Ao abrir a porta de casa, ela não sabia o que fazer. Suas roupas, suas mãos e seus papéis a machucavam muito. Isso nunca aconteceu. Sem pensar duas vezes, larga tudo no vão da porta e corre para o chuveiro. ‘Deus, o que é isso? Será doença? Por que estou ardendo, pinicando e me coçando toda?’ A água bate no corpo e tem efeito alucinógeno: ela se acalma. Enquanto o chuveiro alivia seu transtorno, ela se dá conta que a porta ficou aberta. ‘Estou nervosa, estou diferente, o que há comigo?’. Sem perceber, dorme. Como é bom dobrar a realidade e viver nos sonhos. Lentamente, se deita na banheira e aceita o torpor das águas mornas que atravessam sua memória. Há muito tempo atrás, o mundo lhe deu um presente: seu trabalho. Sua luta surtira efeito: a rua. Ali comandava, controlava e era respeitada. Seu corpo só dependia dela: escolhas e decisões. Cada conexão e emoção eram finamente controladas. Não havia dificuldade. É certo que sempre precisava voltar para casa e guardar suas felicidades, mas era uma pessoa de bem e obedecia ao que era certo. Em sua cama às vezes pensava: ‘O que é certo?’ Não chegava a lugar nenhum, mas lembrava de outras falas: isso é certo, isto é errado; isso é bonito, isto é feio; isso pode, isto não pode. Seleções dos outros, mas seleções que lhe protegeram e protegiam. Foi fácil caminhar sob esses passos tão sérios e fortes. Vida ocupada, nunca tormentosa. Ela era parceira da moral. Depois do banho, se esticou no sofá e deixou os pensamentos assumirem o espaço. Ela queria dormir. Ela queria esquecer. Mas estava pulsando, latejando, inquieta demais. Havia um ardor sem explicação fazendo morada em sua pele. ‘O que está acontecendo comigo?’ Outra semana de trabalho se agigantava e ela, ali, inútil, sentindo, incontrolável. Era uma crise emocional, uma crise da paixão. Seu mundo estava de pernas para o ar. Em diálogo consigo mesma, ela não se reconhecia. Havia muitas dúvidas internas. Cansada de estar deitada, ela se senta porque não pode se deixar tomar novamente por uma descompensação sem início ou fundamento. Distraída em si mesma, eleva o olhar e enfrenta: o espelho do quarto é nítido, ela não existe mais. Presa em seu próprio olhar, ela se perde. O gosto da paixão não chegou de mansinho. Sem tempo para escapar, seu corpo vibrou ao chamado do desejo sem frescuras ou senões. Nem a moral conseguiu ser rápida em sua repressão. O jeito então era viver aquilo profundamente. O pensamento refletia um passado cheio de castrações que disfarçaram sua desejante autonomia. Havia um contraste entre o que queria e o que podia. A relação era densa, mas errada: ele é casado. Ela não conseguia se entender, ela apenas sabia que as transformações eram intensas e maravilhosas... mas era errado. De novo, o corpo se apresenta: ela chora franca e compulsivamente. ‘Quem é aquela figura no espelho?’ Em meio às lágrimas, ela vê que a figura não chora, cruza as pernas, coloca a mão no queixo e aguarda. Chorar não adianta. A miscelânea de sentimentos precisa ser encarada. Diante da paixão, ela precisa de uma razão estratégica, e não mais da moral. Até ali ela flutuou nas razões e imaginários dos outros. Mas algo fez cócegas, a tocou, incomodou e a tirou do conforto de um vôo com rota prevista e coberta de moral. Diante do espelho, pela primeira vez, em muitos anos, seu inconsciente esperava. Mesmo com os hábitos e costumes, ela não era dona do seu próprio nariz. Isso era duro de aceitar. O espelho narcísico estava arranhado: ‘Que insegurança é essa? Que desorientação é essa? É dizer ‘não’ e pronto!’ Presa ao seu próprio olhar ela se sentia desarticulada do real e desviada do caminho traçado. ‘O que eu vou fazer agora?’ De novo, ela chora intensamente. Ela era foco sem diálogo simplesmente. Era dor de uma mentira de anos. ‘Será que eu tenho solução?’ Sem aviso prévio, a luz acaba. Não há para onde olhar. Suas têmporas latejam e, do seu imaginário, surge a dor das lembranças: inconstâncias sexuais, conflitos familiares e problemas sociais. Estes eram seus estofos interiores e por isso escolhia, decidia e vivia corretamente. Mesmo sentada, ela tira a roupa de dormir. Não queria as capas de sempre. Mas também não queria atravessar o corredor escuro. Agoniada, ela se levanta e não tem para onde ir. ‘Eu não posso me apaixonar... preciso colocar meu coração no armário... não posso me aceitar nesta perspectiva... preciso me (re)disfarçar...’ Andando ao redor da cama, o diálogo interno se estende, se revolta e se anula. Sua autocrítica é conhecida: é a moral. Ela precisava se defender de si mesma. ‘Nada de aventuras! Nada de experiências! Nada de novas escolhas!’ Sem ter para onde escapar e em quem botar a culpa, ela joga sua emoção junto à moral. ‘Eu posso conseguir alguém melhor, mais apropriado... ’. E a desilusão segue sem freios por dentro das suas certezas. Ela viveu a coisa certa segundo o que aprendeu desde pequena. Mas ela não está se tolerando mais. O ‘proibido’ é sedutor, admirável e apaixonante. Mas o ‘proibido’ é feio, desconfortável, perigoso, disseram... De frente para o corredor se pergunta: ‘há felicidade constante?’ A falta de resposta é densa e ela se sente desfalecer. Sua mão agarra a parede. Seu estômago está como em montanha russa. Sem roupa, sozinha, seus princípios do prazer e da realidade estão em luta e isto causa muita dor. Sem perceber, ela chora e grita fortemente. E o tempo passa. O suor lhe cobre o corpo e escorre sem impedimentos até o chão. ‘Eu não posso sentir isso... eu não posso falar com ninguém... o que irão pensar de mim?’ E o tempo passa. A respiração se equilibra, ainda que o mal-estar permaneça. A luz retorna. No fundo do corredor, ela se enfrenta pelo espelho do banheiro. É uma mulher bombardeada pelas próprias incontinências e pelas necessidades dos outros. Mas o suor era dela, uma limpeza que sua memória precisava. Ao longe, ela não se via de todo, mas era um cara a cara importante. Os exageros passaram. No frente a frente, ela se humanizava. Em quatro movimentos estava vestida e fora da armadilha de se sentir incapaz. Com alguns passos chegou ao banheiro e amadureceu alternativas para (re)viver. Perfume, salto alto, identidade e um celular à mão. Ao se virar, de esguelha, vê a chave de casa caída, lembra da sua avó e sorri: ‘a porta da rua é serventia da casa!’
Profa Claudia Nunes
O mundo é desconhecido e estou desbravando a mim mesma para aceitar o mundo como ele é. Como professora (Estado), Tutora em cursos de EAD, Revisora de Material Didático e MESTRE em Educação (UNIRIO), estou seguindo a vida fazendo o que gosto, como gosto e com quem gosto muito. Escrevo e publico textos para me esvaziar de mim e poder aceitar o Outro como vier. De resto meu vicio é o mundo virtual, ainda que eu nao seja dissimulada. Mutante? Isso! Eu gosto de ser mutante!
segunda-feira, 7 de março de 2011
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