quinta-feira, 10 de março de 2011

O CLUBE DO LIVRO

Este Carnaval não foi igual aquele que passou. Os mesmos blocos estavam nas ruas. As mesmas escolas de samba desfilaram no domingo e na segunda. Mesmos amigos estiveram por perto e outros longe demais. Indo e vindo minha casa estava num silencio impressionante. Adorável! Prazeroso! Era hora das limpezas então.

Fora os rodopios pela cidade de carro ou a pé, era hora das limpezas: primeiro as roupas (sacos para doação); daí geladeira, papéis (sacos e mais sacos de lixo); e por fim, os livros. Ai eu travei: livros? Jogar livros fora? Doar livros? Aqui que dor! Ainda que os espaços precisem ser abertos, passar os olhos nas estantes e escolher os livros ‘desnecessários’ era muito difícil. Os olhos não escolhiam, os olhos lembravam. Sim, cada título implantava uma imagem, uma emoção, uma lembrança de um momento, uma pessoa ou um sentimento. Mas era preciso separar; ensacar e doar.

Comecei pelos livros mais antigos. Coloque-os na bancada. Limpei-os. E parei: alguns tinham dedicatória. Como descartar o carinho de alguém? Separei-os e ensaquei o resto. Então separei os romances e poesias. Fácil descartar as poesias, mas os outros... Alguns eram ‘do coração’; outros, ‘da profissão’; ‘dos amigos’; ‘do status’; e outros ainda nunca foram abertos. Escolha fácil então: primeiro os repetidos e aqueles com capas muito velhinhas. E os livros de Malba Tahan, do meu avô? Ninguém toca! Foram guardados.

E agora, os piores: os livros teóricos. Num mundo que exige multidisciplinaridade em quase tudo, livros de diferentes ciências são importantes para se entender o próprio mundo: é o tal do ecletismo. Fico tensa: livros teóricos são livros de formação.

Já é madrugada, as escolas de samba estão desfilando e eu vivenciando muitas dores: quais livros me desfazer? Separo por grupos: mitologia, história, filosofia, tecnologia, psicologia, psicanálise, comunicação, crítica literária e sociologia. Décadas de estudos, leituras e escrita cujas referências eu agora pretendia jogar fora. Mas ainda assim, sei que alguns eu jamais lerei. Foram compras de impulso, tinham relação com determinados estudos e pessoas, ou simplesmente são de outro tempo, desejo e vontade. Além do que, detesto ler em bibliotecas. É mania.

Em meio a esse volume de decisões, tomei coragem e comecei. Não separei para decidir como antes. Separei e joguei direto dentro do saco preto do lixo. Não podia revê-los. Foram dois sacos de lixos tomados. Muita poeira. Muitos espirros. Cheiro de lavanda nas prateleiras. Enfim espaços vazios. Muitos objetos acompanharam os livros porque eram lembranças demais e minha cabeça estava doendo com tantas mexidas.

Parei e olhei as prateleiras. Uma sensação de ‘nada’, perda, vazio grande. Os livros sempre foram meus companheiros de viagem; sempre me acalmaram e responderam várias questões. Desde criança, são espaços de fuga, de compreensão, de entendimento sobre ‘as coisas da vida’ e de discussões interiores. O melhor era poder desaparecer por entre eles e me encantar com os enredos. O mundo todo alterado ao meu redor e eu debaixo da cama da minha avó nas casas de Monteiro Lobato, Malba Tahan, Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, Raquel de Queirós, Agatha Christie, Sidney Sheldon, Henry Miller, Irving Wallace, Fredrerick Forsyth dentre outros.

Agora alguns deles estavam no saco, porque a modernidade pedia passagem. Evolução e limpeza têm o mesmo tom. Com muito pesar, fui (re)arrumando os meus amigos livros. Muitos livros relidos milhares de vezes. Muitos livros ainda não lidos. Muitos livros gostosos de ter. Tudo limpo. Tudo cheiroso. Madrugada intensa. Eu quero ler. Quero me acalmar e ler. Ano passado ganhei muitos livros e um deles me atraiu: O CLUBE DO LIVRO: ser leitor – que diferença faz?, de Luzia de Maria. E me surpreendi positivamente.

A autora apresenta a leitura como algo da moda, importante e capaz de municiar os sujeitos de elementos que os façam compreender e pensar a realidade de maneira multifacetada devido aos tantos enredos nos quais imergem. Mas a pergunta dela é importante: por onde começar? Para mim leitura está vinculada a uma necessidade. Por outro lado, para outros, ela está ligada às formas de sedução. As questões de gosto e interesse são subseqüentes e ganham profundidade de acordo com as rotinas realizadas.

Em todos os casos, grandes descobertas e muitos intercâmbios. Em todos os casos mudanças de comportamento, postura e de escrita. Particularmente, nos livros, desejei muito integrações, aceitação e liberdade. Muitos desejam paz, tranqüilidade e criatividade. Como então, jogá-los fora ou doá-los? Boas causas também doem no coração. Estou lendo o livro sem parar. Esqueci que o sono quer ocupar seu lugar. Em minha poltrona, com uma xícara de chá morno, ‘... dois alimentos: o que aquece o estômago e o que enriquece o imaginário’ (p.32).

O livro me encanta porque acredita no que acredito: ‘... se não se conta uma história, como suportar o cotidiano’? (p.33) São as histórias que trabalham a memória, a imaginação e a criatividade dando um movimento plástico aos pensamentos, idéias e temperamentos. Lembro de minha avó que sempre contava histórias da família, no quintal da casa, em cima de uma pedra, com um copo de café e um naco imenso de queijo minas à mão. Eram enredos tensos, surpreendentes, mágicos, criativos. E os livros eram indicados como ponto para ‘saber das coisas melhor’ diz ela apesar de ter chegado apenas a 4ª serie do fundamental.

Aqueles sacos pretos cheios e a queimação de livros em momentos da historia da humanidade são a mesma coisa: ‘... estratégia eficaz de impedir a circulação de histórias, idéias e conhecimentos’ (p. 36). Boas causas são muito difíceis. Mas é preciso arejar, arejar-se, ceder às necessidades de revitalizar o olhar, a mente e as prateleiras, sem dó e nem piedade. Mas como plantar esta idéia nos outros?

É verdade que muitos não vêem a leitura como opção de aprendizagem de vida. Muitos partem para vida querendo práticas que os levem de pronto ao mundo profissional sem ‘mais, mais, mais’. O tempo é corrido e refletir é coisa do passado. O tempo é da experimentação e ‘ver no que vai dar’. É preciso dar os passos, e não verificar onde eles se sustentarão. E ai ler é parar, é perder a fila, é ficar pra trás, é se atrasar e ficar sem lucro financeiro. Triste, muito triste.

O tempo da leitura é o tempo de reconhecimento do lugar em que se está, da fala certa para esta ou aquela pessoa ou situação, do comportamento ideal para conquistar um objetivo, da emoção correta no amor e na amizade. É reconhecer que o texto impresso, por exemplo, é uma das possibilidades de se encontrar e rever (ler) os caminhos / objetivos, e não mais o único!

Estou emocionada com o livro. Este é cheio de pontas as quais se pode selecionar para inventar uma nova hora de SER amigo, amante, professor, vizinho, chefe, sujeito do mundo. Seu projeto é interessante. Não tem a idéia megalomaníaca de levar a todos a serem leitores. É democrático porque acredita que tudo depende do tempo de cada um e isso é o que se precisa respeitar quando se introduz a leitura ao filho, amigo, aluno, conhecido, em particular ou em grupo.

Como eu, o projeto da autora, aponta para liberdade de escolha e isto gera ansiedade pela discussão, comentários e pequenas resenhas. Lembrei muito dos meus tempos infantis quando meus avós e pai perguntavam: o que você está lendo? E eu respondia contando boa parte da historia e percebendo o real interesse deles de escutar. Isso me levava a outro livro e mais outro e mais outro assim por diante. Fora isso, nunca ninguém me disse: esse livro você não pode ler! Na biblioteca do meu avô, eu podia tudo. Medo só dos pequenos gambás que vez por outra surgiam em meio às pilhas de livros que meu avô teimava em não limpar ou doar.

Mas quando tive literatura, que horror! Tudo obrigação e uns livros chatérrimos. Como a autora afirma, em entrevista, ao site Conexão professor, ‘na sala de aula, literatura era uma disciplina que cobrava nomes de autores, de obras, características de estilos e períodos literários, restringindo-se a leitura a pequenos trechos de obras’. Não há ‘... impacto emocional. [E] é justamente a emoção que produz a empatia e prende o ouvinte, o leitor, o espectador’ (p.39)

E segue a autora em sua entrevista: ‘o universo da literatura é um terreno propício à descoberta das emoções e os jovens são naturalmente sensíveis à presença da emoção. É um infinito espaço de investigação do mundo, do outro, das diferenças individuais, histórico-sociais, culturais’. Ou seja, ‘a leitura, além de servir para ampliar o vocabulário, além de familiarizar o sujeito com as estruturas da língua escrita, de dar a ele o domínio da norma culta, além de favorecê-lo nas mais variadas circunstâncias em que ele precise comprovar conhecimento (vestibular, concursos, entrevistas), além de ser uma alavanca no sentido da ascensão social, além de tudo isso, o mais importante e bacana é que a leitura – especialmente a leitura da literatura – torna a vida das pessoas emocionalmente mais rica, torna as pessoas mais interessantes, mais agradáveis, mais bonitas, amplia as conexões sociais’.

A manha vem chegando e estou nos depoimentos dos alunos participantes do ‘clube do livro’ de certa escola pública (estadual), em 1982. Todos profissionalmente bem colocados. Todos bem integrados porque, tanto a leitura quanto a escrita, se tornaram seus meios de translado no mercado de trabalho e em suas redes sociais. Todos atuantes e usuários dos meios de comunicação de trás pra frente, ou seja, do passado ao presente, ou seja, ainda, da oralidade ao computador.

Todo o prospecto apresentado aponta para um espaço dentro de mim, em minhas prateleiras, em minha mente: ler é um caso de amor. E casos de amor podem ter limites. E nesses limites é preciso esvaziar todos os ambientes ainda que doa.

Dia claro. Manha de sol fraco. O sono cansou de mim. Depois de um banho completo, os sacos de livros irão para uma quermesse da Igreja.

Fim de papo. Fim da leitura.

Profa. Claudia Nunes

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