46 Na Espanha, os touros correm
velozes em busca de liberdade. Ramiro nunca soube definir o sentido disso, mas
corria como louco na frente de touros ferozes para alimentar sua alegria de
viver. No fim, voltava para as estranhas maratonas de corpos sem energias dos
hospitais públicos onde trabalhava e o sexo sem compromisso onde quer que
fosse. Que sentido tinha viver isso ou assim? Ele não sabia e nem queria saber.
Em tudo e para tudo virava as costas quando o dia de correr com os touros
chegava. Ele virava as costas sem pensar e alojava em seus movimentos o ‘nada’
das correrias pela vida. À noite, depois de largar suor pelas esquinas da
cidade, não conseguiu separar o joio do trigo e perdeu América: virar as costas
tantas vezes o cegou para o brilho da parceria plena. E correr não era mais uma
opção. Claudia Nunes
47 Aos olhos da família, Laura era uma
pessoa do bem. Amava estudar; tinha amigos variados; vivia animada e de forma
positiva. Aos olhos de Laura, o mundo era pequeno, tenso, estranho e
assustador. Duas forças em um corpo alongado e doente. Laura era doente:
ansiedades, loucuras, riscos, tudo servia para tentar diminuir sua fragilidade:
o constante impulso de morte. Aos olhos do mundo, Laura é diva e um grande
blefe. O que fazer para evitar um desastre? Nada! Fingir, mentir, disfarçar eram
armas possantes que a fortaleciam na vida. Arrogância, presunção, soberba eram
combatidas em cada emoção ou ação, afinal isso também era ela. Na pele, os
cremes da alegria. No sangue, as células da verdade. Sem forças e sem
alternativas, Laura fugiu para Turquia: entre incensos e meditações, Lauro
apareceu e foi a conexão perfeita, ainda que tenha sido presa no Rio de Janeiro
por falsificação de identidade. Claudia Nunes
48 Meditar. Carolina meditava.
Aprendera com a avó: meditar tranquilizava. Sem amor, ela meditava. Tremia
muito e optara: meditar. Não queria pensar, queria refletir: queria ser um
espelho. Ela não se conhecia e perdera o amor. Aquele telefonema tinha sido
assustador: acabou! Onde está o chão? Onde encontrar sentidos? Onde estão
todos? Carolina se perdeu. Em desvio, se perdeu. Nada havia de errado: ela
apenas precisava meditar e se destruir. Pensamentos e atitudes são opções de
sobrevida, ainda que ela não os tenha mais por dentro e por fora de seu corpo
em total ebulição. Deitada, Carolina se esvai numa tsunami de emoções. Carolina
quer a limpeza de determinadas programações mentais. No meio do processo,
marteladas lhe distraem. O apartamento de cima está em obras. Abandonada no
chão da sala não acredita no desrespeito das pessoas: “ela perdeu porque não a
deixam entender?” Pac! Pac! Pac! Carolina se levanta, se arruma, abre a porta e
corre pelo corredor até seu vizinho. “Deixem-me em paz! Deixem-me sofrer!
Deixem-me morrer!” De manha, ainda se encontrava acordada, chorando muito,
ouvindo jazz, com a vizinha, a freira Madalena... Claudia Nunes
49 Sentado em seu sofá de flores
imensamente coloridas, Júlio não se conforma: não consegue mudar. Ao olhar pela
janela, sente que tudo mudou, mas ele se engessara. Ninguém ficou. Ninguém
voltou. Ninguém está em lugar nenhum: e a casa era só dele. Péssimo! Isso era
péssimo! Toda a evolução foi para fora e ele nem percebeu. Cristina, Lucia,
Lucas, Sonia, Roberto, ninguém ficou, voltou ou está em lugar nenhum. Do sofá,
ele foi bloqueado. Só as flores tinham sentido: grandes, enormes, brilhantes.
Só as flores desviavam seus olhos do vazio em que insistiam em ver e sentir. Só
as flores se esforçavam para alertá-lo: tente outra vez! Só as flores
incomodavam: ele era a evidencia da vida. Ao som de um apito de trem, seu corpo
estremeceu, correu, pulou e respirou intensamente os perfumes do horizonte sem
fim: ‘parabéns para mim!” Claudia Nunes
50 “João, atitude, eu quero atitude!”
assim pedia Iracema. Uma atitude, uma palavra, um pedido: problema resolvido.
Difícil enxergar isso por dentro dos amantes tão inteiros e tão separados. Sem
perceber Iracema pedia demais. João era só João e como João não havia bloqueios
e nem estresse. Perto, longe, ao lado ou à esquerda, ele era ele mais o amor
dele por ela. Nunca pensaram na rotina; nem imaginaram as despesas; apenas
concluíram que, por eles, até a sobra seria deles também. Caminhando por uma
rua, as vitrines chamaram a atenção de Iracema: um manequim. Lindo, o manequim.
João e o manequim. Iracema e sua escolha. No fim da rua ou no fundo de um
armário, “João, atitude, eu quero atitude!”. Quando a vizinhança acorda: o
sangue de Carla, a dona da loja, escorria pelas escadas e Iracema sorria.
Claudia Nunes
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