61 Uma concha. Ela era uma concha.
Sentada numa cadeira de balanço, Alícia estava fechada, parada, sentindo...
Seus olhos piscavam vez por outra porque o passado chegava aos borbotões e
exigia pequenos movimentos de vida. O corpo doía, mas ela não queria se mover.
Casa fechada. Silencio absoluto. E ela precisando de qualquer transmutação,
qualquer uma. Os dias anteriores tinha sido avassaladores: medo, vergonha,
decepção, discussão, correria, perda, indiferença, muitas arritmias para alguém
que tinha apenas a proposta de aprender a beleza de ser feliz. Balançava para
lá e para cá, pesada e inútil. Assim se sentia: inútil, sozinha, solta demais.
Em concha, sentia o peso dos dias, das emoções, das incertezas e dos desejos.
Pesada, muito pesada, e mesmo assim, para lá e para cá. Alicia procurava em
suas lembranças uma alavanca, algo que a fizesse saltar de novo para o mundo e
SER simples como todos os seus dias! Na sala, o relógio badalou doze vezes.
Hora de sangue novo! Meia noite é a hora das atrações, das mudanças, da noite
em dia, da madrugada decisiva. Vai e vem, e a concha não se desmancha. Ela
precisava disso, sabia que precisava disso, construiu esse momento porque
precisava dele, mas nunca foi egoísta ou sem data de validade. Na era de
aquário, a pessoa-concha tornava-se pérola, valorosa e importante. Será? Valia
a pena sair do esconderijo? Em concha, prisão mental e emocional; segurança
pessoal e emocional. Valia a pena? Vai e vem; vai e vem; sem voz, vai e vem. De
repente, vai e vem de vez: tudo se quebra, Alicia cai de costas, o mundo muda
de lugar e os amigos chegam para festejar o seu aniversário aos gritos:
PARABÉNS!! Claudia Nunes
62 Juno tinha um hobby: amantes. Casou
duas vezes, mas a beleza da vida estava nos amantes. Ela sabia o que era
paixão: saia e... amantes! Excelente profissional justificava-se decorando sua
personalidade de muitos disfarces e... amantes! Aos 40 anos, saia à noite para
experimentar amantes e amores aos quatro ventos. Jovens, senhores, rapazes,
meninos, nada era melhor do que amá-los e lógico abandoná-los. Em casa, só ela
e seu gato Heitor. Os olhos de Heitor acompanhavam as mudanças e os figurinos.
Deitado em cima da TV, observava Juno ir e vir dos amantes e dos armários. Em
muitos dias, ela brincava, ria, era criativa e inovadora. Em alguns dias, ela
era silenciosa, tensa, depressiva e fria. Um dia, Heitor ficou alerta: silêncio
demais. Inteligente sabia que os seres humanos, às vezes, se afogam em
silêncios estranhos e podem desaparecer muitas horas. Desceu da TV e visitou
cada cômodo. Que humanos estranhos? Por que essa ausência? A casa exalava a
álcool. Ao passar pelo banheiro, percebeu movimentos e barulho de água. Como a
porta estava entreaberta, entrou: em cima da pia, perucas, seios e bundas; de
pijama, Juca lavava o rosto para dormir; na banheira, vários patinhos de
borracha com nome: JUNO. Claudia Nunes
63 E de novo ela estava fria. E de
novo a vida lhe disse ‘não’. Da janela, vendo os passantes, ela não sabia mais
o que fazer da vida: mais uma vez o desejo se fora batendo a porta com força. E
de novo, ela estava na janela em expectativa de reencontrar novos olhos que a
façam, por instinto, levantar as sobrancelhas e sorrir bobamente. Mas de novo,
a questão era: fora feita para viver junto? Sua memória vagava por lembranças
quentes e distantes; felizes e distante; intensas, mas distante. O ‘distante’
era parte da vida e sua energia interferia em sua ‘sorte’ amorosa. ‘Oi’, passou
um; ‘como vai?’, passou outro; ‘está tudo bem?’, passou outro ainda. Da janela,
ela queria, porém não sentia. Da janela, ela desejava, mas não vibrava.
Passando os olhos pelas luzes, passantes e movimentos, nada lhe ajudava a
atrair qualquer energia. Ela não entendia mais nada. Ela não sonhava mais nada.
Sentia-se limitada em tudo. De repente, ao olhar as mãos, ela soube: a
maravilha do desencontro é reconhecer-se em vida para outros encontros talvez
de risco. Com o celular em mãos, aceita o convite da carrocinha de
cachorro-quente e se mistura às outras emoções desconhecidas, num mundo de
luzes amareladas e separadas. Claudia
Nunes
64 Num mundo cheio de discórdias, as
palpitações inesperadas do coração são a única maneira de Vivian se certificar
que está viva. As palpitações a assustaram e a tranquilizaram, ao mesmo tempo:
não morrera ainda. Mas depois de ontem, por que não morrer logo? “Não quero
mais você!”, esta frase ecoava em seu corpo e coração. “Tenho outra pessoa!”,
esta fala esfriou seu sangue completamente. “Acabou!”, esta sentença inutilizou
sua espontaneidade e a envolveu numa enorme inutilidade. E as palpitações...
Com o som da porta batendo forte, ela travou os sentidos, impediu o choro e
esqueceu como se mexer. Era uma decisão: ela não queria se mexer. Ela só sabia
que o tempo passava, passara, passará, de novo, em solidão daquela casa cheia
de trabalho, filhos, gatos e livros. E a palpitação segue... A prisão emocional
atraía energias tóxicas; a palpitação atraía vibrações negativas; a perda
repelia os pensamentos calmantes. Ela palpitava por vontade: era uma dor antiga
e conhecida. “Injustiça! Injustiça!” Não havia outra coisa a se sentir:
injustiça! Paralisada, criou raízes negativas; se concentrou e aumentou sua
imaginação num ponto: “Vingança! Vingança!” Uma foto lhe chamou a atenção:
família, filhos, gatos, trabalho, livros... O quarto foi se rematerializando,
as cores se revitalizando, os sonhos lutando para sobreviver... Ela treme
demais, se debate, se descontrola, desfalece e cai... Mundo, corpo, certeza,
desejos, tudo espatifado em milhares de pedaços... A alma humana, quando
possuída pelas emoções ruins e intensas, implode totalmente para se renovar e
sobreviver, para o bem ou para o mal. Vivian acorda dolorida: dor completa
dentro e fora de si. Vivian chora e grita compulsivamente: “Por que eu? O que
há comigo? Por que eu?” Da janela, ouve pequenas batidas: sem se mover, levanta
os olhos, vê um sol forte e dois pombos fazendo amor. É seu primeiro sorriso
sincero da manha. “Será que ainda tenho meu caderninho de telefone mágico da
faculdade? Pedro, Lucio, Romão e Julio: não quero nem que Deus me guarde”.
Palpitações... Claudia Nunes
65 Embora a luz do quarto ofuscasse
sua visão, Lucia nem piscava. Era sua lucidez causando um comportamento abobado
e insano. Sim! Ela estava insana. Sua decisão era irrevogável. Ela precisava
ser feliz. Então por que tanta dor? Sua vocação era certa: paz em quaisquer
sentidos. Sua independência lhe dava autonomia. Seu jeito de ser influenciava
pessoas. Sua vida era tranquila. Então por que aquela dor tamanha? Amigos
estavam dispostos a ajudar. E a dor continuava... Amante, amada, amorosa,
amigável, amiga, ela era tudo. Mas a dor não sanava. Na luz, ela não via nada e
o jeito era se ver... se ver por dentro... e tentar compreender. Sem perceber,
ela foi fechando os olhos e a loucura tomou conta de tudo. Portas internas se
abriram e ela viu: pés algemados... seus pés algemados... Estigmas aceitos,
prazeres ignorados, maturidade em ascensão lenta, confiança fragmentada, tudo
fortalecia e apertava as algemas. Muita dor... As algemas dos receios e das
dúvidas a adoeciam e a aprisionavam. Lentamente ela desfalecia... lentamente
ela morria...Um barulho ensurdecedor lhe tira a atenção. Ela não sabia de onde
vinha ou o que fazer; ela só sabia que não podia ficar ali; tinha que sair,
correr, gritar. Era preciso quebrar algemas, medos, zonas de conforto, hábitos
rapidamente, senão seus olhos não se abririam mais. De olhos fechados, o mundo
estaria perdido. E o barulho aumentava demais... BUM! O botijão explode na
cozinha. Ela se assusta e corre: sua autolimpeza já tinha seu ponto zero! O
mundo é dos loucos ‘desalgemados’! Força e fé! Claudia Nunes