(HARARI, Yuval Noan. Livro Sapiens, uma breve história da humanidade. Parte 1, capítulo 2)
A África Oriental
há 150 mil anos, apenas por volta de 70 mil anos atrás eles começaram a dominar
o resto do planeta Terra e levar as demais espécies humanas à extinção. Eles
não gozavam de qualquer vantagem notável sobre outras espécies humanas, não produziam
ferramentas particularmente sofisticadas e não realizavam nenhum outro feito
especial. Os neandertais levaram a melhor (...) e os sapiens acabaram por se
retirar, deixando os neandertais como senhores do Oriente Médio.
A partir de 70 mil
anos atrás, o Homo sapiens começou a fazer coisas muito especiais. Eles
expulsaram os neandertais e todas as outras espécies humanas não só do Oriente
Médio como também da face da Terra e, num período incrivelmente curto, eles se
espalharam pela Europa, Ásia e chegaram à Austrália, um continente até então
intocado por humanos.
O período de 70
mil anos atrás a 30 mil anos atrás testemunhou a invenção de barcos, lâmpadas a
óleo, arcos e flechas e agulhas (essenciais para costurar roupas quentes).
Surgem os primeiros objetos chamados de arte e joalheria; além dos primeiros
indícios incontestáveis de religião, comércio e estratificação social. A
maioria dos pesquisadores acredita que essas conquistas sem precedentes foram
produto de uma revolução nas habilidades cognitivas dos sapiens. O surgimento
de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás a 30 mil anos
atrás, constitui a Revolução Cognitiva. O que a causou? Não sabemos ao certo.
A teoria mais
aceita afirma que mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do
cérebro dos sapiens, possibilitando que pensassem de uma maneira sem
precedentes e se comunicassem usando um tipo de linguagem totalmente novo.
Poderíamos chamá-las de mutações da árvore do conhecimento. E até onde pudemos
verificar, foi uma questão de puro acaso. Mas é mais importante entender as
consequências das mutações da árvore do conhecimento do que suas causas. O que
havia de tão especial na nova linguagem dos sapiens que nos permitiu conquistar
o mundo?
Todos os animais
têm alguma forma de linguagem. Até mesmo os insetos, como abelhas e formigas,
sabem se comunicar de maneiras sofisticadas, informando uns aos outros sobre o
paradeiro de alimentos. Tampouco foi a primeira linguagem vocal. Muitos
animais, incluindo todas as espécies de macaco, têm uma linguagem vocal. [...]
O que, então, há de tão especial em nossa linguagem? A resposta mais comum é
que nossa linguagem é incrivelmente versátil. Podemos conectar uma série
limitada de sons e sinais para produzir um número infinito de frases, cada uma
delas com um significado diferente. Podemos, assim, consumir, armazenar e
comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre o mundo à nossa
volta.
[...] Uma segunda
teoria concorda que nossa linguagem singular evoluiu como um meio de partilhar
informações sobre o mundo. Mas as informações mais importantes que precisavam
ser comunicadas eram sobre humanos, e não sobre leões e bisões. Nossa linguagem
evoluiu como uma forma de fofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é
antes de mais nada um animal social. A cooperação social é essencial para a
sobrevivência e a reprodução. Não é suficiente que homens e mulheres conheçam o
paradeiro de leões e bisões. É muito mais importante para eles saber quem em
seu bando odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é
trapaceiro.
[...] As novas
habilidades linguísticas que os sapiens modernos adquiriram há cerca de 70
milênios permitiram que fofocassem por horas a fio. Graças a informações
precisas sobre quem era digno de confiança, pequenos grupos puderam se expandir
para bandos maiores, e os sapiens puderam desenvolver tipos de cooperação mais
sólidos e mais sofisticados. A teoria da fofoca pode parecer uma piada, mas
vários estudos a corroboram. Ainda hoje, a maior parte da comunicação humana –
seja na forma de e-mails, telefonemas ou colunas nos jornais – é fofoca. É tão
natural para nós que é como se nossa linguagem tivesse evoluído exatamente com
esse propósito. [...] A fofoca normalmente gira em torno de comportamentos
inadequados. [...] Muito provavelmente, tanto a teoria da fofoca quanto a
teoria do leão perto do rio são válidas.
Mas a
característica verdadeiramente única da nossa linguagem não é sua capacidade de
transmitir informações sobre homens e leões. É a capacidade de transmitir
informações sobre coisas que não existem. Até onde sabemos, só os sapiens podem
falar sobre tipos e mais tipos de entidades que nunca viram, tocaram ou
cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a
Revolução Cognitiva. [...] Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens
adquiriu a capacidade de dizer: “O leão é o espírito guardião da nossa tribo”.
Essa capacidade de
falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens.
Mas a ficção pode ser perigosamente enganosa ou confusa. Ainda assim, [...] a
ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso
coletivamente: os MITOS. [...] Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem
precedentes de cooperar de modo versátil em grande número. [...] Os sapiens
podem cooperar de maneiras extremamente flexíveis com um número incontável de
estranhos. É por isso que os sapiens governam o mundo, ao passo que as formigas
comem nossos restos e os chimpanzés estão trancados em zoológicos e
laboratórios de pesquisa.
Os humanos, como
os chimpanzés, têm instintos sociais que possibilitaram aos nossos ancestrais
construir amizades e hierarquias e caçar ou lutar juntos. No entanto, como os
instintos sociais dos chimpanzés, os dos humanos só eram adaptados para
pequenos grupos íntimos. Quando o grupo ficava grande demais, sua ordem social
se desestabilizava, e o bando se dividia.
Após a Revolução
Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e mais
estáveis. Mas até mesmo a fofoca tem seus limites. Pesquisas sociológicas
demonstraram que o tamanho máximo “natural” de um grupo unido por fofoca é de
cerca de 150 indivíduos. A maioria das pessoas não consegue nem conhecer
intimamente, nem fofocar efetivamente sobre mais de 150 seres humanos. [...]
Quando o limite de 150 indivíduos é ultrapassado, as coisas já não podem
funcionar.
[...] Se não forem
capazes de se reinventar, acabam falindo. Mas como o homo sapiens conseguiu, ao
longo do temo, fundar grandes impérios com centenas de milhões? O segredo foi
provavelmente o surgimento da ficção. Um grande número de estranhos pode
cooperar de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos. Toda cooperação
humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade
antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na
imaginação coletiva das pessoas. [...] Histórias que as pessoas inventam e
contam umas às outras.
Não há deuses no
universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça
fora da imaginação coletiva dos seres humanos. [...] Contar histórias eficazes
não é fácil. A dificuldade está não em contar a história, mas em convencer
todos os demais a acreditarem nela. [...] Com o passar dos anos, as pessoas teceram
uma rede incrivelmente complexa de histórias. [...] Os tipos de coisa que as
pessoas criam por meio dessa rede de histórias são conhecidos nos meios
acadêmicos como “ficções”, “construtos sociais” ou “realidades imaginadas”. Uma
realidade imaginada não é uma mentira.
[...] Ao contrário
da mentira, uma realidade imaginada é algo em que todo mundo acredita e,
enquanto essa crença partilhada persiste, a realidade imaginada exerce
influência no mundo. [...] Desde a Revolução Cognitiva, os sapiens vivem, portanto,
em uma realidade dual. Por um lado, a realidade objetiva dos rios, das árvores
e dos leões; por outro, a realidade imaginada de deuses, nações e corporações.
Com o passar do tempo, a realidade imaginada se tornou ainda mais poderosa, de
modo que hoje a própria sobrevivência de rios, árvores e leões depende da graça
de entidades imaginadas, tais como deuses, nações e corporações.
A capacidade de
criar uma realidade imaginada com palavras possibilitou que um grande número de
estranhos coopere de maneira eficaz. Mas também fez algo mais. Uma vez que a
cooperação humana em grande escala é baseada em mitos, a maneira como as
pessoas cooperam pode ser alterada modificando-se os mitos – contando-se
histórias diferentes. Nas circunstâncias adequadas, os mitos podem mudar muito
depressa. Em 1789, a população francesa, quase da noite para o dia, deixou de
acreditar no mito do direito divino dos reis e passou a acreditar no mito da
soberania do povo. Em consequência, desde a Revolução Cognitiva o Homo sapiens
tem sido capaz de revisar seu comportamento rapidamente de acordo com
necessidades em constante transformação. Isso abriu uma via expressa de
evolução cultural, contornando os engarrafamentos da evolução genética.
Acelerando por essa via expressa, o Homo sapiens logo ultrapassou todas as
outras espécies humanas em sua capacidade de cooperar.
O comportamento de
outros animais sociais é determinado em grande medida por seus genes. O DNA não
é um autocrata. O comportamento animal também é influenciado por fatores
ambientais e por peculiaridades individuais. No entanto, em um ambiente
estável, animais da mesma espécie tendem a se comportar de maneira similar. Em
geral, mudanças significativas no comportamento social não podem ocorrer sem
mutações genéticas. [...] Por razões similares, os humanos arcaicos não
iniciavam revoluções. Até onde sabemos, as mudanças nos padrões sociais, a
invenção de novas tecnologias e a consolidação de novos hábitos decorreram mais
de mutações genéticas e pressões ambientais do que de iniciativas culturais. É
por isso que levou centenas de milhares de anos para os humanos darem esses
passos.
Há 2 milhões de
anos, mutações genéticas resultaram no surgimento de uma nova espécie humana
chamada Homo erectus. Seu surgimento foi acompanhado pelo desenvolvimento de
uma nova tecnologia de ferramentas de pedra, hoje reconhecida como uma
característica decisiva dessa espécie. Enquanto o Homo erectus não passou por
novas alterações genéticas, suas ferramentas de pedra continuaram mais ou menos
as mesmas – por quase 2 milhões de anos!
Por sua vez, desde
a Revolução Cognitiva, os sapiens têm sido capazes de mudar seu comportamento
rapidamente, transmitindo novos comportamentos a gerações futuras sem
necessidade de qualquer mudança genética ou ambiental. Por exemplo, considere o
advento repetido de elites sem filhos, como a classe sacerdotal católica, as
ordens monásticas budistas e as burocracias eunucas chinesas. [...] Em outras
palavras, enquanto os padrões de comportamento dos humanos arcaicos permaneceram
inalterados por dezenas de milhares de anos, os sapiens conseguem transformar
suas estruturas sociais, a natureza de suas relações interpessoais, suas
atividades econômicas e uma série de outros comportamentos no intervalo de uma
ou duas décadas.
[...] Em uma briga
de um para um, provavelmente um neandertal teria derrotado um sapiens. Mas em
um conflito de centenas, os neandertais não teriam uma chance sequer. Os
neandertais podiam partilhar informações sobre o paradeiro de leões, mas
provavelmente não podiam contar – e revisar – histórias sobre espíritos
tribais. Sem a capacidade de criar ficção, os neandertais não conseguiam
cooperar efetivamente em grande número nem adaptar seu ambiente social para
responder aos desafios em rápida transformação. [...] Os sítios de neandertais
não têm indícios de tal escambo. [...] E nenhum outro animal além do sapiens
pratica o comércio, e todas as redes de comércio dos sapiens sobre as quais
temos informações detalhadas se baseiam em ficções. O comércio não pode existir
sem confiança, e é muito difícil confiar em estranhos. [...] As técnicas de
caça são outro exemplo dessas diferenças. Os neandertais geralmente caçavam
sozinhos ou em pequenos grupos. Os sapiens, por outro lado, desenvolveram
técnicas que se apoiavam na cooperação entre dezenas de indivíduos, e talvez
até mesmo entre bandos diferentes.
O que aconteceu na
Revolução Cognitiva? - A imensa diversidade de realidades imaginadas que os
sapiens inventaram e a diversidade resultante de padrões de comportamento são
os principais componentes do que chamamos “culturas”. Desde que apareceram, as
culturas nunca cessaram de se transformar e se desenvolver, e essas alterações
irrefreáveis são o que denominamos “história”. A Revolução Cognitiva é,
portanto, o ponto em que a história declarou independência da biologia. Até a
Revolução Cognitiva, os feitos de todas as espécies humanas pertenciam ao reino
da biologia, ou, se quisermos, da préhistória (expressão do autor).
[...] A partir da
Revolução Cognitiva, as narrativas históricas substituem as narrativas
biológicas como nosso principal meio de explicar o desenvolvimento do Homo
sapiens. Para entender a ascensão do cristianismo ou a Revolução Francesa, não
basta compreender a interação entre genes, hormônios e organismos. É
necessário, também, levar em consideração a interação entre ideias, imagens e
fantasias. Isso não significa que o Homo sapiens e a cultura humana tenham se
tornado isentos de leis biológicas. Ainda somos animais, e nossas capacidades
físicas, emocionais e cognitivas continuam sendo moldadas por nosso DNA. [...]
No entanto, é um erro procurar as diferenças no nível do indivíduo ou da
família. Nas comparações entre indivíduos, ou mesmo entre grupos de dez, somos
embaraçosamente similares aos chimpanzés. As diferenças significativas só
começam a aparecer quando ultrapassamos o limite de 150 indivíduos, e, quando
chegamos a mil ou 2 mil indivíduos, as diferenças são assombrosas.
[...] A diferença
real entre nós e os chimpanzés é a cola mítica que une grandes quantidades de
indivíduos, famílias e grupos. Essa cola nos tornou os mestres da criação. É
claro, também precisamos de outras coisas, como a capacidade de confeccionar e
usar ferramentas. Mas a confecção de ferramentas é insignificante se não estiver
associada com a capacidade de cooperar com muitas outras pessoas. [...]
Fisiologicamente, não houve qualquer melhoria significativa em nossa capacidade
de confeccionar ferramentas nos últimos 30 mil anos. Albert Einstein era muito
menos hábil com as mãos do que um antigo caçador-coletor. No entanto, nossa
capacidade de cooperar com um grande número de estranhos aumentou
consideravelmente.
[...] Para resumir
as relações entre a biologia e a história após a Revolução Cognitiva: a. A
biologia estabelece os parâmetros básicos para o comportamento e as capacidades
do Homo sapiens. Toda a história acontece dentro dos limites dessa arena
biológica.; b. No entanto, essa arena é extraordinariamente grande,
possibilitando que os sapiens joguem uma incrível variedade de jogos. Graças à
sua habilidade de criar ficções, os sapiens inventam jogos cada vez mais
complexos, que cada geração desenvolve e elabora ainda mais.; c. Em
consequência, a fim de entender como os sapiens se comportam, devemos descrever
a evolução histórica de suas ações.
Prof.ª
Ms. Claudia Nunes (08.06.20)
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