecnologias se anunciaram de forma triunfal para depois rapidamente caírem no esquecimento e serem substituídas por outros paradigmas. O livro de Zielisnki, O tempo profundo da mídia, oferece interessantes estudos de caso. Ele retorna a certos momentos históricos que para nossas historiografias da mídia mais tradicionais são quase inexistentes (como a Grécia antiga e o período barroco). A partir daí, estuda invenções ou ideias que possuíam grande potencial, mas nunca chegaram a fazer parte do mainstream. São esses momentos de irrupção de forças heteronômicas, inclusive, que permitirão a Zielinski falar depois em uma “variantologia da mídia” – uma disciplina que estudaria as variações, as rupturas, as possibilidades não realizadas que a história triunfalista da tecnologia insistentemente recusou.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios que as novas tecnologias digitais irão trazer para a mídia nos próximos anos?
Erick Felinto de Oliveira – Esse é o tipo de pergunta que pode facilmente descambar para uma retórica futurologista típica, por exemplo, dos discursos marqueteiros sobre as novas tecnologias. Não quero fazer exercícios de futurologia, ainda que a arqueologia da mídia (e alguns de seus grandes precursores, como McLuhan ou Flusser) tenha ocasionalmente se envolvido com isso – e muitas vezes com bastante êxito. O fato é que uma resposta séria para esse tipo de pergunta só cabe no espaço de livros ou ensaios. No contexto de uma entrevista como essa, acho que seria irresponsável oferecer qualquer resposta exaustiva. Aqui, eu só arrisco dizer que as mídias digitais potencializaram enormemente algumas características que já apareciam em germe em paradigmas tecnológicos anteriores. Para a academia, para as ciências da comunicação, acho que um dos desafios será aprender que o futuro, definitivamente, não é um cenário de disciplinas recortadas e conceitos lindamente definidos. O futuro será cada vez mais complexo, híbrido, incerto e heterogêneo.
IHU On-Line – Mais do que uma plataforma tecnológica, a internet representa uma nova possibilidade de “ser”, de existência. Pensando nessa ambiência, como percebe a passagem cultural da existência humana física para o âmbito da existência na internet, virtual?
Erick Felinto de Oliveira – Não sei se a internet representa uma “nova possibilidade de ser”. Esse tipo de formulação me soa metafísico (ou místico) demais. A arqueologia da mídia fala em rupturas e descontinuidades. Mas isso para mostrar que essa descontinuidade não é um privilégio do momento presente ou uma grande conquista do digital. O que combato, inclusive ao usar as ferramentas da arqueologia da mídia, é precisamente a ideia de que o digital represente uma revolução, uma novidade radical, uma desvinculação com toda a história passada que a precedeu. Não sou grande fã de Pierre Lévy (um autor que aqui no Brasil conquistou bastante popularidade), pois acho a ingenuidade de suas especulações perigosa. Não tenho nada contra as utopias; eu as considero importantes e é saudável ocasionalmente imaginar futuros luminosos. Mas um imaginário sem rédeas é também uma abertura para a apatia e a ausência de crítica. Como disse Hans Blumenberg , “na ausência da história repousa toda oportunidade de remitologização”. Por isso acho meio ridícula a posição de pesquisadores que se recusam a ler autores críticos (a Escola de Frankfurt, por exemplo) para darem uma de “moderninhos” ou liberais. Quanto menos eu gosto do Lévy, mais eu o leio, inclusive para enxergar o que me parecem ser alguns equívocos do discurso triunfalista. Quanto mais me perturbam os elitismos de um Adorno , mais eu busco compreender de onde eles vêm. A internet acarretou certamente um importante conjunto de transformações sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo, também favoreceu formas e experiências de extremo conservadorismo. Por enquanto não a enxergo como “nova possibilidade de ser”, mas simplesmente como um locus – que é de ordem tanto material como imaterial – dotado de múltiplos “espaços” de ocupação à nossa disposição. Se é verdade que em certas ocasiões a minha experiência de navegar me faz experimentar impressões de descorporificação, por outro lado, devo estar sempre atento às circunstâncias materiais, políticas, econômicas e culturais de meu acesso à rede. O que eu sou é determinado por um conjunto de forças materiais (tecnologias) e imateriais (discursos) que me atravessam. A internet é apenas uma delas.
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