Por: Márcia Junges e Thamiris Magalhães / Tradutor: Luís Marcos Sander
“Não aceitamos a ideia de que a mídia tenha sido inventada no século XIX com o advento da fotografia, telefonia e cinematografia, ou seja, que a mídia seja resultado da industrialização”. É assim que o professor Siegfried Zielinskidefine a arqueologia da mídia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o autor de A arqueologia da mídia, os meios de comunicação têm uma história muito mais longa, que remonta às chamadas altas culturas dos períodos bizantino, chinês, indiano, sul-americano ou helenístico. “Para investigar isso, adaptei o termo ‘tempo profundo’ da paleontologia. Além disso, se usamos a variedade/diversidade como o critério decisivo para o que chamamos de progresso na civilização humana, períodos anteriores poderiam ter sido mais progressistas do que nossas culturas atuais. Estas últimas são altamente estandardizadas, seguem padrões e gramáticas, protocolos e regras cujo efeito é mundial”, diz. O pesquisador frisa ainda que “não faria esses esforços (an) arqueológicos se não estivesse convencido de que podemos salvar ao menos partes das variedades e diversidades do passado para os tempos futuros”. A pesquisa (an) arqueológica, para ele, é, de fato, uma espécie de máquina do tempo. “Se a fazemos com engajamento e em alto nível, ela pode nos ajudar a gerar o futuro. Mas essa intenção exige um respeito específico pelo passado”.
Siegfried Zielinski é um teórico da mídia alemão. Aborda principalmente os temas de Teoria da Mídia, Arqueologia e Variantologia da Mídia na Universidade de Berlim. É autor de A arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas de ver e do ouvir (São Paulo: Annablume, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o grande projeto que norteia a arqueologia da mídia
Siegfried Zielinski – “Projeto” é um bom termo. Vilém Flusser , cujo espólio está guardado na Universidade das Artes de Berlim, também gostava muito dele. Para ele, “projeto” era o conceito contrário ao do sujeito clássico da modernidade. Projetar o mundo significa criá-lo novo ou ao menos diferente, “projetá-lo” na acepção direta [arquitetônica] do termo. A arqueologia da mídia, de acordo com minha compreensão, significa ao menos duas coisas: não aceitamos a ideia de que a mídia tenha sido inventada no século IXX com o advento da fotografia, telefonia e cinematografia, ou seja, que a mídia seja resultado da industrialização. Os meios de comunicação têm uma história muito mais longa, que remonta às chamadas altas culturas dos períodos bizantino, chinês, indiano, sul-americano ou helenístico. Para investigar isso, adaptei o termo “tempo profundo” da paleontologia. Além disso, se usamos a variedade/diversidade como o critério decisivo para o que chamamos de progresso na civilização humana, períodos anteriores poderiam ter sido mais progressistas do que nossas culturas atuais. Estas últimas são altamente estandardizadas, seguem padrões e gramáticas, protocolos e regras cujo efeito é mundial.
IHU On-Line – Qual é a influência de Flusser e Foucault na construção desse conceito?
Siegfried Zielinski – Quando Flusser argumentava historicamente, ele não se referia a uma arqueologia do conhecimento ou da cultura em sentido mais amplo; ele argumentava principalmente em termos antropológicos. Seu modelo para o desenvolvimento da civilização humana era bastante linear: inicia com a experiência do mundo quadridimensional em que vivemos (ele gostava de usar o termo Lebenswelt [mundo da vida], cunhado por Husserl para essa finalidade), passa ao mundo tridimensional da escultura e arquitetura, às duas dimensões da imagem, ao texto unidimensional para a crítica e historiografia e chega à dimensão zero da abstração completa (número, algoritmo). Às vezes eu faço referência a esse modelo, especialmente se quero enfatizar que essa última dimensão (zero) não é a dimensão final. Flusser o conceitualizou como uma passagem possível ao futuro, como um projeto para construir ou interpretar o mundo de um modo diferente, uma passagem da abstração para a concretização. Em termos teóricos e metodológicos, Foucault é mais importante para uma arqueologia da mídia, especialmente para minha própria abordagem. O conceito desse filósofo francês da história está estreitamente ligado à ideia de genealogia de Friedrich Nietzsche . Giorgio Agamben – lecionamos juntos na Escola Europeia de Pós-Graduação em Saas Fee, na Suíça – também faz referência a isso em suas interpretações herméticas de elementos filosóficos e culturais. Como genealogistas, nós não perguntamos e buscamos a origem de um fenômeno, porque isto implica o conhecimento de uma dada verdade. A genealogia não volta ao passado para erigir uma grande continuidade para além do desvio do esquecimento, como disse Foucault. Nós perguntamos a respeito de derivações, desdobramentos (Herkünfte, Entwicklungen), movimentos labirínticos, ruas sem saída, interrupções de processos. Nossa imaginação da história não tem nada em comum com uma progressão linear, em que nós seríamos os mais avançados representantes. Os genealogistas não sabem exatamente de onde nós e as coisas estamos vindo e para onde nós e as coisas estamos indo. Sem origem, sem alvo – algo difícil de conceber, mas que dá à pessoa uma liberdade enorme para mover-se intelectualmente. E não exclui necessariamente o pressuposto de algo muito maior do que nós.
IHU On-Line – Essa arqueologia poderia ser considerada uma “anarqueologia da mídia”? Por quê?
Siegfried Zielinski – Eu inventei o neologismo “anarqueologia” como uma possível alternativa às narrativas estabelecidas na historiografia e como alternativa crítica ao pensamento de Foucault. O conceito de anarqueologia modifica Foucault num aspecto muito essencial: a linearidade de suas construções ou interpretações da história. Propor um aumento constante do poder (ou um declínio da humanidade até seu nível mais profundo, o fascismo alemão) é basicamente uma interpretação linear. A sutileza crescente das estruturas de poder até chegar ao nível micro da biopolítica ou governamentalidade é uma construção linear. Etimologicamente, archos implica não apenas a busca da origem, mas também liderança. No vocábulo grego archein está presente o termo governar/dirigir. Talvez eu saia da armadilha simplesmente construindo o nomen agentis. Com o conceito paradoxo de anarqueologia, podem-se construir genealogias não lineares, dinâmicas, às vezes nervosas. Essa pesquisa que atravessa as camadas do passado é um experimento e uma aventura permanentes.
IHU On-Line – Por que a arqueologia da mídia é uma filosofia de vida? E, como filosofia de vida, que valores prega?
Siegfried Zielinski – Não tenho certeza de qual é sua referência quando você diz “filosofia de vida”. Talvez você se refira a uma atitude específica para com a vida, a uma ética de pensamento e trabalho científico. Neste caso, respondo com um claro “sim”. A abordagem (an) arqueológica, o conceito paleontológico, deveria nos ajudar a relativizar nossa posição na história; deveria nos ajudar a não ficar arrogantes em relação ao passado – ou, especialmente na Europa, em relação às culturas do tempo profundo de outros continentes e regiões. O Norte foi desenvolvido pelo Sul e através do poder do Sul, e não inversamente. A Alemanha, Itália, Inglaterra, França, Espanha, Holanda e mais tarde os EUA se tornaram os países em desenvolvimento das culturas do tempo profundo do Egito, da Índia, da Mesoamérica e da Mesopotâmia, das avançadas civilizações bizantina, helenística e mais tarde romana, judaica e islâmica. Está na hora de fundar – ao menos em nível imaginário – um “Instituto das Modernidades do Sul”. Deveríamos tentar inverter a situação mais uma vez. No ano passado, um grupo pequeno e aberto de jovens pesquisadores da Colômbia, reunido em torno de Andrés Burbano, fundou um grupo de pesquisa chamado “Variantologia Latina”. Eu não faria esses esforços (an) arqueológicos se não estivesse convencido de que podemos salvar ao menos partes das variedades e diversidades do passado para os tempos futuros. A pesquisa (an) arqueológica é, de fato, uma espécie de máquina do tempo. Se a fazemos com engajamento e em alto nível, ela pode nos ajudar a gerar o futuro. Mas essa intenção exige um respeito específico pelo passado. Não estamos interessados na história como coleção de fatos dados. Se eu desejo ter um futuro cheio de possibilidades em aberto, também tenho de respeitar o passado como uma ampla gama de possibilidades. Primordialmente, não estou interessado no passado como algo que foi definitivamente, mas como algo que poderia ter sido diferente.
IHU On-Line – Em que aspectos a arqueologia da mídia pode ser um antídoto contra a amnésia histórica que caracteriza parte da pesquisa sobre os meios na atualidade?
Siegfried Zielinski – No amplo campo da mídia, consigo observar um interesse bastante forte pela pesquisa histórica. Arqueologias do computador, de artefatos algorítmicos, da mídia digital, das novas artes midiáticas e outras são geradas em muitos lugares do mundo. A questão é mais como essa pesquisa é feita em termos metodológicos, teóricos. A maior parte dela não tem qualquer marco teórico. A maioria simplesmente serve a ideias de progresso histórico na tradição da modernidade europeia; a maior parte está em busca de predecessores (Vorgänger) do agora muito avançado, é demasiado nacionalista ou regional ou muito limitada em relação ao período de tempo que é investigado. Com nossos esforços (an) arqueológicos estamos tentando cumprir ao menos três critérios: deveríamos pensar em termos mundiais, e não eurocêntricos; pensar em termos cósmicos, e não antropocêntricos e construir ou interpretar nossas histórias de modo dinâmico ou multilinear, e não monolinear. Aliás, foi um intelectual nascido no México, Manoel de Landa, que nos ensinou algumas boas lições para compreender essas histórias.
IHU On-Line – Como podemos compreender que, se há algo de novo no século XX, certamente é a redescoberta da subjetividade mediada pelas tecnologias da comunicação? Como se caracteriza essa subjetividade mediada pelas tecnologias da comunicação?
Siegfried Zielinski – Não tenho certeza de que entendo sua pergunta corretamente. Sou extremamente cuidadoso com termos/noções como subjetividade. Por um lado, eles são muito fortes filosoficamente e, por outro, foram completamente esvaziados. O mesmo se aplica ao termo comunidade, communitas ou societas. No mesmo ano em que Derrida publicou sua Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973) e Foucault se tornou uma atração intelectual em Paris por sua obra A ordem das coisas, Guy Debord observou o seguinte em seu texto Sociedade do espetáculo: a telecomunicação conecta, mas só pode conectar o que já está separado. A tecnologia da comunicação aprendeu a compensar cada vez melhor as rupturas, os divórcios e choques do real e dentro do real. Temos de ser muito cuidadosos em relação a esse desenvolvimento. Na Alemanha, acabo de concluir um breve livro intitulado Após a mídia. Ele termina com um manifesto, um apelo em favor de uma esquizofrenia normal: “ser offline e existir online”. O passado nos ensina que não deveríamos nos basear completamente em realidades mediadas. Deus pode ser, mas não pode simplesmente existir. O ser humano existe, mas sempre deveria tentar ser. Este é um grande desafio. Deveríamos evitar uma psychopathia medialis.
IHU On-Line – Em que medida o trabalho missionário dos jesuítas se configurou no prenúncio de uma comunicação de redes?
Siegfried Zielinski – Em minha opinião, ele foi uma forma de comunicação de redes, mas com uma forte noção de discursividade. O diálogo com outras culturas do mundo organizado pelos jesuítas no início da modernidade europeia estava estruturado em torno de um centro de conhecimento. “Conhecimento é poder”, afirmou Francis Bacon no início do século XVII. Esse centro estava localizado em Roma, no Vaticano. Athanasius Kircher foi um de seus mais iridescentes representantes no Colégio Romano. Assim, pode-se dizer que a forma de comunicação jesuíta no início da era moderna era um paradoxo: dentro de uma estrutura dialógica, ela seguia intenções discursivas. A distinção entre mídia dialógica e discursiva é uma das ideias altamente originais desenvolvidas por Vilém Flusser.
IHU On-Line – Nesse sentido, qual é o seu ponto de vista sobre o conceito de noosfera, de Teilhard de Chardin?
Siegfried Zielinski – Tenho grande respeito por pensadores heréticos. Teilhard de Chardin é um deles. Mas sou muito cético em relação a seus fortes conceitos de unificação. A “noosfera” como âmbito planetário homogêneo de pensamento científico é uma dessas estratégias de unificação. E, naturalmente, ela foi adaptada fortemente pelas pessoas que sonham com uma “inteligência conectada” ou “coletiva” gerada através da internet e de seu enorme poder homogeneizante. A realidade de protocolos e estruturas dominantes de conhecimento gerados através da comunicação pela internet está em oposição à esfera harmoniosa do ciberespaço. Salvem as melhores ideias de Teilhard de Chardin sem compartilhar de seu romantismo!
IHU On-Line – Quais são seus trabalhos mais recentes?
Siegfried Zielinski – Nos últimos sete anos, expandimos nossa pesquisa (an) arqueológica de uma forma específica. Chamo isso de variantologia. Em dimensões de tempo profundo, estamos buscando as inter-relações entre as artes, ciências e tecnologias em diferentes culturas e partes do mundo. Esse projeto também nos ajuda a pensar o conceito de mídia de uma maneira mais generosa e não estratégica. Em julho deste ano foi publicado Variantology V, o quinto volume de nossa série de livros. Incluindo os outros quatro volumes, já publicamos 2.500 páginas de pesquisa variantológica. E, é claro, esperamos ter contribuído para o projeto mais amplo de uma prática e teoria antes e depois da mídia.
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