sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CHORAR POR ÉTICA

Hoje só a psicologia pode me ajudar. Sem querer fiz parte de um jogo histérico cujo final foi o alívio. Parada numa sala de estar observo, de maneira quase palpável, como a hipocrisia pode se dissipar de um ambiente diante de uma notícia, uma situação ou o simples desaparecimento de alguém. Neste momento, a fala baixa, o sorriso amarelo, a sensação de menosprezo, as irritações, tão comuns no cotidiano do trabalho, se esvaem porque uma massacrante repressão acabou. A ditadura de um pretenso poder acabou!

Em muitos anos, houve uma desonestidade nos comportamentos de todos porque, humanos, era preciso preservação e sobrevivência. Tal e qual uma cadeia hierárquica de uma grande empresa, as altas patentes detiveram o controle e o poder da vida e da morte financeiras das pessoas. E por mais que, nas aparências, as relações fossem de cordialidade e educação, de onde estou olhando agora, as ações se pautavam na dinâmica do fingimento.

Pelo que entendi, todos conviviam de sobreaviso, tensos, sobressaltados, diante da passagem ou presença de outro alguém impressionantemente manipulador e estrategista. Sendo assim, a histeria significava alívio coletivo, respiração livre e a possibilidade de ir-e-vir sem ‘ponta dos pés’. Sentada naquele sofá, ouvia com atenção histórias e muitos sorrisos, histórias e comemorações, história e outras histórias de negações, humilhações e ‘puxadas de tapetes’, aparentemente sem sentido, incompreensíveis.

De um teatro tragicômico de hipocrisias cotidianas e múltiplas para o bem viver, surge um teatro histérico das liberdades cômicas para um mundo melhor. Explico caro leitor: houve uma demissão.

De uma equipe de trabalho, há anos sendo lapidada pelas intempéries de uma personalidade, um ser foi demitido. Pelo que observo primeiro com alegria e compartilhamento e, depois com apreensão e expectativa, este fora um desejo de todos nas entrelinhas dos horários de trabalho. Eu presencio quase uma festa bacante de abraços, almoços, sorrisos, telefonemas, e-mails e torpedos: todos de muitas congratulações. Impressionante! A perda, o corte, o desaparecimento, a saída fora um desejo coletivo.

No meio do corredor, uma pergunta ditava a linha da alegria: “é verdade?”. E daí recomeçaram os ritmos dos corpos histéricos. Eu estou deslumbrada. Não alcanço a possibilidade de alguém gerar estas manifestações e, por conseqüência, tantos ‘alguéns’ felizes com a perda da convivência social. Ao contrário do que alardeamos por aí, além da hipocrisia, sumia gradativamente frustrações, friezas, silêncios e desafetos. Eu estou presenciando outra realidade emocional.

Tudo expunha a certeza de que este fora um ambiente traumático. “Difícil retornar para os afazeres” – eu pensei. Realmente era uma complexidade de sensações e percepções criando vários desentendimentos em mim. Após este momento de euforia coletiva, volto ao meu carro com minha melhor amiga. Esta chora. Ela se sente triste pelo passamento. Não é assim que ela pensava resolver as coisas ou como as coisas se resolveriam. Ela tem sentimentos controversos, mas luta para sentir o certo e não se deixar dominar pelas felicidades alheias. Isto é inconcebível para ela. Ela não sabe quem é pior: eles ou o outro.

No carro, um desabafo ético. A convivência, para ela, fora extremamente desagradável, humilhante, degradante e sem mais nenhuma empatia. Sua sensibilidade e competência foram postas à prova diversas vezes. Ano a ano, sua auto-estima fora minada com feedbacks dissimulados, estigmatizados e preconceituosos. Fora provocada e exposta inúmeras vezes sem direito à réplica. E mesmo assim preferiu o ‘junto’ ao invés do ‘separado’. Era uma aposta mais em si, em sua capacidade de superação profissional e de sustentação física e mental, do que num possível diálogo transformador.

Minha amiga ignorou as vozes da agressão, da indisciplina, da réplica insubordinada ou da saída definitiva porque aprendera que certas coisas na vida são encargos que precisam ser vividos até o fim. Esta idéia a levara a construir uma couraça de subserviência enganadora. Ainda assim fora uma fase de pensamentos e vivências de enormes discrepâncias e muitos questionamentos: ela, às vezes, duvidara de si mesma. O que os outros (ou outro) achava(m) dela apresentava-se como mais forte do que o que ela mesma sabia de si. Em meio às lágrimas, minha amiga se analisa: eu me sabotei?

Quem então estaria fazendo da vida um grande teatro, uma grande fantasia? Ela não sabe, mas grandes foram suas dificuldades adaptativas, afinal sua auto-avaliação global e profissional fora muito positiva em diferentes lugares, exceto ali. O mundo do trabalho pode ser muito cruel quando, ao estabelecer metas, nos deparamos com seres que, sorrateiramente, nos obrigam a reformular tudo a cada segundo da vida. Este processo mais do que crescimento, pelo volume e sordidez das exigências, gera insegurança e pouca proatividade. Começamos a agir na dependência da análise do outro, só do outro, e isso é/foi péssimo.

No bolo desses maus presságios trincados ficam nossa competência, nossa saúde, nossas relações interpessoais e até mesmo nossa sorte. E aí as doenças do século XXI começam a invadir corpo e mente. Depressão e estresse se amalgamam em nosso nome e sobrenome. Nossas emoções tornam-se desordenadas e confusas. Minha amiga sofria assédio moral, mas não entrou na cena farsante do processo cotidiano e nem na euforia coletiva do ‘apagar das luzes’. Minha amiga sofreu arrogâncias, empáfias, orgulhos, intimidações, mas optou sempre (e agora) pelo silêncio dos justos, dos inocentes e dos crédulos.

Hoje, no meu carro, ela chora compulsivamente não por hipocrisia ou alívio, mas porque perdeu a oportunidade de se fazer entender, de criar outro clima de trabalho, de mostrar que as coisas poderiam ser de outra forma, de modificar a visão sobre ela, de estabelecer outro tipo de diálogo e, principalmente, de mostrar que nunca fora uma ‘mosca-morta’.

Minha amiga chora pela ética.
Minha amiga chora por ética.

Enfim, parabéns!

Ms Profa Claudia Nunes

sábado, 8 de outubro de 2011

ATÉ QUANDO?

ATÉ QUANDO?

Há novos ares sendo respirados na educação estadual carioca. Há nova administração instaurando novos procedimentos que dinamizem as práticas pedagógicas. E há professores ainda extremamente descrentes quanto às mudanças ou quanto à possibilidade de se obter mais qualificação nas formas de aprender. Até quando?
Há o reconhecimento de que as políticas públicas voltadas à educação, por exemplo, do Ensino Médio, dependem da gestão em questão e em seu tempo de serviço na pasta. Há a certeza de que as propostas governamentais já nascem com data de término: a mudança de governo ou do próprio secretário. Até quando?
Diante desta situação híbrida, os educadores criaram uma couraça em torno de si mesmos: todo e qualquer indicativo ou projeto de mudança é desacreditado, questionado e, por vezes, anulado. E isto não é um posicionamento por infantilidade ou imaturidade. É uma postura contextualizada, ou seja, surgida a partir das várias experiências interessantes que realizaram (os educadores), mas quase nunca valorizadas. Em cada experiência de projeto ou de mudança estratégica de governo, muitos esforços, desgastes, apostas e... nada! Sem respaldo, sem retorno, sem valorização, esquecido, o educador se percebe inútil, então também se pergunta: até quando?
            Atualmente, de novo, apresenta-se uma luz ao final do túnel: há uma política pública de revalorização dos educadores por meio de pequenos (e contínuos) aumentos de salários, diferentes gratificações, aberturas de espaços de formação continuada e alguns bônus de incentivo à pesquisa e à leitura. Nada de excelência ou que transforme a visão da sociedade sobre o educador ou a visão do próprio educador sobre si mesmo com agilidade, mas, diante de uma terra árida (políticas anteriores), dos males o menor; ou diante de um ‘nada’ anterior, apresenta-se uma primavera diferente. Até quando?
            Segundo minha avó, porém, ‘para todo bônus, há um ônus’. E, no caso do ensino, este ônus apresenta-se nas exigências de reestruturação física e pedagógica da escola quase que urgentes, lembremos que o tempo das mudanças de governantes está próximo. Primeiro, há apresentação e conscientização dos gestores (entendidos como multiplicadores) quanto ao novo momento. Segundo, há a implantação de um programa cujos itens devem ser observados e suplantados quando fora dos padrões (ou metas) estipulados. E terceiro, há a construção de uma filosofia pedagógica voltada à dinamização, estímulo e motivação dos educandos. Sendo bem simples, duas questões devem ser revertidas: a ‘infrequencia’ e a indisciplina. Até quando?
            Entende-se, então, que a introdução, por exemplo, de recursos tecnológicos digitais e virtuais às atividades de aula e mesmo a realização de aulas inovadoras e diferenciadas (mais dinâmicas) são fundamentais para o reposicionamento da escola como ambiente de encontro com a informação e de construção do conhecimento, além fazer com que os educandos permaneçam mais tempo em seu interior. Até quando?
           Nesta perspectiva, tem-se observado a realização de vários projetos interdisciplinares, ou didáticos dentro da compreensão de inovação dos processos de aprendizagem. Vários educadores têm se esforçado em reler suas práticas de ensino e estabelecer novos desafios ao ato de ensinar. Mais do que o conteúdo, percebe-se que os educadores investem em carregar os educandos com variadas ferramentas que lhes proporcionem melhor integração em sociedade. As ações coletivas começam a ser focalizadas como pontos de onde os educadores podem resgatar as atenções de seus educandos ao contexto de maneira geral. Mas até quando?
            Esta semana houve novo projeto de sensibilização na escola. Mas uma sensibilização dos educadores quanto a si mesmos; sua posição, hoje, em sociedade e, mesmo diante dos seus educandos. A equipe pedagógica promoveu um encontro pedagógico com outro projeto, o “PAPO DE RESPONSA”, projeto que prioriza as vozes desejantes de mudanças e a responsabilização sobre os sonhos e o futuro de si e dos outros, sob sua (aqui, dos educadores) responsabilidade ou não. Houve estranhamento, certo mal-estar e uma grande expectativa: os educadores não foram informados sobre o porquê do encontro. Era um desconforto necessário. Era uma experiência necessária, afinal, educadores fazem isso o tempo todo com seus educandos. Até quando?
            Tudo correu bem. Depois das primeiras palavras dos palestrantes (um policial a caráter e um ex-criminoso), o desconforto virou surpresa e a surpresa, novos pensamentos. A desconfiança virou possibilidade e entendimento. Mas, e ainda assim, houve educadores ausentes e os que agiram com descaso: estavam na escola, mas optaram por não participar. Não há aqui inocência de expectativa: todos iriam participar. Há, talvez, a esperança de que a ética falasse mais alto do que a tradição; ou que a delicadeza e o coleguismo fossem mais fortes do que uma visão de mundo tão rude. Neste momento não há como não julgar: estes educadores se anularam; anularam a possibilidade de discussão; de confronto, nunca de conflito; de vitalizar o papo com um ideário carregado de outras informações; anularam a possibilidade de crescimento de todos. Até quando?
            Fora isso, estes educadores discursaram, pelos corredores, sobre a inutilidade da proposta do projeto porque, segundo eles, pertencem à escola tradicional, gostam da aula tradicional, ministram aulas mesmo e que ‘essa coisa’ de projeto (ou promoção de palestras) é ação de quem não gosta de trabalhar sério. Triste, muito triste... Estou incomodada. Até quando?
            Esta fala não os desqualificam como profissionais de ensino. Anos de exercício do ensino, com suas dinâmicas tradicionais, não podem ser desconsideradas e nem descartadas. Mas se considerarmos que os educandos são outros, mais envolvidos com as novas tecnologias, com novas responsabilidades profissionais e experiências relacionais, mas se acreditando com poucas expectativas de futuro, como ficam estes educadores?
            É difícil entender que a questão dos desenvolvimentos dos mais variados projetos e/ou atividades didáticas diferentes criam opções ao ensinar e ao aprender? Aprender a aprender tornou-se primordial para estimular o aprender a ser, a conviver, e principalmente, a fazer. Não dá mais para se manter uma postura indiferente às mudanças. Não dá mais para, como São Tomé, ‘pagar para ver’ de longe. Este fechamento absoluto quanto à possibilidade de inovar pode provocar incompreensão nos educandos quanto à sua realidade e divergências entre os outros educadores quanto ao seu papel, fatos que, hoje, mais atrapalham, do que ajudam a transformação da escola, do ensino-aprendizagem, da educação em geral.
            Até quando?

Ms. Profa Claudia Nunes

Quando a MÁSCARA vira ROSTO



Ter um ou mais personagens para encarar a pedreira do mundo é não só necessário, como uma questão de sobrevivência. Especialmente se você tiver uma sensibilidade extremada. Nascemos com uma pelezinha de bebê também na alma (e aqui não me refiro ao sentido religioso do termo) e precisamos protegê-la. Se há algo que os outros pressentem é o tamanho da nossa fragilidade. Por isso um chefe abusivo sempre sabe com quem pode gritar – e com quem é melhor não. Muita gente é como aqueles cães de caça farejando o flanco mais indefeso para atacar sua presa. Triste, triste. Mas mais triste é quando, em nome da necessidade de sobreviver, criamos um personagem que se mostra tão útil que acaba se confundindo com nossa derme mais profunda. Se criar personagens é preciso, despir-se deles constantemente é vital.

Como ando bastante por aí, tanto por razões profissionais quanto por gosto, observo muito as pessoas. E seus personagens. E, muitas vezes, tenho vontade de dizer, e em algumas delas, se há um grau de intimidade que me permita falar sem ofender, eu digo: “Pronto, você já fez o seu show. Agora, por favor, para jantar comigo enfia a máscara dentro da bolsa e relaxa”.

Ninguém se iluda de que é absolutamente verdadeiro o tempo todo, até porque somos muitas verdades ao mesmo tempo e seguidamente elas são contraditórias. Aquelas pessoas que parecem muito “autênticas” porque são extrovertidas, dizem coisas chocantes, se arriscam no estilo, estão muito bem cobertas por suas máscaras e morrem de medo de serem reveladas. A máscara do “autêntico”, “louco” ou “excêntrico” é uma das mais corriqueiras. Este tipo faz piada com o ponto fraco dos outros, dando gargalhadas e batendo nas costas da vítima e, quando alguém reclama, uma meia dúzia de amigos sai em sua defesa dizendo que “é o jeito dele”. Ahan.

Há o tipo “bonzinho” que, mesmo fazendo coisas horríveis e muito bem dissimuladas de vez em quando, é tão convincente no “foi sem querer” ou “ele jamais faria isso de propósito” que é imediatamente perdoado. Existe a “mulherzinha”, tão frágil que parece que vai quebrar a qualquer adjetivo mais eloquente. Esta manipula brilhantemente nossos mais primitivos instintos de proteção e, se você tem a coragem de dizer para ela tomar jeito e prescindir do diminutivo, imediatamente é você quem vira uma megera. E há o seu oposto, “a mulher alfa”, esculpida a navalhadas, que se arma de sapatos de bico fino, terninhos de grife e cortes de cabelo modernos, mas práticos, para arrasar meio mundo a bordo de sua armadura como se o melhor produto do feminismo fosse uma mulher se tornar um clichê de homem.

Enfim, são muitas as fantasias que vestimos para não sermos engolidos pelo mundo. Em geral não somos nem mesmo uma máscara definida, como as que acabei de expor apenas como recurso didático. Não somos Batman, Coringa, Gilda, Bambi ou Madre Tereza de Calcutá. Somos uma mistura de vários estereótipos. E, se é verdade que vestimos máscaras, também é verdade que não há um “eu” essencial – mas sim um “eu” fluido e incapturável, em constante movimento de mutação. E é nesta fluidez do eu, que não pode ser confundida com ausência de rosto, que residem nossas verdades mais profundas.

Acho que nossas máscaras começam a colar no nosso rosto ainda na infância. Uma mistura entre a necessidade de rotular que os pais em geral têm e o nosso desejo de satisfazê-los – ou de escapar da prisão que intuímos. Numa família com mais de um filho é mais fácil perceber. Um é o extrovertido, o outro é o tímido, outro ainda é o rebelde. Ou um é o estudioso que “não dá trabalho nenhum”, o outro é o vagabundo que ninguém sabe “por quem puxou”. E há o outro que tem – socorro! – “transtorno do déficit de atenção e hiperatividade”.

Os pais costumam botar um rótulo em cada filho, e a escola raramente tem competência para, em vez de reforçá-los, quebrá-los para que as crianças tenham outras possibilidades de expressar aquilo que são ou se tornar algo diferente do que foram levadas a ser. Uma pena, porque quebrar máscaras impingidas ainda na infância talvez seja a grande função de um educador. É muito difícil identificar se alguém “é assim” ou se tornou o que sempre ouviu que era. Agora, que as crianças são medicalizadas cada vez mais cedo e os rótulos ganharam status de “diagnóstico”, com a entrada do “especialista”, danou-se.

De fato, ninguém é – todos nós nos tornamos. E este “tornar-se” não é um caminho linear rumo a um rosto definitivo, que daria conta de nossa essência. Não há essência, o que existe é construção a partir de um conjunto de genes, de influências ambientais e experiências as mais variadas, de inscrição no momento histórico e de livre arbítrio – ainda que o livre arbítrio nunca seja tão livre assim. Embora possa ser assustador pensar que não há um “eu” essencial a ser alcançado, de fato é bastante libertador.

Somos uma constante invenção e reinvenção. E, tão importante quanto, desinvenção. Vale a pena não esquecer que sempre podemos nos desinventar. Ainda que carreguemos conosco tudo aquilo que vivemos, a mágica está em dar novos significados a antigas experiências e ter a sabedoria de nos livrarmos do que não é nosso, apenas foi impingido a nós como uma roupa de gosto duvidoso. Por isso, é bom tomarmos muito cuidado para não rotular os outros, como se nossas sentenças fossem imunes de preconceitos. E mais cuidado ainda se estes outros forem os nossos filhos, para que nossos rótulos não virem destino.

Acho que a melhor forma de não impingir máscaras aos outros é não impingi-las a nós mesmos. É bem fácil cair na tentação de transformar uma de nossas máscaras, aquela que nos parece mais eficaz no embate cotidiano, em nosso rosto definitivo. A máscara se torna tão usada que vai se fundindo primeiro à nossa pele, depois aos nossos ossos. Não é que vire ferro, como no clássico de Alexandre Dumas. O problema é que vira carne humana, mesmo. E aí, meu amigo, fica bem difícil de arrancá-la, porque passamos a acreditar que morreremos no processo. Ou que, por trás dela, não há um ou muitos rostos, mas um vazio infinito. Muita gente se agarra a seu personagem com medo de que, se a máscara for arrancada, descubram que não há nada lá. A máscara serviria, neste caso, para esconder a ausência de face.

Tento me livrar da tentação de virar personagem, uma máscara só, pela própria escrita. Parte do ímpeto que me move a inventar outras vozes narrativas para mim e outras bases para estabelecer o cotidiano se dá pelo meu temor de acabar gostando demais de alguma máscara conveniente. Tento me quebrar o tempo todo me jogando em desafios novos sem pensar muito nos riscos para me desgarrar da tentação das certezas sobre mim. Tem funcionado.

Além das mudanças mais profundas, que quem me acompanha nesta coluna está cansado de saber, há pequenas trocas de atitude que podem ser bem divertidas. Eu sempre fui disciplinadíssima, por exemplo. Estou numa luta feroz comigo mesma para deixar de ser. No último final de semana consegui um feito inédito em 45 anos de vida: dormi 16 horas seguidas. Almocei e ainda me entreguei a mais duas horas de sesta. Vou acabar esta coluna e tomar uma cerveja em comemoração a isso.

Sempre fui pontualíssima e, como todas as pessoas pontuais deste país, esperava muito. A ponto de o garçom ficar com pena e vir conversar comigo. Agora, com exceção dos compromissos de trabalho, resolvi deixar todo mundo me esperando. É uma delícia a cara de surpresa dos amigos. Chego e está todo mundo lá. Costumava comer chocolates aos poucos. E, quando ia comer, antecipando o gosto do bombom desmanchando na minha boca, alguém lá de casa já tinha dado cabo dele. E ainda me acusava: “Você faz isso de propósito, para me tentar. Por sua causa, acabo engordando”. Pronto, além de ficar sem chocolate, ainda era culpada pelo descontrole alheio. Mudei. Agora devoro compulsivamente meus chocolates e também o dos outros.

Não, não parecem mudanças muito salutares, eu sei. Mas elas cumprem, pelo menos por algum tempo, a função de me desconstruir tanto aos meus olhos como aos olhos dos outros, que cultivam a pretensão de que a gente seja a mesma até o final dos tempos. Um peso que, com licença, não pretendo arrastar por aí como se fosse meu.

Especialmente nas questões mais profundas, desmascarar a si mesmo é uma prática importante do cotidiano. E também um ato que precisa ser constantemente recriado. Nosso instinto de sobrevivência engendra armadilhas e argumentos bem convincentes para absorver este “duvidar de si mesmo”, que nos mantêm alertas com relação a nossos próprios ardis, e acaba por torná-lo mais um penduricalho que tem apenas um efeito placebo. O que o mercado faz com a contestação ao mercado, transformando-a em um produto, nós fazemos com relação à nossa porção contestadora, ao transformá-la em nossa versão de mercado. De tal forma que, um dia, sem perceber, paramos de tirar a maquiagem no fim da noite e dormimos acreditando que a máscara é a nossa cara.

Dias atrás encontrei um conhecido muito talentoso. É brilhante mais vezes do que a maioria. Arrasta com ele uma legião de fãs. E, principalmente, tem o que dizer por que é um grande criador. Fazia algum tempo que não o encontrava pessoalmente e fiquei estarrecida ao perceber que ele tinha virado um personagem, um bufão. Não mais um bufão como forma de contestar a hipocrisia, mas um bufão como forma de não ser contestado em sua hipocrisia.

Torço para que ele perceba a tempo que a máscara é uma versão bem pobre dele mesmo, já que não tenho intimidade para dizer a ele eu mesma. Enquanto isso, ao testemunhar a figura triste em que ele se transformou, tratei de aprimorar meus próprios alarmes antimáscaras. E escrevi esta coluna na esperança de que ela possa ajudar a acionar a sirene em cada leitor. As máscaras têm sua função, desde que não nos apeguemos a elas a ponto de fazer da mais confortável um rosto que agrada a todos – menos a nós mesmos.


Eliane Brum


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O PASSADO PODE NOS ENSINAR A SEU PRÓPRIO RESPEITO

Embora a atitude crítica não seja cultivada pelos seus praticantes, os estudos de arqueologia da mídia, pela sua própria metodologia, estabelecem confrontação de seus resultados com o culto do novo que tanto marca a cultura da mídia e o avanço das tecnologias, constata Francisco Rüdiger
Por: Thamiris Magalhães


A arqueologia da mídia pode ser entendida como um “método de estudo da história, em que as técnicas de comunicação são iluminadas pela cultura e o imaginário social de cada época, em que se pesquisam as conexões, mas também as rupturas, as continuidades e esquecimentos do processo em que os fenômenos de comunicação, seus meios sobretudo, se vão formando e entrelaçando com outros processos e estruturas coletivas”. É o que afirma o docente Francisco Rüdiger, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para Rüdiger, os estudos de mídia costumam ser ofuscados pelo fetiche da novidade. “O novo tem um valor intrínseco nesse meio profissional e intelectual. O resultado é uma cegueira para o fato de que um processo histórico precede e ajuda a entender o seu aparecimento, tanto quanto a dinâmica de seus fenômenos”. Para ele os estudos arqueológicos evitam o historicismo puro e simples, que nega a criação inovadora, mas também o culto do modismo de última hora, que desconhece o lastro do presente dentro do passado.


Francisco Rüdiger é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1995) e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987). Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Seus estudos concentram-se no campo da crítica à indústria cultural e dos estudos sobre pensamento tecnológico e cibercultura. É autor, dentre outros, de As Teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores(Porto Alegre: Sulina, 2003, 2007, 2011) Cibercultura e pós-humanismo (Porto Alegre: Edipucrs, 2008) e As teorias da comunicação (Porto Alegre/São Paulo: Artmed/Penso, 1995, 2010).


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos definir a arqueologia da mídia? 
Francisco Rüdiger – Inspirando-se na metáfora da arqueologia do saber proposta no final dos anos 1960 por Foucault, alguns estudiosos contemporâneos têm se valido da expressão para dar conta, hoje, dos estudos que buscam as formas e inventos culturais originários, ou melhor, que subjazem ao que se entende por meios de comunicação desde o final da II Guerra Mundial. Siegfried Zielinski, Tom Standage , Erkki Huhtamo  e Jussi Parikka, esses dois últimos finlandeses, são alguns dos pesquisadores considerados referenciais em relação ao desenvolvimento desta linha de investigação. Também inspira esses autores o estudo inacabado de Walter Benjamin  sobre a Paris do século XIX, o qual ele pensou que pudesse valer como um estudo de pré-história da cultura e modo de vida instalados plenamente no século XX. Lá e cá, existe a preocupação em entender as relações entre técnica e cultura sem reducionismo e desde um ponto de vista genético, ainda que descontínuo.


IHU On-Line – De que maneira estudar o conceito pode contribuir para o melhor entendimento das “mídias mortas” e das atuais? 
Francisco Rüdiger – Os estudos de mídia costumam ser ofuscados pelo fetiche da novidade. O novo tem um valor intrínseco nesse meio profissional e intelectual. O resultado é uma cegueira para o fato de que um processo histórico precede e ajuda a entender o seu aparecimento, tanto quanto a dinâmica de seus fenômenos. Os estudos arqueológicos evitam o historicismo puro e simples, que nega a criação inovadora, mas também o culto do modismo de última hora, que desconhece o lastro do presente dentro do passado. A contribuição que nos fornecem está, em resumo, na lembrança do fato de que as formas técnicas e culturais, incluindo aí as da mídia, não costumam falecer, mas, uma vez criadas, são antes reelaboradas em novas circunstâncias, ainda que por vezes possam sofrer uma longa hibernação. O helicóptero foi desenhado por Leonardo da Vinci , para se tornar realidade no século XX. Serviços que hoje nos presta a internet são derivados de experimentos noticiosos com a telefonia no começo do século XX.


IHU On-Line – Podemos compreender a mídia como histórica, a partir do conceito de arqueologia da mídia?
Francisco Rüdiger – Sim, mas considerando que a perspectiva desta última abordagem não é necessariamente continuista. A pesquisa deve estabelecer os casos e os planos em que há continuidade no fenômeno de mídia em consideração, tanto os casos e planos em que se verificam rupturas ou, mesmo, perdas, abandonos, esquecimentos de um elemento histórico.


IHU On-Line – Com os estudos da arqueologia da mídia seria possível “desenterrar caminhos secretos na história”, como disse Zielinski? E isso poderia nos ajudar a encontrar nosso caminho para o futuro? Por quê?
Francisco Ricardo de Macedo Rüdiger – A conexão entre passado e presente, sempre que colocada em perspectiva, em vez de retrospectiva, é, em geral, um expediente assegurador de nossa boa consciência ou um esforço legitimador de nossos projetos – o que é problemático desde uma reflexão criticamente estruturada. O passado pode nos ensinar a seu próprio respeito e muito sobre as situações de onde viemos, mas não creio que possa nos dizer para onde vamos ou o que devemos fazer atualmente e/ou doravante. A contribuição que ele pode nos dar, nessa direção, é no sentido de aumentar nossa massa crítica e capacidade de reflexão sobre o que está ocorrendo e, eventualmente, sobre as bases dos planos de ação que pretendemos pôr em prática. Os “caminhos secretos da história” não são da história mesma, do processo histórico, mas do saber que, vasculhando seus materiais, seu legado, descobre planos, fatos e processos que podem nos ampliar não apenas o conhecimento do passado, mas o saber com que podemos intervir no contemporâneo. O processo histórico, embora se ancore em estruturas legadas pelo passado e que ele mesmo reproduz, é histórico, sobretudo porque é, também, criação.


IHU On-Line – A arqueologia da mídia é um conceito que pode ser tensionado com a pós-modernidade, especialmente por esta trazer a ideia de amnésia histórica?
Francisco Rüdiger – Levando em conta que o conceito de pós-modernidade é, em seu sentido mais forte e apropriado, um conceito de filosofia da história, fica difícil aceitar que ele, no plano reflexivo, onde se constitui, implique em amnésia histórica. Pelo contrário, vendo bem, constata-se que os pós-modernos e, às vezes, os pós-modernistas (os cultores do pós-moderno) são essencialmente historicistas. Claro que se trata de um historicismo renovado, distinto daquele que se impôs no começo da modernidade, com as filosofias da história de cunho progressista. O novo historicismo dos pós-modernos pode, inclusive, ser entendido como uma redução do saber ao ato de construir e relatar histórias (no plural). Nesse sentido, reflexivo, ele seria bem o oposto da amnésia que, por outro lado, verifica-se em meio ao cotidiano da pós-modernidade. O capitalismo pós-moderno, radicalizando o consumismo e passando a se apoiar em uma economia que faz da informação cada vez mais veloz, múltipla e renovada a fonte do valor, está na raiz da consciência privada de memória coletiva e, cada vez mais, individual, que encontramos em nosso tempo. Sem dúvida, há aí, portanto, mas falando genericamente, um antagonismo ou um tensionamento dialético entre os estudos de arqueologia da mídia e o mundo tal como esta mídia está ajudando a instituir cotidianamente.


IHU On-Line – Muitos acreditam que, com o advento da internet, surge uma revolução. Algo nunca antes vivido pela humanidade, com a participação dos usuários. Como a arqueologia da mídia se posiciona perante esta ideia?
Francisco Rüdiger – Embora a atitude crítica não seja cultivada pelos seus praticantes, os estudos de arqueologia da mídia, pela sua própria metodologia, estabelecem uma confrontação de seus resultados com o culto do novo que tanto marca a cultura da mídia e o avanço das tecnologias. Vendo retrospectivamente, verifica-se que toda mídia, da escrita à internet, surgiu em meio a opiniões contra e a seu favor, em meio a vozes que a saudavam ora como uma revolução benfazeja, ora como uma invenção perniciosa, mas sempre e em comum como algo singular, inédito. A perspectiva historicista, em geral, e os estudos arqueológicos, em particular, podem constituir um bom antídoto deste tipo de discurso, cuja proveniência pertence muito mais ao sistema ou às condições mais ou menos gerais que presidem ao surgimento de um meio de comunicação do que à reflexão interessada em seu entendimento. À atividade intelectual caberia ter claro quando é autônoma e quando não passa de um vetor interessado do que ocorre fora dela; quando é livre ou independente, e quando não é senão expressão de um sujeito social roteirizado, isto é, não passa de exercício de vassalagem a algum poder estabelecido. À criatividade que esta atividade sempre contém conviria que estivesse claro, como ideia reguladora ao menos, sua condição emancipada ou heterônoma.


IHU On-Line – Siegfried Zielinski afirmou em A arqueologia da mídia que “se quiser lazer audiovisual ou ler construções de som-imagem-texto, colocarei um disco no drive do CD-ROM quando ele ultrapassar a complexidade que um livro e um videoteipe me oferecem”. Como o senhor avalia essa afirmação?
Francisco Ricardo de Macedo Rüdiger – De Zielinski, conheço o trabalho citado, mais um ou outro ensaio, e não tenho sobre eles um conceito favorável, tanto do ponto de vista epistêmico quanto do ponto de vista intelectual mais abrangente. Lendo o autor, fica-se, ao menos como primeira impressão, com a ideia de um antiquarismo curioso que resgata materiais em si mesmo interessantes, mas que os explora como matéria morta devido à falta de reflexão histórica mais abrangente. O questionamento, nos seus textos, é ao mesmo tempo muito pobre e exaustivo; exaustivo, porque a análise envereda por uma micrologia do detalhe por demais cansativa; pobre, porque o discurso procede por blocos estanques, não explorando, por desinteresse epistêmico, as conexões dos fatos e problemas descobertos com os processos sociais em curso e os processos históricos de longa duração já conhecidos pelo saber disponível.


IHU On-Line – De que forma a pesquisa (an) arqueológica pode nos ajudar a compreender a arqueologia da mídia?
Francisco Rüdiger – Creio que o emprego da expressão arqueologia, no fenômeno em foco, é, sobretudo, metafórico e, portanto, o trabalho dos arqueólogos strictu sensu talvez tenha pouco a influir no seu desenvolvimento. Arqueologia da mídia seria, a meu ver, bem entendida como um método de estudo da história, em que as técnicas de comunicação são iluminadas pela cultura e o imaginário social de cada época, em que se pesquisam as conexões, mas também as rupturas, as continuidades e esquecimentos do processo em que os fenômenos de comunicação, seus meios sobretudo, se vão formando e entrelaçando com outros processos e estruturas coletivas. Aproximam-se bastante desse critério as análises sobre a eletricidade e a telegrafia propostas por Carolyn Marvin em When old technologies were new (1990).


IHU On-Line – Quais foram as contribuições de Foucault e Flusser para a construção do conceito?
Francisco Rüdiger – De Flusser parece provir uma preocupação com a materialidade dos meios, enfoque que ele adotou, aliás, de McLuhan . Flusser passou a ser cultuado no final da vida entre alguns pesquisadores europeus, como uma espécie de McLuhan com pedigree. Lendo seus textos sobre mídia e comunicação, porém, não se vislumbra muito além do que fora dito pelo pensador canadense. Excetuando seus textos sobre a fotografia e a arte digital, encontra-se nele muito pouco que justifique atenção maior do que a devida a tantos outros pesquisadores contemporâneos. Já Foucault elaborou uma sofisticada reflexão metodológica sobre o que chamou de arqueologia do saber. O problema é que essa, embora referida, não comparece como tal nos estudos dos arqueólogos da mídia, sendo inclusive uma referência muito mais fraca do que a que neles exerce a pesquisa sobre a pré-história da modernidade proposta e esboçada, em vários textos, por Walter Benjamin. Creio que uma reflexão crítica e epistemológica sobre a arqueologia da mídia, comparativamente, teria de passar muito mais por esta última referência do que pelos textos de Flusser ou Foucault.


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Francisco Rüdiger já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:
McLuhan, da filosofia pop ao ostracismoRevista IHU On-Line, edição 357, de 11-04-2011


http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4106&secao=375

UM FUTURO COMPLEXO, HÍBRIDO, INCERTO E HETEROGÊNEO

O sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos, reflete Erick Felinto de Oliveira
Por: Márcia Junges e Thamiris Magalhães

A arqueologia da mídia, segundo Erick Felinto de Oliveira, nasce do encontro do pós-estruturalismo francês com a contribuição alemã de certas formas de abordagem históricas e filosóficas. “Sua importância para os estudos de mídia, hoje, me parece que tem a ver com a necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente”, diz, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o pesquisador, o sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos. “Aliás, já afirmei algumas vezes que alguns pesquisadores das mídias digitais demonstram uma assustadora ignorância histórica, isolando o presente numa ‘cápsula temporal’ que nos impede de enxergar quadros culturais, políticos, econômicos ou tecnológicos mais amplos”. Erick Felinto de Oliveira é doutor em Literatura Comparada pela UERJ/UCLA e tem pós-doutorado em Comunicação pela Universität der Künste, Berlim. É pesquisador do CNPq e professor adjunto na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, instituição em que realiza pesquisas sobre cinema e cibercultura. É autor dos livros A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura (Porto Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (com Ivana Bentes. Porto Alegre: Sulina, 2010); e A imagem espectral: cinema e fantasmagoria tecnológica (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a definição mais adequada para o conceito arqueologia da mídia?
Erick Felinto de Oliveira – Este ano precisamente, graças aos esforços de meu amigo Jussi Parikka e de Erkki Huhtamo, foi publicada a primeira coletânea de ensaios dedicados a delinear as feições da assim chamada “arqueologia da mídia” (PARIKKA, J.; HUHTAMO, E. Media archaeology: approaches, applications and implications. Berkeley: University of California Press, 2011). Como os autores deixam claro na introdução da obra, não existe uma definição “normativa” da proposta da arqueologia da mídia, assim como tampouco existem métodos definidos de pesquisa. Aliás, um dos elementos que me parecem interessantes nesse paradigma de investigação é precisamente sua relativa indefinição (que lhe dá grande flexibilidade e abrangência). Isso não significa que não existam linhas de força ou feições capazes de caracterizá-la minimamente. A arqueologia da mídia é algo bastante novo (ainda que o termo em si já possua alguma história), e apenas agora começa a popularizar-se e conquistar um estatuto mais definido. Ela dialoga com certos aspectos importantes de abordagens características da teoria pós-moderna, como o materialismo cultural, as teorias de gênero, a análise do discurso, os estudos pós-coloniais, noções de temporalidade não linear etc. O que ela faz essencialmente é vasculhar os arquivos textuais, visuais e auditivos das mídias (de todas as mídias, analógicas ou digitais), enfatizando as manifestações discursivas e materiais da cultura. Pode-se dizer que ela tem traços e uma história de desenvolvimento com fortes acentos germânicos – ainda que esteja rapidamente se popularizando também em outros ambientes intelectuais. Isso porque muitos teóricos alemães da mídia, como Friedrich Kittler, Siegfried Zielinski e Wolfgang Ernst demonstram o mesmo interesse pelas abordagens históricas, pela relação com a obra de Foucault, pelo fascínio com as ideias de registro e arquivo, pelo foco na questão das ‘materialidades da comunicação’... Esses temas, essenciais à proposta da arqueologia da mídia, têm certo apelo cultural no universo germânico que seria muito difícil explicar em poucas linhas. Um aspecto importante da arqueologia da mídia é sua preocupação em efetuar uma leitura da história “a contrapelo” (para usar um termo de Walter Benjamin). Ou seja, uma história que rejeita as narrativas triunfalistas e dominantes da grande odisseia tecnológica em benefício de um foco em narrativas heterodoxas, direcionada a ‘coisas’ (objetos, ideias, tecnologias) que não ‘deram certo’ ou que representaram paradigmas minoritários. Além disso, os arqueólogos da mídia se inspiram na arqueologia dos saberes de Foucault, mas compensando, através dos estudos de mídia, seu baixo interesse pelos suportes materiais (meios e tecnologias) por meio dos quais os discursos dominantes de uma época são veiculados.

IHU On-Line – Qual é o contexto de seu surgimento e qual é sua importância para os estudos da mídia atualmente?
Erick Felinto de Oliveira – Eu já esbocei rapidamente o contexto de origem da arqueologia da mídia; mas eu complementaria isso dizendo que ela nasce do encontro do pós-estruturalismo francês com a contribuição alemã de certas formas de abordagem históricas e filosóficas (e aqui autores como Heidegger  e Benjamin são referências fundamentais). Sua importância para os estudos de mídia, hoje, me parece que tem a ver com a necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente. O sucesso do digital e dos temas da cibercultura trouxe como consequência certo esquecimento prejudicial do passado e uma incapacidade de se compreender melhor a gênese histórica dos fenômenos. Aliás, já afirmei algumas vezes que alguns pesquisadores das mídias digitais demonstram uma assustadora ignorância histórica, isolando o presente numa ‘cápsula temporal’ que nos impede de enxergar quadros culturais, políticos, econômicos ou tecnológicos mais amplos.

IHU On-Line – Em que aspectos a arqueologia da mídia pode ser um antídoto contra a amnésia histórica que caracteriza parte da pesquisa sobre os meios na atualidade?
Erick Felinto de Oliveira – Acho que a resposta a essa questão foi pelo menos esboçada nas formulações acima. O fato é que muitos autores hoje, mesmo sem usar o termo “arqueologia da mídia”, já começam a fazer uso de abordagens históricas e de uma atenção ao passado que os aproxima dessa proposta. É o caso de Lev Manovich, Lisa Gitelman e Oliver Grau, por exemplo. Manovich aborda o cinema digital através de sua aproximação a certas formas estéticas e tipos de experiência características dos momentos de origem da tecnologia no século XIX. Gitelman estuda as formas como os meios característicos de diferentes épocas são experimentados e estudados como sujeitos históricos.

IHU On-Line – Qual é o papel da arqueologia da mídia para compreender a era da memória total e do esquecimento contínuo?
Erick Felinto de Oliveira – A arqueologia da mídia se articula sobre duas questões que estão profundamente ligadas a esses dois polos: o tema dos arquivos (analógicos ou digitais) e da armazenagem e registro (os “sistemas de notação” de Kittler) e o das rápidas e descontínuas mutações culturais e tecnológicas, especialmente a partir da modernidade. Assim, estruturam-se, em certo sentido, em torno dessas duas – paradoxalmente contraditórias – tendências da nossa época. Além disso, como fica mais claro nas obras de Kittler e de Ernst, apresenta-nos um modelo de subjetividade não apenas bastante esvaziado de memória, mas também muito enfraquecido em todos os aspectos. Um conceito de subjetividade, diríamos, essencialmente “anti-humanista”, no qual o sujeito não é normalmente o senhor das tecnologias e dos discursos, mas seu assujeitado. Como diz Kittler, “os meios determinam nossa situação”. No contexto brasileiro, conquistou grande êxito o chavão de “determinismo tecnológico” para se criticar pensadores como McLuhan. Esse chavão seria aplicável, com muito mais justiça, a Kittler (em alguma medida, também a Bruno Latour). Mas, na perspectiva da teoria da mídia alemã ou da arqueologia da mídia, ele na verdade não faz sentido algum, pois a arqueologia da mídia parte do princípio de que os meios e materialidades comunicacionais estabelecem as condições de produção dos discursos e saberes sociais. Seguindo a pista de Foucault, Kittler afirma que o “assim chamado homem” (Der sogennate Mensch) teve data de nascimento recente e já vivencia desde agora seus últimos estertores. Para muitos, isso parecerá pessimista ou apocalíptico. Prefiro não entrar nessas discussões aqui, pois não vejo muito sentido nelas.

IHU On-Line – Qual é a atualidade da ideia de ressentimento nietzschiano, se pensarmos no excesso de memória e no paradoxo do esquecimento a que estamos submetidos?
Erick Felinto de Oliveira – Ela parte de uma concepção de história absolutamente não evolucionista, não linear, e estuda as rupturas, os choques, as “catástrofes”. É uma história de descontinuidades – mais uma vez inspirada em Foucault – que a história dos meios ilustra belamente. Basta pensar como determinadas tecnologias se anunciaram de forma triunfal para depois rapidamente caírem no esquecimento e serem substituídas por outros paradigmas. O livro de Zielisnki, O tempo profundo da mídia, oferece interessantes estudos de caso. Ele retorna a certos momentos históricos que para nossas historiografias da mídia mais tradicionais são quase inexistentes (como a Grécia antiga e o período barroco). A partir daí, estuda invenções ou ideias que possuíam grande potencial, mas nunca chegaram a fazer parte do mainstream. São esses momentos de irrupção de forças heteronômicas, inclusive, que permitirão a Zielinski falar depois em uma “variantologia da mídia” – uma disciplina que estudaria as variações, as rupturas, as possibilidades não realizadas que a história triunfalista da tecnologia insistentemente recusou.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios que as novas tecnologias digitais irão trazer para a mídia nos próximos anos?
Erick Felinto de Oliveira – Esse é o tipo de pergunta que pode facilmente descambar para uma retórica futurologista típica, por exemplo, dos discursos marqueteiros sobre as novas tecnologias. Não quero fazer exercícios de futurologia, ainda que a arqueologia da mídia (e alguns de seus grandes precursores, como McLuhan ou Flusser) tenha ocasionalmente se envolvido com isso – e muitas vezes com bastante êxito. O fato é que uma resposta séria para esse tipo de pergunta só cabe no espaço de livros ou ensaios. No contexto de uma entrevista como essa, acho que seria irresponsável oferecer qualquer resposta exaustiva. Aqui, eu só arrisco dizer que as mídias digitais potencializaram enormemente algumas características que já apareciam em germe em paradigmas tecnológicos anteriores. Para a academia, para as ciências da comunicação, acho que um dos desafios será aprender que o futuro, definitivamente, não é um cenário de disciplinas recortadas e conceitos lindamente definidos. O futuro será cada vez mais complexo, híbrido, incerto e heterogêneo.

IHU On-Line – Mais do que uma plataforma tecnológica, a internet representa uma nova possibilidade de “ser”, de existência. Pensando nessa ambiência, como percebe a passagem cultural da existência humana física para o âmbito da existência na internet, virtual?
Erick Felinto de Oliveira – Não sei se a internet representa uma “nova possibilidade de ser”. Esse tipo de formulação me soa metafísico (ou místico) demais. A arqueologia da mídia fala em rupturas e descontinuidades. Mas isso para mostrar que essa descontinuidade não é um privilégio do momento presente ou uma grande conquista do digital. O que combato, inclusive ao usar as ferramentas da arqueologia da mídia, é precisamente a ideia de que o digital represente uma revolução, uma novidade radical, uma desvinculação com toda a história passada que a precedeu. Não sou grande fã de Pierre Lévy  (um autor que aqui no Brasil conquistou bastante popularidade), pois acho a ingenuidade de suas especulações perigosa. Não tenho nada contra as utopias; eu as considero importantes e é saudável ocasionalmente imaginar futuros luminosos. Mas um imaginário sem rédeas é também uma abertura para a apatia e a ausência de crítica. Como disse Hans Blumenberg , “na ausência da história repousa toda oportunidade de remitologização”. Por isso acho meio ridícula a posição de pesquisadores que se recusam a ler autores críticos (a Escola de Frankfurt, por exemplo) para darem uma de “moderninhos” ou liberais. Quanto menos eu gosto do Lévy, mais eu o leio, inclusive para enxergar o que me parecem ser alguns equívocos do discurso triunfalista. Quanto mais me perturbam os elitismos de um Adorno , mais eu busco compreender de onde eles vêm. A internet acarretou certamente um importante conjunto de transformações sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo, também favoreceu formas e experiências de extremo conservadorismo. Por enquanto não a enxergo como “nova possibilidade de ser”, mas simplesmente como um locus – que é de ordem tanto material como imaterial – dotado de múltiplos “espaços” de ocupação à nossa disposição. Se é verdade que em certas ocasiões a minha experiência de navegar me faz experimentar impressões de descorporificação, por outro lado, devo estar sempre atento às circunstâncias materiais, políticas, econômicas e culturais de meu acesso à rede. O que eu sou é determinado por um conjunto de forças materiais (tecnologias) e imateriais (discursos) que me atravessam. A internet é apenas uma delas.

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>> Veja o que mais a IHU On-Line já publicou de Erick Felinto:
A era da memória total e do esquecimento contínuo. Entrevista publicada na IHU On-Line número 368, de 04-07-2011
Inovação, não saudosismo: o desafio dos estudos sobre comunicação e mídia. Artigo publicado nas Notícias do Diado sítio do IHU em 16-06-2011 

SER OFFLINE E EXISTIR ONLINE

Não devemos nos interessar pela história como coleção de fatos dados. “Se eu desejo ter um futuro cheio de possibilidades em aberto, também tenho de respeitar o passado como uma ampla gama de possibilidades”, frisa Siegfried Zielinski
Por: Márcia Junges e Thamiris Magalhães / Tradutor: Luís Marcos Sander


“Não aceitamos a ideia de que a mídia tenha sido inventada no século XIX com o advento da fotografia, telefonia e cinematografia, ou seja, que a mídia seja resultado da industrialização”. É assim que o professor Siegfried Zielinskidefine a arqueologia da mídia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o autor de A arqueologia da mídia, os meios de comunicação têm uma história muito mais longa, que remonta às chamadas altas culturas dos períodos bizantino, chinês, indiano, sul-americano ou helenístico. “Para investigar isso, adaptei o termo ‘tempo profundo’ da paleontologia. Além disso, se usamos a variedade/diversidade como o critério decisivo para o que chamamos de progresso na civilização humana, períodos anteriores poderiam ter sido mais progressistas do que nossas culturas atuais. Estas últimas são altamente estandardizadas, seguem padrões e gramáticas, protocolos e regras cujo efeito é mundial”, diz. O pesquisador frisa ainda que “não faria esses esforços (an) arqueológicos se não estivesse convencido de que podemos salvar ao menos partes das variedades e diversidades do passado para os tempos futuros”. A pesquisa (an) arqueológica, para ele, é, de fato, uma espécie de máquina do tempo. “Se a fazemos com engajamento e em alto nível, ela pode nos ajudar a gerar o futuro. Mas essa intenção exige um respeito específico pelo passado”.


Siegfried Zielinski é um teórico da mídia alemão. Aborda principalmente os temas de Teoria da Mídia, Arqueologia e Variantologia da Mídia na Universidade de Berlim. É autor de A arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas de ver e do ouvir (São Paulo: Annablume, 2006).


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o grande projeto que norteia a arqueologia da mídia
Siegfried Zielinski – “Projeto” é um bom termo. Vilém Flusser , cujo espólio está guardado na Universidade das Artes de Berlim, também gostava muito dele. Para ele, “projeto” era o conceito contrário ao do sujeito clássico da modernidade. Projetar o mundo significa criá-lo novo ou ao menos diferente, “projetá-lo” na acepção direta [arquitetônica] do termo. A arqueologia da mídia, de acordo com minha compreensão, significa ao menos duas coisas: não aceitamos a ideia de que a mídia tenha sido inventada no século IXX com o advento da fotografia, telefonia e cinematografia, ou seja, que a mídia seja resultado da industrialização. Os meios de comunicação têm uma história muito mais longa, que remonta às chamadas altas culturas dos períodos bizantino, chinês, indiano, sul-americano ou helenístico. Para investigar isso, adaptei o termo “tempo profundo” da paleontologia. Além disso, se usamos a variedade/diversidade como o critério decisivo para o que chamamos de progresso na civilização humana, períodos anteriores poderiam ter sido mais progressistas do que nossas culturas atuais. Estas últimas são altamente estandardizadas, seguem padrões e gramáticas, protocolos e regras cujo efeito é mundial.


IHU On-Line – Qual é a influência de Flusser e Foucault na construção desse conceito?
Siegfried Zielinski – Quando Flusser argumentava historicamente, ele não se referia a uma arqueologia do conhecimento ou da cultura em sentido mais amplo; ele argumentava principalmente em termos antropológicos. Seu modelo para o desenvolvimento da civilização humana era bastante linear: inicia com a experiência do mundo quadridimensional em que vivemos (ele gostava de usar o termo Lebenswelt [mundo da vida], cunhado por Husserl para essa finalidade), passa ao mundo tridimensional da escultura e arquitetura, às duas dimensões da imagem, ao texto unidimensional para a crítica e historiografia e chega à dimensão zero da abstração completa (número, algoritmo). Às vezes eu faço referência a esse modelo, especialmente se quero enfatizar que essa última dimensão (zero) não é a dimensão final. Flusser o conceitualizou como uma passagem possível ao futuro, como um projeto para construir ou interpretar o mundo de um modo diferente, uma passagem da abstração para a concretização. Em termos teóricos e metodológicos, Foucault  é mais importante para uma arqueologia da mídia, especialmente para minha própria abordagem. O conceito desse filósofo francês da história está estreitamente ligado à ideia de genealogia de Friedrich Nietzsche . Giorgio Agamben  – lecionamos juntos na Escola Europeia de Pós-Graduação em Saas Fee, na Suíça – também faz referência a isso em suas interpretações herméticas de elementos filosóficos e culturais. Como genealogistas, nós não perguntamos e buscamos a origem de um fenômeno, porque isto implica o conhecimento de uma dada verdade. A genealogia não volta ao passado para erigir uma grande continuidade para além do desvio do esquecimento, como disse Foucault. Nós perguntamos a respeito de derivações, desdobramentos (Herkünfte, Entwicklungen), movimentos labirínticos, ruas sem saída, interrupções de processos. Nossa imaginação da história não tem nada em comum com uma progressão linear, em que nós seríamos os mais avançados representantes. Os genealogistas não sabem exatamente de onde nós e as coisas estamos vindo e para onde nós e as coisas estamos indo. Sem origem, sem alvo – algo difícil de conceber, mas que dá à pessoa uma liberdade enorme para mover-se intelectualmente. E não exclui necessariamente o pressuposto de algo muito maior do que nós.


IHU On-Line – Essa arqueologia poderia ser considerada uma “anarqueologia da mídia”? Por quê?
Siegfried Zielinski – Eu inventei o neologismo “anarqueologia” como uma possível alternativa às narrativas estabelecidas na historiografia e como alternativa crítica ao pensamento de Foucault. O conceito de anarqueologia modifica Foucault num aspecto muito essencial: a linearidade de suas construções ou interpretações da história. Propor um aumento constante do poder (ou um declínio da humanidade até seu nível mais profundo, o fascismo alemão) é basicamente uma interpretação linear. A sutileza crescente das estruturas de poder até chegar ao nível micro da biopolítica ou governamentalidade é uma construção linear. Etimologicamente, archos implica não apenas a busca da origem, mas também liderança. No vocábulo grego archein está presente o termo governar/dirigir. Talvez eu saia da armadilha simplesmente construindo o nomen agentis. Com o conceito paradoxo de anarqueologia, podem-se construir genealogias não lineares, dinâmicas, às vezes nervosas. Essa pesquisa que atravessa as camadas do passado é um experimento e uma aventura permanentes.


IHU On-Line – Por que a arqueologia da mídia é uma filosofia de vida? E, como filosofia de vida, que valores prega?
Siegfried Zielinski – Não tenho certeza de qual é sua referência quando você diz “filosofia de vida”. Talvez você se refira a uma atitude específica para com a vida, a uma ética de pensamento e trabalho científico. Neste caso, respondo com um claro “sim”. A abordagem (an) arqueológica, o conceito paleontológico, deveria nos ajudar a relativizar nossa posição na história; deveria nos ajudar a não ficar arrogantes em relação ao passado – ou, especialmente na Europa, em relação às culturas do tempo profundo de outros continentes e regiões. O Norte foi desenvolvido pelo Sul e através do poder do Sul, e não inversamente. A Alemanha, Itália, Inglaterra, França, Espanha, Holanda e mais tarde os EUA se tornaram os países em desenvolvimento das culturas do tempo profundo do Egito, da Índia, da Mesoamérica e da Mesopotâmia, das avançadas civilizações bizantina, helenística e mais tarde romana, judaica e islâmica. Está na hora de fundar – ao menos em nível imaginário – um “Instituto das Modernidades do Sul”. Deveríamos tentar inverter a situação mais uma vez. No ano passado, um grupo pequeno e aberto de jovens pesquisadores da Colômbia, reunido em torno de Andrés Burbano, fundou um grupo de pesquisa chamado “Variantologia Latina”. Eu não faria esses esforços (an) arqueológicos se não estivesse convencido de que podemos salvar ao menos partes das variedades e diversidades do passado para os tempos futuros. A pesquisa (an) arqueológica é, de fato, uma espécie de máquina do tempo. Se a fazemos com engajamento e em alto nível, ela pode nos ajudar a gerar o futuro. Mas essa intenção exige um respeito específico pelo passado. Não estamos interessados na história como coleção de fatos dados. Se eu desejo ter um futuro cheio de possibilidades em aberto, também tenho de respeitar o passado como uma ampla gama de possibilidades. Primordialmente, não estou interessado no passado como algo que foi definitivamente, mas como algo que poderia ter sido diferente.


IHU On-Line – Em que aspectos a arqueologia da mídia pode ser um antídoto contra a amnésia histórica que caracteriza parte da pesquisa sobre os meios na atualidade?
Siegfried Zielinski – No amplo campo da mídia, consigo observar um interesse bastante forte pela pesquisa histórica. Arqueologias do computador, de artefatos algorítmicos, da mídia digital, das novas artes midiáticas e outras são geradas em muitos lugares do mundo. A questão é mais como essa pesquisa é feita em termos metodológicos, teóricos. A maior parte dela não tem qualquer marco teórico. A maioria simplesmente serve a ideias de progresso histórico na tradição da modernidade europeia; a maior parte está em busca de predecessores (Vorgänger) do agora muito avançado, é demasiado nacionalista ou regional ou muito limitada em relação ao período de tempo que é investigado. Com nossos esforços (an) arqueológicos estamos tentando cumprir ao menos três critérios: deveríamos pensar em termos mundiais, e não eurocêntricos; pensar em termos cósmicos, e não antropocêntricos e construir ou interpretar nossas histórias de modo dinâmico ou multilinear, e não monolinear. Aliás, foi um intelectual nascido no México, Manoel de Landa, que nos ensinou algumas boas lições para compreender essas histórias.

IHU On-Line – Como podemos compreender que, se há algo de novo no século XX, certamente é a redescoberta da subjetividade mediada pelas tecnologias da comunicação? Como se caracteriza essa subjetividade mediada pelas tecnologias da comunicação?
Siegfried Zielinski – Não tenho certeza de que entendo sua pergunta corretamente. Sou extremamente cuidadoso com termos/noções como subjetividade. Por um lado, eles são muito fortes filosoficamente e, por outro, foram completamente esvaziados. O mesmo se aplica ao termo comunidade, communitas ou societas. No mesmo ano em que Derrida  publicou sua Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973) e Foucault se tornou uma atração intelectual em Paris por sua obra A ordem das coisas, Guy Debord  observou o seguinte em seu texto Sociedade do espetáculo: a telecomunicação conecta, mas só pode conectar o que já está separado. A tecnologia da comunicação aprendeu a compensar cada vez melhor as rupturas, os divórcios e choques do real e dentro do real. Temos de ser muito cuidadosos em relação a esse desenvolvimento. Na Alemanha, acabo de concluir um breve livro intitulado Após a mídia. Ele termina com um manifesto, um apelo em favor de uma esquizofrenia normal: “ser offline e existir online”. O passado nos ensina que não deveríamos nos basear completamente em realidades mediadas. Deus pode ser, mas não pode simplesmente existir. O ser humano existe, mas sempre deveria tentar ser. Este é um grande desafio. Deveríamos evitar uma psychopathia medialis.

IHU On-Line – Em que medida o trabalho missionário dos jesuítas se configurou no prenúncio de uma comunicação de redes?
Siegfried Zielinski – Em minha opinião, ele foi uma forma de comunicação de redes, mas com uma forte noção de discursividade. O diálogo com outras culturas do mundo organizado pelos jesuítas no início da modernidade europeia estava estruturado em torno de um centro de conhecimento. “Conhecimento é poder”, afirmou Francis Bacon  no início do século XVII. Esse centro estava localizado em Roma, no Vaticano. Athanasius Kircher foi um de seus mais iridescentes representantes no Colégio Romano. Assim, pode-se dizer que a forma de comunicação jesuíta no início da era moderna era um paradoxo: dentro de uma estrutura dialógica, ela seguia intenções discursivas. A distinção entre mídia dialógica e discursiva é uma das ideias altamente originais desenvolvidas por Vilém Flusser.

IHU On-Line – Nesse sentido, qual é o seu ponto de vista sobre o conceito de noosfera, de Teilhard de Chardin?
Siegfried Zielinski – Tenho grande respeito por pensadores heréticos. Teilhard de Chardin  é um deles. Mas sou muito cético em relação a seus fortes conceitos de unificação. A “noosfera” como âmbito planetário homogêneo de pensamento científico é uma dessas estratégias de unificação. E, naturalmente, ela foi adaptada fortemente pelas pessoas que sonham com uma “inteligência conectada” ou “coletiva” gerada através da internet e de seu enorme poder homogeneizante. A realidade de protocolos e estruturas dominantes de conhecimento gerados através da comunicação pela internet está em oposição à esfera harmoniosa do ciberespaço. Salvem as melhores ideias de Teilhard de Chardin sem compartilhar de seu romantismo!

IHU On-Line – Quais são seus trabalhos mais recentes?
Siegfried Zielinski – Nos últimos sete anos, expandimos nossa pesquisa (an) arqueológica de uma forma específica. Chamo isso de variantologia. Em dimensões de tempo profundo, estamos buscando as inter-relações entre as artes, ciências e tecnologias em diferentes culturas e partes do mundo. Esse projeto também nos ajuda a pensar o conceito de mídia de uma maneira mais generosa e não estratégica. Em julho deste ano foi publicado Variantology V, o quinto volume de nossa série de livros. Incluindo os outros quatro volumes, já publicamos 2.500 páginas de pesquisa variantológica. E, é claro, esperamos ter contribuído para o projeto mais amplo de uma prática e teoria antes e depois da mídia.


domingo, 2 de outubro de 2011

A MÁGOA

Numa noite de calor intenso, uma palavra me incomoda: mágoa. O que significa? De onde ela vem? Sem querer, tenho a pior das respostas: dos amigos. Isso é tão verdadeiro que chega a ser interessante. De uma hora a outra, ela acontece e o silêncio se instala. Duas pessoas não mais se compreendem, elas se testam, porque foi feita uma marca na pele: a mágoa. É difícil superar, esquecer ou deixar pra lá. Mente quem diz ao contrário. Mágoa é ácido conta-gotas no corpo. E quando encontra superfície frágil, insegura ou confusa faz uma ferida muito dolorida. Nada mais cresce neste terreno, a não ser a tristeza e a desconfiança. Mas será mágoa mesmo? Fico pensando nisso... Uma amiga uma vez disse: ‘se é tão fácil descartar ou colocar um amigo em xeque, será mesmo amizade?’ Sei que há pessoas que entram e saem em diagonal de nossos caminhos e, talvez, corações, mas numa relação é inadmissível o destempero? Eu não sei... Eu receio que não saibamos ao certo o que seja mágoa e a tenhamos como desculpa mágica para saltar fora das vidas das pessoas por pura covardia. Às vezes, quando penso em seres humanos, em geral, penso isso: tudo é interesse. E isso não é de todo ruim. A engrenagem das nossas relações tem que ter um ponto de interesse, mas de que tipo? Aqui mora a ética. De que tipo? Se a mágoa for conselheira impiedosa, então o interesse é em TER e, segundo observo, seus efeitos serão imprevisíveis. Perde-se uma grande oportunidade de SER uma ‘pessoa melhor’, aquele que ampara o envenenamento da alma sem entender seu sentido ou mesmo de onde vem. Mesmo com a presença do ressentimento (uma pré-mágoa), um amigo é sempre um amigo. Será que o problema é a mágoa ou o uso aleatório da palavra ‘amigo’? Não sei... A expectativa de uma vida cor de rosa aqui (na amizade) também é uma ilusão. Ninguém é de ninguém mesmo! E é o revés que pode fazer com que entendamos melhor quem temos por perto. Difícil isso, eu sei. Mas de que outra forma pensar? Mágoa é um jeito de não se ver exposto em seus defeitos por aquele que mais nos conhece. Mágoa é a defesa àqueles que não querem enfrentar seus deslizes ou erros mesmo. Mágoa instala o desejo de ficar longe sem os socorros da palavra amiga ou de otimismo, por opção. Sem domínio das próprias emoções, abrimos a guarda para o rancor, a impiedade e, por vezes, para a vingança. Pode isso entre amigos? Nada sobra. Nenhuma lembrança estanca esse veneno. No chão do meu quarto, estou pensando em pessoas maravilhosas perdidas por causa da mágoa, do desentendimento e da tristeza. Não há retorno, mas também não há esquecimento. Eu não sei esquecer... Não consigo descartá-las do meu crescimento pessoal. Importantes, animadas, fortes, inteligentes, todas inauguraram em mim outros jeitos de pensar, agir, me emocionar e sorrir. Todas superimportantes mesmo, mas que a mágoa, tal qual as moiras fazem, cortou o elã dos dias felizes. Estou com saudades por isso sei que não esqueço. Não interessa de onde vem as culpas, aliás esta é outra palavra incompreensível. Interessa para onde vão suas ações (dos amigos) em minha vida e eu adoro tudo isso! No chão do meu quarto, depois de uma semana tranqüila, mas com as emoções confusas, procuro o espaço das mágoas e as varro incondicionalmente. Não acumulo e nem coleciono lixos mentais. Não tenho tempo e nem jeito para tristeza. Sou alojamento de dúvidas, alegrias, desejos e informação. Estou no mundo num passeio louco de cores vibrantes e sons eletrizantes que não me deixam esmorecer diante das dores ou incompreensões. Se é para mergulhar, quero mergulhar num mar de lembranças e saudades que se mantenham aprendendo a SER eu. As pessoas e as situações serão sempre elementos desse trajeto e grandes oportunidades de superar sombras repentinas, mesmo dentro da minha saudade. Agora durmo sorrindo. Saudade boa não dói mesmo!

Ms Profa Claudia Nunes

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...