segunda-feira, 25 de maio de 2015

MICROCONTOS 56, 57, 58, 59, 60

56 Diante da janela, os cheiros invadiram o quarto e alcançaram aquele corpo inerte. A brisa tremulava as cortinas e os cabelos daquele corpo inerte. Em movimento, o ar tentava agitar aquele corpo inerte. Inerte era a verdade da alma presa naquele corpo. Havia uma barreira vital e o ar não circulava por dentro daquele corpo inerte. Inerte estava o sangue nas veias daquele corpo. Corpo que desistira. Corpo que se estancara. Corpo que vegetava plantado naquela cama branca e fria. Sem dó, o ar envolveu-se com a chuva e umedeceu aquele corpo inerte. No tempo, sem emoção, a estátua perdeu seus véus e se desmanchou em poeira, naquela cama inerte e infantil. Claudia Nunes

57 Na praia, Helena, altiva, observa: homens, garotos, rapazes, meninos. Como são fúteis e atraentes. Na vida dela, houve de tudo um pouco: homens, garotos, rapazes e meninos. Ela soube aproveitar a vida. Infeliz com a vida? Nunca! Ela estava no auge. Pernas bonitas, corpo delicado, rosto definitivo: ela ainda arrancava sorrisos e olhares. Na praia, tinha vida, fazia vínculos, pegava telefones. Por cima dos óculos, percebia a sedução e não se negava. Homens, garotos, rapazes, meninos a circulavam e a entendiam. Que emoção! A tarde caiu e um susto: ‘tia, acorda, vamos embora, tenho compromisso com a galera à noite!’ Calmamente, pega sua bengala, memórias, emoções e... vai. Claudia Nunes

58 Acordou assustado: perdera a identidade. Naquela cama, quem era? Naquela casa, o que fazer? Não queria levantar, estava com muito medo. Ouvia pessoas no corredor, mas onde estava? Tudo colorido, tudo silencioso, tudo um nada absurdo. Coragem: não saberia nada se ficasse ali, deitado. Coragem! Difícil, muito difícil. Corpo morto. Corpo ignorando sua vontade. Só os olhos iam e viam tentando entender o que acontecera. Pessoas sorriam, conversavam e se moviam, lá fora. Buzinas de carro, luzes intensas, cheiros perfumados, lá fora. Calma, fique calmo. Pense, pense, relaxe. Sofá, escrivaninha, rádio, despertador, lustre enorme, teto descascando, porta entreaberta, sombra... Sombra? Quem está ai? Tem alguém aqui. Tem alguém ai! Não! Muitas sombras, muitos alguéns. O corpo sente, vibra, palpita, sacode, sacode e sacode. Marcos! Marcos! Acorda! Fala comigo! Anos depois, numa mesa de bar, amigos se juntam para lembrar dois anos sem Marcos. Sabemos que ele era intransigente, invejoso, crítico... Sabemos que causou muitos problemas às pessoas... Sabemos das fofocas, falcatruas e intrigas entre todos... Lei do eterno retorno? É, pois é, que bom, tintin! Claudia Nunes

59 Rubra desembestou pela estrada sem rumo à procura de oxigênio. A crise a pegou de jeito e ela não aguentou. Carro, lanche, dinheiro, tudo o que precisava pra ser feliz hoje. Seu celular não parava de tocar. As pessoas não entendiam sua atitude e ela, nas ruas, nos becos, nas vilas, incrivelmente liberta de tudo. “Meus livros estão guardados” ela pensava. “Não quero ouvir ninguém. Para que? Escutar é um verbo desconhecido. Faz isso... faz aquilo... as pessoas não escutam... as pessoas dão solução e seguem em frente... as pessoas nem aparecem para não serem perturbadas... então para que ouvi-las? Não quero mais! Dinheiro, lanche, carro e música: apenas o que precisava”. Nem sabia onde estava, apenas ia. Arco a deixara. Flavio e Silvia estavam crescidos. Amigos? Ah sei lá... Cada um dando conta do seu e evitando olhares de esguelha. Era preciso respeitar. Sem querer a cidade sumiu. Onde estava? Sei lá! “Estou contagiada!” O túnel abafado surgiu do nada e ela sem pestanejar alcançou o paraíso perdido. “Cadê Arco? Como estão Flavio e Silvia? Estou sozinha de tudo? Ahhhhhh! Tirem essa camisa de força de mim!!!!!!!” Claudia Nunes


60 Com 18 anos e um milhão de dólares. Com 18 anos e em chamas emocionais. A vida era bela, quente, farta e... solitária. No banheiro da rodoviária, o pânico o alcançou: não sou ninguém. Milhares de pessoas lá fora; muitas pessoas me aguardando; e ninguém por dentro. Estou perdido nos holofotes de um milhão de dólares e sem foco. Perto da privada, tudo parado até a vida e ele sem saber como se reencontrar. Cheiros e barulhos estranhos o levaram a uma reflexão: ele não era nada! Que medo! Que loucura! Pagaria tudo para tocar no amor, na amizade, no carinho; mas nada disso tem toque; tudo isso se constrói e se sente. Ele não era nada e estava num lugar de nada. Bolsas, malas, sacolas cheia dos desejos de milhares. Bolsas, malas, sacolas vazias dos sonhos de um. O que fazer? Ele precisava se recompor e ser alguma coisa novamente. Novamente? Que dúvida! Será que já foi alguém algum dia? Hoje sabe que não. “Toc, toc, toc, L. sai daí. Já estamos indo embora. Toc, toc, toc.” Olhou para baixo, levantou as calças vagarosamente, arrumou a roupa e o carnaval recomeçou: “oh abre alas que eu quero passar...”. Claudia Nunes

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