terça-feira, 22 de setembro de 2015

MICROCONTOS 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 128, 130

121 Na noite escura e barulhenta, ela escutou uma voz: aprenda! Não eram pensamentos, eram sensações: aprenda! Ela não estava dormindo: aprenda! Calculando que era um sinal, fechou os olhos e se deixou levar: aprenda! Num mundo solitário e branco, ela estava aberta, sem orgulhos, ansiedades ou tristeza. Lá nada disso servia: ela precisava enxergar. Um musica atravessou sua mente: e a limpeza emocional e mental começou. Ela conspirava em seu favor. Ela precisava retomar caminhos: aprenda! Sem esquecimentos, de manha, ela aprendeu: - Lucas? Quero vc! Claudia Nunes

122 Pensando em corpo. Voltando para casa, o corpo incomodou e perdeu o sentido. Desgovernado, ele não sabia onde começava ou terminava. Ele se olhava e se incompreendia. Não tinha mais dimensões ou limites. Corpo. Casa. Tumulo. Baú. Mais do que a pele, ele não mais se entendia como um concentrado de informações que se banham de mais informações para mudar, mudar e mudar. Sem corpo, como ficaria sua alma? Sua energia? Seus sentidos? Ele estava parado na esquina e apenas respirava a falta de pistas referentes a um possível reencontro. Estava insalubre, nervoso, inseguro, desconfortável. Ao fechar os olhos, as memórias e as emoções saltaram e doeram. Seu cérebro não recompunha a lista de tudo que ele fora com harmonia. Respirar, respirar e respirar: eis a única possibilidade de se reconectar. O tempo passou. Seus olhos abriram, o sinal esverdeou e a vida fluiu naturalmente. A necessidade é a base dos comportamentos. Claudia Nunes

123 Ela não sabia que caminho tomar. Ela apenas sabia que o caminho existia. Medo do que viria? Fato! Que obstáculos? Que pessoas? Nada lhe respondia. E os passos precisavam ser feitos. Seus objetivos eram claros, mas e os cruzamentos? E as expectativas? E as surpresas? Ela não sabia nada do caminho. Mas queria seu futuro e as atitudes. Difícil. Tenso. Ela não sabia por que se importava com as tentativas. Ou melhor, ela se importava com o resultado das tentativas. Pressa ou saltos? Sonho ou rotina? Ela sabia apenas sobre o primeiro passo: experimentar e persistir. Medo! Almas boas e más há em todo lugar: quais lhe dariam a mão? Quais lhe magoariam? Ela não sabia o sentido do ‘não’ e lutava por adequar seus ‘sins’. Energia. Atração. Ela não sabia qual caminho e a proposta fora fundamental. Diante do seu armário, caminhos, roupas e escolhas: o que fazer? Pensar, sentir e agir: é vida que segue com medo mesmo. Claudia Nunes

124 Ela perdeu seu mundo. Um erro e ela perdeu tudo. Ela se descuidou e estava só em sua depressão. No meio do choro, ela sentiu culpa. Ela era uma culpa. Seu comportamento fora reprovável: e se tornara frustrada. Nunca pensara em se envolver, mas fora uma mulher apaixonada. Saltara da dúvida para a paixão, sem se dar conta do futuro. Depois da sedução, muitos desequilíbrios e esconderijos: valia a pena. Fora do prumo se tornara distante entre o que fora e o que queria ter sido: valia a pena. Ela se violava e abria feridas claras ou obscuras em todos. Hoje: o fim e a culpa. Ela era culpada, mas precisava se recompor afastando-se do principal obstáculo: ela mesma. Depois do vendaval, o resultado era um crescimento emocional inadequado e novas perdas. Ela capengava emoções e não valia mais a pena. Ela precisava se atualizar internamente e se recuperar externamente. A vida cobrava forte. Era sobreviver aos acontecimentos ou enlouquecer. Ela tinha o mundo em suspenso: culpa e autorrealização não conseguiam um acordo. Solução? Limpeza. Descarte. Ignorâncias. Sua liberdade não tinha culpa, ela sim. Correu no quarto, fez uma mala e fugiu. Além do horizonte, devia haver outra civilização, outras naturezas. Claudia Nunes

125 Com toda a casa fechada, Helen se sentia vigiada. Amava o mundo, mas não queria mais vivê-lo. Ela respirava forte e lavava muito as mãos: culpa. Ela pecara: culpa. Seu trabalho ia bem. Sua casa estava arrumada. Sua relação com Lucas estava tranquila. Por que a culpa? Ela pensava. Em pensamento, estava envolvida em múltiplas transgressões e expiações do desejo. Em pensamento, não lutava para ser social. Em pensamento, tinha liberdades sem disfarces. Pecadora e errada! Culpa! No fim do dia, ali, fechada, seus erros eram monstros que não lhe deixavam resplandecer. Em erro, era indigna, má, inútil. Ela tinha raiva de si mesma: ‘incompetente!’. Como pode? Fechada, ali, só valia ser com intensa autopunição: abriu seu armário e picotou todos os seus melhores vestidos pensando: ‘sem tantas capas serei uma pessoa melhor, amanha, só amanha...’ Claudia Nunes

Quando as emoções não estão equilibradas é culpa dos pensamentos; quando as emoções são pensadas são fontes de sentimentos; o que fazer então? Emocionar-se sempre e construir outros designs afetivos sem medo. Claudia Nunes

127 Inferno astral. Inferno particular. Diante da realidade, Samara tinha culpa. Diante do seu comportamento, ela se deixou debater em meio às emoções e às atitudes impensáveis, ainda que apaixonantes. Ela sabia dos seus motivos, mas sofria. Seus ambientes não podiam mais ser frequentados com a liberdade e a singeleza dos atos responsáveis: ela fora irresponsável; ela amara o proibido; ela vivera as profundezas das loucuras do amor; ela ignorara todos os padrões e verdade; e agora, descoberta, a culpa. Nada poderia ser evitado: e o tormento era de todos. Mas só a culpa não bastava, escondido em seu psiquismo e em sua angústia, havia o remorso. Cruel lidar com uma escolha, ela formara uma tsunami de ações, palavras e emoções. Cruel lidar com tudo isso, quando suas lembranças e corpo lhe excitavam, animavam e justificavam a vida, a experiência... para um novo encontro. Samara não podia pensar nisso. Samara só podia desejar isso. Samara optara pela necessidade e pela fantasia acreditando que teria controle sobre a relação: ela amara incondicionalmente; ela quisera o proibido. Caminhando pelas montanhas, ela suava muito e pensava: culpa, remorso e arrependimento, de que adiantavam? O que significava, de repente, todo aquele desconforto interior? Ela quebrara o próprio imaginário sobre si mesma e machucara ‘alguéns’, mas não o fizera sozinha e sem apoio. De acordo com seus princípios, ela fora má, perdera a noção de si, calara seus escrúpulos e empatia: ela realmente fora má. Em cada passo do caminho, rumo ao pico da montanha, o medo do retorno, o medo dos olhares acusatórios, o medo da própria representação de si nos outros, o medo dos julgamentos. Porcelana rachada, assim se via, e assim acelerava o ritmo cardíaco. ‘O que fazer? O que fazer? Subir, ir até o pico, respirar, decidir e descer. Na vida, não sofrer por nada teria sido seu pior tormento, então, com medo, foi com medo mesmo. Claudia Nunes

128 Depois daquela viagem, eles se separaram. Depois da lua de mel, eles se ignoraram. Depois da comunhão dos corpos, eles não se entenderam. Depois de 07 anos de namoro, eles não sabiam mais conviver e se dizer simplesmente: ‘oi, tudo bem?’. Eles se reencontraram numa esquina e... vida que segue. Claudia Nunes

129 Um banho de vida, assim ele percebeu seu corpo. Um banho de atrações, assim ele reconheceu sua casa. Ele estava feliz! Em muito tempo, ele não se controlava tanto. Ele estava feliz! As perdas causaram um vendaval na vida; mas, agora, recuperara sua força de vontade, se sentia útil e tomara banho. Oh coisa boa, um banho em casa. Ele lera muito sobre tudo, agora era exercitar, agir e dominar sua realidade. Ele aprendera: um passo de cada vez e muita simplicidade.  Nada de ansiedade ou sonhos; apenas viver, ser e lutar, como antes... antes da prisão. Oh banho bom demais! Claudia Nunes


130 Aos 50 anos, ela aprendera a tocar em sua essência. Tarô, runas, cristais, cartas, tudo servira para que ela pudesse se reconhecer e se equilibrar. Mas nada tocara sua essência. Ela não era inferior, menor, ruim; ela era ela e muito diferente. Ela tinha magia, encanto, mistério e alegria. Sim, parte de sua essência era a alegria. Ela podia desejar, sonhar, imaginar, fantasiar tudo: enfim a liberdade da essência e de ser. Existir ganhava qualidade: ela tinha uma essência e confiança. Ao conspirar a seu favor, o universo estrelado lhe deu boas vindas: o acidente de automóvel não tinha mais sentido... Claudia Nunes

MICROCONTOS 111, 112,113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120

111 Atraso é uma expectativa. Há tensão, angústia, ignorância. Marla nunca se atrasava. Tinha como valor, não se atrasar. Sabia que o atraso dava complexidade às emoções e aos comportamentos: era algo fora do normal. Atrasos não são normais e ela se irritava com a displicência dos outros. Tudo e todos ‘andavam’ 05 ou 10 minutos atrasados e nada se encaixava. Atrasos interrompem destinos; afetam relações; semeiam discórdias; causam transtornos públicos; ignoram éticas e solidariedades. E ela não se admitia assim. Hoje, num surto de felicidade, Marla fugiu do escritório com seu exame de urina em mãos. Enfim, estava atrasada... Claudia Nunes

112 Na brisa do mar, pernas caminham sem certezas ou dúvidas. Em cada passo, as emoções afloram e se espalham pelos ventos como folhas secas. Como são reveladoras essas liberdades. A própria realidade é um impulso para se viver com os outros sem pestanejar: mas com muitos cuidados. Nossa velocidade vem construindo memórias afetivas em edições constantes. Sabemos quem somos com outros, mas nos perdemos sozinhos. Embora saibamos que a realidade é boa ou má diante das relações que construímos, estamos perdendo a noção de GRATIDÃO, estamos nos desconhecendo. Duas amigas de infância saem de lojas opostas no shopping Center. Ao se encararem, o silencio e uma pergunta: o que nos aconteceu? Vinte anos antes nunca pensariam em se desgarrar. Muitos planos e projetos sonhados e realizados. Mas a ingratidão cortou esse elã afetivo para sempre. Olhos nos olhos, suas memórias doeram em seus corações: “o que nos aconteceu?” A ingratidão, de novo, as alcançava e impedia o tão desejado abraço forte e cheio do calor da amizade. A loja era das duas. A loja dera enormes lucros. A loja era o símbolo da amizade e do sucesso decidido nas adolescências. Ai o amor: uma delas amou demais e o mundo mudou. Os vínculos foram se fragilizando: pensamentos negativos; necessidades particulares; interesses individuais; muitas tensões; poucos diálogos. E o sentimento de ingratidão crescendo... Sem os reconhecimentos internos, os pensamentos ‘da hora’ impediram a ajuda simples, o tom carinhoso e o gesto sincero: esqueceram o silencio respeitoso. Cada vez mais distantes, desconheceram a proteção, o abraço, a fidelidade, a sinceridade, a escuta e os sonhos de meninas. Mas ali, de pé, diante de uma multidão ignorante da energia impactante do olhar, não conseguiram se deixar: olhos nos olhos e as mentes doloridas dos desejos e das lembranças. Sem notarem, as lágrimas corriam vertiginosamente. Mas, no meio das duas, ainda um terceiro humano sem a experiência da construção afetiva, mostrava a fragilidade de quaisquer relações e das perspectivas de futuro ‘para sempre’ forjadas na intensidade dos dias adolescentes. Só que, agora, estavam frente a frente. De repente, a certeza óbvia: enlouqueceram e se perderam para ‘o nada’; e seus olhos desaguando enormes volumes de memórias... “Mamãe, vamos embora!” – grita uma criança entre as pernas de uma das mulheres. Agachando-se carinhosamente, ela pega a criança e diz: “Querida, venha conhecer a melhor amiga da mamãe. Você tem o mesmo nome que ela”. Claudia Nunes

113 Degrau por degrau. Sem outra opção, Lucas subia degrau por degrau. Ali ou em qualquer lugar, sua vida seguia sem rumo. Ele se perdera em muitos voos sentimentais; e agora era degrau por degrau. Pensava em horizontes, em paisagens, em campos verdejantes e em prédios de departamentos; quaisquer lugares que o impedissem de recuar. Aos 42 anos, mil e um recomeços e poucas renovações. Mas agora era a cartada final: degrau por degrau e a esperança de outras visões do nascer do sol. Ao abrir a porta, percebeu que ainda tinha força pra vencer aquele inesperado câncer de fígado: e sorriu. Claudia Nunes

114 Queijos, vinhos, pipocas, pequenos chocolates, a rua lá fora e as emoções aqui dentro: assim respirava da varanda de casa, Linda. Depois do fim do ano, tudo era harmonia, silencio e reorganização. Era o momento de se reconhecer e ganhar força para se projetar mais um ano. Ainda assim um assunto a incomodava: o amor acabara. Não estava sozinha: mas o amor acabara. Como reencontraria a felicidade? Como sorriria novamente sem suspeitas? Esse desgaste era injusto: ela conquistara, amara, fora grata, ajudara; mas o amor acabara. Sem ter o que fazer, começou um jogo de paciência: o tempo passaria sem dores ou gastos. Claudia Nunes

115 Num carta de baralho, o sangue de vida inteira. Como num passe de mágica, a vida acabou. De olhos abertos, a evolução estava vidrada na janela do 4º andar. A vida a preparou para todas as experiências; nunca a prepara para o vazio da falta de respiração. Ali deitada no chão de uma calçada, o fim de uma proposta. No fim da rua, Eduardo corria. Enfim sentia a liberdade conquistada: a faca pingava a grande mudança. Claudia Nunes

116 Um dia ela aprendeu: ela se detestava. Muito preocupada com os olhares alheios vivia os desejos dos outros e se perdia em atitudes perfeitas. No espelho, ela aprendera: ela não era ela. Quando se perdera? Como retomar a si mesma? Precisava do valor, do toque, do som e das expectativas de outros: e ela? Ela tinha medo da mudança; medo do julgamento; medo da fala contrária; medo de não ser ‘gostada’. Gosto! Isso mesmo! Por gosto, ela perdera o gosto. Era preto o branco. Era repetição e cansaço. Um dia, no espelho, ela não se viu, se estranhou e entristeceu. Olhos nos olhos, uma ideia: batom vermelho, perfume e saída pelos fundos sem ser vista, mas com sua vida... Claudia Nunes

117 A cartomante disse: ‘largue essa energia!’ Malu estava cega. Coisas absurdas eram normais e obstáculos eram seu foco. A cartomante avisou: ‘faça sua escolha logo!’ Malu pesava emoções inseguras. Pelo amor ou pela dor, era viciada em tensões e raciocínios. A cartomante gritou: ‘pare de esquecer!’ Malu se repetia, se repetia e se repetia. Cansada, a cartomante sacou uma lua negra e apagou os olhos de Malu. Agora Malu lembrava: não tomara banho, precisava limpar a alma. Pagou, sorriu e evoluiu. Claudia Nunes

118 FORA DA ARTE 1 - Suas unhas estavam horríveis! – assim começou o dia de Amanda. Em sua cama, ela se deparou com seu maior terror: unhas quebradas, malfeitas, roídas. Como sair assim? Olhando ao redor, ela entendeu que seu mundo era outro: era se tornara sua arte e arte exigia glamour em tempo integral. Ela estava deitada e dramática. Só que algo mais a incomodava: ela mesma. Já sentada na cama, ela reconheceu as unhas e lembrou: pai sumido, infância de fome, fuga de casa, moradas insalubres, encontros interesseiros e de sobrevivência. E mesmo assim, aprendera a ser humana. Debaixo do chuveiro, as unhas gritavam milhares de cenografias com as quais convivera: era cantora. Sua voz a fizera fincar os pés no chão, na luta, no sofrimento, na resiliência e na construção de um sorriso sincero em todos os palcos da vida. Sua dor ficava ou lhe fugia no palco, apenas. Debaixo d’água, ela se sentia ativa e se sabia em harmonia com a energia divina: suas memórias já reconheciam as diferentes ‘unhas’ da vida. Na água, ela era divina, apesar das unhas, da maquiagem, das horas de dança e da rotina. De tênis, short e camiseta, ela enfrentou o mundo. Unhas humanas e fãs precisavam se juntar e ratificar todos os sentidos que aprendera em vida. Ela também era comum e adorava simples liberdades de rua. Vento, corpos, unha e ela. Seu olhar ignorava a estética e alimentava suas emoções. Ela sentia que, de novo, podia se refletir no mundo, apesar dos obstáculos: a unha. E os caminhos se abriram. E os corpos lhe deram passagem. E ela foi ser gente na luz de um dia quente com a franqueza de mãos espalmadas e felizes. Claudia Nunes

119 Moléculas vibram juntas causando uma energia que reelabora a solidao e constrói novos formatos, corpos e sistemas: somos constantemente a lei da atração. Sem problemas reais, ele se transmutou sem bloqueios e alcançou a força de uma meditação. Ele esvaziou-se e ressurgiu para outras oportunidades. Ele criou ressonâncias e reverberações. De novo, a permissão de entrada de situações e pessoas. Depois de tudo, ele se permitiu reaprender com menos orientações e mais emoções; afinal ele era a luz de Zeus e de seu filho! Claudia Nunes


120 As noites são momentos das grandes verdades. E o corpo disfarça emoções do dia. Alison sabia que não podia mais viver das paixões. Sim! Nunca trabalhara. Desde seus 18 anos, mulheres eram possuídas de uma imagem mental sobre ele e queriam sua perfeição corporal e facial. Ele nunca precisara criar desejos ou sonhos: ele tinha variadas linguagens afiadas e focadas. SER para TER e TER para SER: aprendera este lema na infância. Alison era do mundo, mundano e das mundanas. Mas agora sabia que tinha que parar. Havia diferenças entre o corpo físico e o corpo emocional; e aos 38 anos, estava desnutrido de tudo. Ambos os corpos estavam decadentes. Havia flacidez nos gestos, nos prazeres, nos encontros e naquele quarto, de repente, observado como imundo e vazio. Aos 38 anos, Alison era um homem vazio, apesar de cheio de memórias. Mas estas não lhe ajudavam, não lhe davam carinho, não tinham palavras de apoio, não poderiam ser abraçadas, não o fariam crescer. Alison era figura repetida nobaralho da vida: saiu da condição de curinga sem notar e se embaralhou em cartas sujas pelo uso desqualificado. Sentado na beira da cama, tinha um caderno de endereços e telefones de dar inveja; mas não estava mais saudável ou viçoso; estava enfermo, insalubre e viciado. Ele era viciado nele mesmo e suas paixões espelhavam essa toxina em cada beijo, suor e sexo. O tempo passava, ele esperava e uma dor estranha doía demais. Onde ele estava? Onde poderia encontrar-se? Em Virginia? Elisa? Sonia? Lucia? Vanda? Amanda? Claudia? Linda? Carla? Vitoria? Thalia? Não... Ele não fora imune: estava cheio de pedras no sapato e sem opções reais. Trrriiiiiiimmmm (toca seu celular)... trrriiiimmmm... trrriiiimmmm. Alison desliga a TV, liga o rádio, fecha as cortinas e assume o sono da própria noite como um gás... Claudia Nunes

MICROCONTOS 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110

101 Mandingas, olhos gordos, mal olhados, energias negativas, ela temia tudo. Jamais acreditou em coincidência; tudo era um chamado ou um alerta. Andava pelas ruas olhando todos os lados: nunca seria pega num contrapé. Parada pensava: sou uma alma correta, honesta, íntegra. Corpo fechado mesmo. Suas aulas de filosofia eram sua fortaleza: inveja, ciúme e ambição desmedida precisavam de barreiras de pensamento e de atitude. Ali, esperando o sinal abrir, ela pensava em energias, em forças, em alternativas de vida com os outros. De corpo fechado, um alívio para pensar. De alma livre, a independência de ações. De mente cheia, um grito e o atropelamento. Claudia Nunes

102 No baralho, sua vida. Na vida, sua curiosidade. Na curiosidade, seus enganos. Nos enganos, sua maturidade. Sem compreensão, o alívio da morte. Tchau! Claudia Nunes

103 Dentro de uma vida moderna agitada, as proteções são muito importantes. Principalmente com relação às memórias emocionais de cada um. Sara esquecera disso e sentira energias minando sua vitalidade. Não tivera forças, foco, atenção, amor. Não tivera nada e estava muito cansada. Alternativa? Nenhuma. Agora o estado terminal: vivia a vida dos outros como forma de alívio mental e emocional. Ela era outro alguém e carregava isso por toda parte. Mas esquecera das proteções e os problemas vieram. Sem méritos, aos prantos, assinara sua demissão. Claudia Nunes

104 Naquela praia deserta, Ema não sentia o tempo passar e sua mente era o território de bobagens sem fim. Ela tinha certeza: ela viera e vivia no mundo por isso. Essa era a energia que lhe vibrava melhor. Com óculos de sol, observava as ondas ir e vir sem parar e se sentia carregada. Amava, gostava, respirava, sentia, sem impaciências. As horas registravam sua aventura de ser mãe, filha, amante, mulher, ainda que enfrentasse pequenas incompreensões, com otimismo e alegria. Ao abrir o jornal, a pergunta: quem somos nós? E as palpitações começaram... Claudia Nunes

105 Engraçada a felicidade, ela é muito desejada e ultrafulgaz. Demoramos anos para ter um instante de emoção positiva e, muitas vezes, não sabemos vivencia-lo como merece: equilíbrio. A questão é estabelecer metas e ignorar a vaidade dos merecimentos. Somos merecedores de quem somos, e só. Vazios, devemos ajudar pessoas, agir com flexibilidade, pensar positivo e viver com honestidade. Mas, vazios, somos porosos aos olhares e sentimentos tóxicos. Não temos merecimentos, temos possibilidades por causa e por efeito de nossas atitudes. É preciso compreender isso: o valor das coisas e das pessoas está na disponibilidade das junções sem bloqueios preconceituosos ou estigmatizados. Importante a forma e não o conteúdo? Negativo! Forma e conteúdo nos engrandecem, nos enaltecem, nos amadurecem e nos completam. Só temos que ter um cuidado: os ventos atingem recantos emocionais surpreendentes e engatilham memórias ‘deseducadas’. Para ser feliz ou tocar a sensação de felicidade, no processo de vida, temos que passar pelo ‘vale da sombra da morte’ inúmeras vezes e ressurgir plenos de fé e força. Atenção. Claudia Nunes

106 "De pernas cruzadas, na varanda do apartamento recém comprado, Vanda pensava no tempo. Sua memória estava às avessas: ela queria as épocas, as horas, os dias de liberdade e de muitos amores. Mas já nao era tão jovem. Ela só sentia o estupor dos ventos da realidade causando mais perplexidade: ela perdera o momento oportuno. e já não era tao jovem. Amara demais e sofrera muito: não estava mais no clima das superações e queria desabar para sempre. Ele se foi. Ele surrupiou seu orgulho. Ele escureceu seus dias já que não era também tão jovem. Da varanda, vidas tinham suas próprias referencias e ela estava completamente excluida: sem completude, ela não era mesmo mais jovem. Certamente o trabalho a mantinha viva, mas a vida estava desconectada. Ela queria matar o tempo. Ela queria distrair o tempo. Ela nao tinha mais tempo. Com esforço, aceitava as inutilidades das migalhas afetivas e gradativamente ia se desconectando das relações. Para que? Para perder o tempo do conforto e do futuro. De pernas cruzadas, na varanda do apartamento recém comprado, Vanda se perdia em seu próprio tempo. Ela se ressentia e os amigos desapareciam: era dar ou perder o tempo e ninguém era mais jovem. Sem o menor pudor ou seleção, eliminou-se das redes sociais e aceitou o pó da vida. Pena. Carlitos tinha esperanças e a aguardava desde a infância..." Claudia Nunes

107 Todos os dias fazemos escolhas. Todos os dias inauguramo-nos para ilustrar o dia com atitudes e emoções. Somos destinados à transitoriedade do tempo e dos sentidos diante das inúmeras informações. Infelizmente nos pautamos no certo e no errado esquecendo que há uma ‘terceira margem’, e daí criamos insatisfações. Nós e Laura sabemos que, por necessidade, devemos reconhecer o valor do esforço, da luta e do equilíbrio. Nós e Laura sabemos que sentir as indecisões é sentir um futuro aberto e possível aos sonhos e aos desejos. Nós e Laura estamos preparados para remexer em nosso interior e desenvolver adaptações e sintonias em diferentes paragens do mundo. Nós mudamos. Laura virou luz. No fim das contas cada um encontrou sua força e seu caminho. Nós e Laura somos natureza. Claudia Nunes

108 A mágoa é algo incompreensível e o simples perdão não adianta. Tem princípio e meio, mas não tem fim. As cores do cotidiano se transformam e os comportamentos tornam-se menos espontâneos. Difícil trabalhar este sentimento e Marcos aprendeu isso da maneira mais dura: seu amigo iria se formar e não o convidara. Nada acontecera. Não havia razões. Mas o convite não veio. Sentado em seu computador, a tristeza estava no coração e no corpo: era uma angústia sem fim e muito pesada. Por quê? Muitos ligaram para ele e também não entendiam: cenas de constrangimento. Marcos não comentava e não perguntara: sentir uma mentira ou um disfarce seria pior do que a verdade. Silencio por fora e grande barulho por dentro. Durante os dias, ele conversara muitas vezes com o amigo e nem uma palavra. Movimento na família dele e no bairro, e nenhuma palavra. Por quê? Tão próximos, tão parceiros, tão amigos e nenhuma palavra. Era uma mágoa estranha: não tinha contexto e nem continha hábitos. Era uma dor infinita: não havia fundamento. Ele não se controlava, doía demais. Várias noites pensando a amizade cena por cena e nada: nenhum deslize, nenhum desacordo, nenhuma diferença. Olhando seu e-mail soube que ganhara uma viagem para Roma do padrinho e partiu sem pestanejar. Não vira que, no fundo da caixa do correio, ratos roíam um lindo envelope que dizia: ‘para o meu melhor amigo, na esperança de um abraço no melhor dia da minha vida. Te aguardo’. Claudia Nunes

109 Sem querer nos perguntamos ‘por quê?’. Não percebemos que todos dias, em inúmeras fontes de informação, convivemos com o up da evolução. Sem querer estamos em ebulição diária: transformação, mudança. Lucas não percebera nada disso. Como sempre teve certezas emocionais, projetava-se na vida com força como um forte. Era uma máscara. Desde a juventude decidira: queria os caminhos seguros e para isso teria que construir um personagem. Base dessa construção: a imponência. Enquanto crescia profissionalmente reconhecia: havia mil interferências; haveria muitas inconformidades; houve muitas pessoas inadequadas. Só que outra certeza sempre lhe acometida: estava amadurecendo. Sem questionamentos sabia que lutava contra uma corrente fortíssima: a fragilidade, a insegurança, a dúvida, a sensação de inferioridade. Um dia, diante da luz do sol, suas pupilas dilataram e Lucas surtou: diante das cores do arco íris, ele virou estrela e foi aos céus das inutilidades e dos deuses do Olimpo. Claudia Nunes


110 Num bar, ela escutou ‘o silencio é a alma do negócio!’ e ela pensou: a elegância também. Ao abrir a porta, abandonou a vida e foi brilhar como uma pequena purpurina no chão da Broadway e em silêncio. Claudia Nunes

MICROCONTOS 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100

91 Da janela do seu quarto, ela entendeu: as dificuldades são as desculpas dos dependentes. Ela pensava na vida, no amanha. A lua cheia a olhava e atraia sensações desconhecidas: ela pensava em frustração. Embora soubesse que a autonomia é a representante da maturidade cuja presença precisava respeitar, frustrara-se. Fora surpreendida e frustrara-se. Silenciara por frustração. Em noite de pensamentos, frustrara-se. Que decepção consigo mesma: frustrara-se inutilmente e aprendera. Da janela sabia, era hora de outras responsabilidades: sentir, pensar e agir, afinal frustrara-se. Da janela ouviu: ‘somos o que pensamos ser’. Que nada! Frustrara-se, mas tinha potencial: iria ler outra coisa e vibrar noutra onda, de manha, depois do sol. Claudia Nunes

92 Sentada no andar de cima de sua casa, ela percebeu: estava fraca. Aos 40 anos, estava fraca de tudo. O barulho dos filhos e marido chamara sua atenção: estava sem ânimo. Ela encostou no braço da cadeira e deixou a vida passar. Por dentro e por fora, sua memória escorreu sem entraves: ela era um peixe fora d’água desde sempre. Esportes, amores, estudos, amores, vícios, amores, casamento, amores, filhos, amores, decepções, amores, alegrias, amores. Muitos amores, poucos envolvimentos. No trato com a vida, só vulnerabilidades. Sem energia, estava em questão e cansada. Energias misturadas, impaciências, doenças, solidões, tristezas. No panorama dos dias, a tinta do tinteiro tinha mais vigor que ela. Gritos lá embaixo. Gritos cada vez mais altos. Invasão do seu quarto e das suas emoções. “Preciso passar roupa...” Claudia Nunes

93 Sentada numa biblioteca, ela olhava os livros. O que fazia ali? Depois da discussão, andara por horas e chegara àquele lugar. Não gostava dali. Nunca fora ali. Mas estava ali e se sentia confortável. Sua vida fora dedicada à família. Tinha prazer nisso e nunca desistira. Nunca pensara em si, apenas prestara serviço ‘de bem’ a todos porque acreditava na possibilidade de aprimoramento e liberdade. Ela tinha foco. De um dia para o outro, o desastre: amara incondicionalmente. ‘A senhora deseja alguma coisa?”, perguntara a bibliotecária. ‘Sim. Vida. Quero vida! Quanto custa?’ Claudia Nunes

94 O mundo mudou. Estamos fugindo velozes para outro mundo sem saber qual de qualquer jeito. O desejo de viver é tanto que o jogo das relações se perdeu nas brumas nas escolhas básicas e sempre fulgazes. Não é mais possível ter tempo para iluminar as emoções e equilibrar os gestos, tla as exigências que se fazem a si e aos outros. Vive-se em fuga, com medo, em tensão e com dor. Nessa luta, no meio de muitos, solidões inimagináveis e quase indecentes. Andamos fora de foco, sem prazer e prestes a desistir dos nossos dias seguintes. Estamos cômodos e em cômodas afetivas. Opção? Aprender a decidir com menos egoísmo, afinal bem-estar é a conjunção do ser humano sendo ser humano entre seres humanos. Aprendamos... Claudia Nunes

95 Na sala de casa, a noite chegou e ela não sentiu. Na parede o quadro do pai e ela ali, horas a fio, pensando nele. O corpo doía, mas ela negava quaisquer estímulos de mudança: ela queria morrer. Ela não tinha coragem de se aceitar: estava fora do padrão e seus sentimentos estavam confusos. Não conseguir parar de olhar: ‘pai cadê vc?’. Embora a vida tenha continuado, o vazio era seu melhor parceiro. Sem exemplos, tudo era uma luta inglória, porém sua necessidade era sem trégua. Seu pai, naquele quadro, era uma energia estranha: bonita, simples, espalhada, mas confusa. Ela não tinha mais nada. Seu universo se fechara em muros porque se recusava a ser outra senão uma grande representação de si. De frente para o pai, revelava-se: não tinha mais espontaneidade e leveza. O que fazer? Imitar? Criar? Ignorar? “Angela, vamos embora, o museu vai fechar, precisamos fechar...” Claudia Nunes

96 Numa grande loja de departamentos, Suelen atravessava os corredores livremente. Tinha prazer em fazer pilhas e limpar o chão. Era grata. A vida oferecera para ela muitas oportunidades e ela se negou a crescer. Ai de repente, teve encarar: estava sozinha. Era grata. Respirava a doce alegria de ser útil e dava muito valor a isso. Num instante, uma pilha de caixas de leite desapareceu. O vácuo a enlouqueceu. Sua natureza foi perturbada. E ela saiu correndo gritando: ‘Valorizem-se! Amem-se! Conquistem-se”. Anos depois souberam que ela se jogara na frente do trem e deixara um bilhete: permitam-se, afinal a qualidade de si mesmo está ligada ao valor do todo”. Claudia Nunes

97 Hoje é um grande dia. Não há outro dia para se comemorar, conquistar e superar do que NO hoje. Mas para isso: o ontem foi sentido, vivido e compreendido, mesmo com grandes erros. Em cada passo, a possibilidade dos deslizes e dos variados fins. Nada é pior do que quaisquer antecipações e a sensação de que algo poderia ter sido feito em tempo. Então, hoje é mesmo um grande dia: o dia das sensibilidades e dos respeitos pronunciados com força e fé. Há que se ter tempo para assumir tudo e vontade de acertar tudo, sem orgulhos ou recortes verbais. Somos o hoje provocado por um ontem em busca de um amanha como hoje. Lógico que o passado é importante: é nossa memória-habitus; mas hoje é grande pela paz e pelas dificuldades: crescer é a ideia. Então sempre o melhor momento é o hoje para nos esforçar, nos transformar... para melhorar sempre. Sem querer o hoje se encontrou com o ontem é fez um dia bom ter uma noite nebulosa e cheia de ‘senões’. O único jeito foi a exposição e o esclarecimento objetivos. Hoje é bem simples: como só temos o controle do agora, importante é tentar algo diferente sem os desperdícios da timidez, do acanhamento ou das impressões. Sem essas futilidades, o hoje pode inaugurar um amanha mais amadurecido e confiante. Assim espero. Amém. BOA NOITE! Claudia Nunes

98 Era uma linda bailarina. Na ponta dos pés vislumbrava o mundo e sorria com felicidade. Anos de trabalho e, agora, o show. Em expectativa, não vi um pequeno alfinete de roupa na quina de sua bancada de maquiagem. No fundo o sorriso irônico de sua companheira de quarto. Picada, esvaziou-se... Claudia Nunes

99 Da mesa de um bar de subúrbio, observo um par. Mesa grande, amigos rindo e um par. Olhos que se traduzem e que se querem no meio de um enorme barulho de risos e brincadeiras. Eu olho com calma. Interessante como os brilhos são diferentes: o par é diferente. Gestos de carinho, mas energias dispersas. Mesmo com mãos dadas, os sentimentos da relação sugerem outros envolvimentos. Há um ‘mau olhado’; há algum impedimento; há falta de beijo e abraço. No contexto dos corpos, sentimentos negativos fluem aos poucos: eis a surpresa. Há emoções escondidas e o par disfarça. O cheiro do amor construído engana: eles estão se perdendo. A presença de um interesse descolore a força dos amigos: eles não se querem mais. Sinto arrepios, tenho vontade de falar, mas silencio. Estou diante de uma admiração invertida e com pena. Que pena! Ao acordar, leio nos jornais: mulher mata namorado por envenenamento porque ele lhe pediu um tempo para estudar. Claudia Nunes


100 Da vida nada se leva mesmo. Deitamos o corpo e dormimos o sono do eterno. E assim somos recontados pelos outros. Devemos ter cuidado então com aqueles que nutrem sentimentos destrutivos ou emoções tóxicas: essa ponta de lança é incrivelmente fatal. Sem notar, Alicia adoeceu. Vivia irritada, rabugenta e agressiva. Sentia que a vida a deixara de lado aguardando sucessos e nunca mais voltara. Juventude, casamento, família e profissão foram surgindo, mas havia um poder maior: a crescente negatividade. Sem explicação, trilhava o caminho da estupidez, loucura e ignorância. Ela sabia. Ela não mentia para si. Porém ela não tinha força para mudar. Ali estava ela, doente, vibrando em fluidos errados ou distorcidos e em imensa vulnerabilidade. Doente, deitara e, de repente, pairou no ar, suspensa por medos, incertezas e infelicidades. O mundo era enorme e ela não tinha como se proteger: cumpria sua missão e se aproximava da luz. Com muito esforço, Alicia se debatia e gritava; se debatia e gritava. Com grande simplicidade, o medico disse: ‘ela está em coma; já não podemos fazer mais nada’. Com intensa agonia: ela lutava, gritava, urrava em cada piscar de olhos... Imensidão desconhecida e cheirosa... Escureceu... Claudia Nunes

MICROCONTOS 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90

81 Na aurora boreal, as luzes se conectavam aos ventos tornando as imagens translucidas e emocionantes. Por anos, essas luzes atraíram o olhar de um casal que estava jantando neste momento. Na mesma hora, ambos se davam as mãos e ultrapassavam o tempo sentindo os movimentos. Filhos e netos sabiam que aquele momento era sagrado, só deles. Olhavam aquilo sem entender. Os movimentos ficaram rarefeitos; as visitas diminuíram e o casal sentiu a chegada de outra transformação: sentados foram evaporando tranquilamente e sem o susto das perdas. “Boa noite, amor...’ Claudia Nunes

82 Seus olhos se abriram intensamente: como assim? Sempre confiara e agora essa dor. Decepção e frustração são siamesas: agiam de comum acordo e doíam em todo o corpo. Inacreditável reconhecer que fora ignorada. Lamentável compreender que todos os gestos e conversas nunca comoveram ninguém. Não recebera consideração. A sensação era de descarte. Diante dos seus olhos apenas a vontade de desistir. Ela desanimou e parou de se empenhar. Na vida, o aprender é cheio de dores e nem adianta ficar alerta: vai doer mesmo! Ela desanimou, amarrou o cabelo, limpou a casa e partiu para nunca mais voltar: não precisavam mais dela. Ela só precisava dela mesma... Claudia Nunes

83 Estava a ponto de desistir de tudo o que conquistara. Tantos fracassos não eram mais possíveis aguentar. Desistir sempre fora sua marca pessoal: temia o fracasso, mas ele sempre vinha. Ele não sabia mais o que fazer. A vida era ingrata e ele não demonstrava nenhum apreço pelo outro. Seus fracassos eram seus mesmos; e o outro era mais um a irritá-lo com suas alegrias inúteis. Não iria se empenhar mais. Não queria fazer de outro jeito. Fé e confiança eram as maiores balelas da humanidade: ninguém pensara nele. Não havia vitoria na vida da vida dele. Sem os sapatos, sem dinheiro, sem compaixão, aceitou a esmola e dormiu para sempre ao relento das tristezas ignorantes... Claudia Nunes

84 Todos os obstáculos não serviram para Célia aprender: o buraco estava imenso e ela seria presa. Muitos anos dando atenção aos marginais e agora seu nome estava na lama. Da janela, os gritos, os pedidos, as exigências: o mundo não a queria mais. Seu olhar atravessava conhecidos, amigos, confortos e seguranças, mas o habito era mais forte: amava a certeza, o poder e a loucura das noites de dinheiro e risadas sorrateiras e ilegais. No chão, bebidas, cigarros e camisinhas: ela não cabia mais naquilo, em si ou no espaço dos comuns companheiros, havia um redemoinho que a sugava todos os dias. Gozos e vazios plenos. Ao sair da janela, deu com o buraco da fechadura: único contorno vazio sem expectativas e aberto a todas as possibilidades. Tremeu e salvou-se... Claudia Nunes

85 “O que fazer sem obstáculos?” No escritório, Lucas vira um corpo cair e bater no chão da calçada em frente. Seu olhar acompanhou aquela trajetória até o fim sem se mover. Seu corpo e coração estremeceram: diante da vida com morte, sua vida perdeu o sentido e a alma; e ele se perguntou: ‘O que fazer sem obstáculos?’ Há uma dívida com as pessoas que enlouquecem e ‘vão ao vento perdendo definitivamente o assento’. Nós as ignoramos e nos surpreendemos porque, em solidão, elas vão perdendo energias e descartando os obstáculos e seus limites. Sem obstáculo, não se conquista, não se cresce, não se aprende, não se equilibram emocionalmente: são sombras de um mundo desatento. “O que fazer sem obstáculos?”: viver com assepsia de cores e sons; sonhos e fantasias. Lucas estava morto. Ele e o corpo se ‘olhavam’ e se entendiam: sem realização, sem capacidade, sem metas, eles tinham um único infortúnio: estavam vivos em morte. Ele e o corpo eram iguais. “O que fazer sem obstáculos?” O corpo caiu. Lucas foi ao banho. O corpo abriu. Lucas tinha corpo fechado. “O que fazer sem obstáculos?” Perfumar-se e Inventar-se... Claudia Nunes

86 Ela precisava acreditar nela. Seus relacionamentos não vingavam. Mas ela precisava da confiança das tentativas. Ela precisa do jogo das tensões afetivas. Ela precisava do redemoinho das imaginações irreais das fantasias do sexo. Em seu banho, ela lembrava: acreditar é uma decisão própria e forte. Não havia situações ruins, havia situações mal pensadas e de pouca sensibilidade. O movimento fora reiniciado: quando ele bateu a porta, ela sabia que seu guarda-roupa seria remexido. Mas ela precisava de mais: mais presença, mais toque, mais carinho, mais fortaleza e, talvez, só talvez, mais parceria de mãos unidas. No banho, a vida escorria e ela não tinha mais o que melhorar: tudo passava nessa vida e ela precisava aceitar! Depois da toalha e da secagem, sua melhor decisão: blefar, disfarçar e partir. A piscina do prédio estava lotada de novos arrepios. Claudia Nunes

87 Depois de muitos anos, Marília se aposentou. Depois de um dia inteiro de acertos financeiros, a aposentadoria. ‘Que maravilha!” – pensava ela. Menos hábitos, menos tensões, menos obrigações; mais animação, mais viagens e mais leituras. Casa arrumada, banho tomado, primeiras ações: nada. Internada, os remédios para depressão são fariam efeitos horas depois; enquanto isso, detalhava o teto branco. A camisa de força doía muito. Claudia Nunes

88 Linda sorria para o mundo. Nada rompia sua ligação positiva com o mundo. Sempre animada, tinha a atitude perfeita àqueles a quem apontamos como ‘realizáveis’. Todos os dias ela sentia que a vida era muito mais importante do que as apreensões, as indecisões e os estresses. Ela optou pelo hábito: o mundo é isso, então vamos surfa-lo com alegria. Ao virar uma calçada, chutou uma lata, que acertou uma porta, que atingiu uma lâmpada, que espalhou cacos, que cegaram a criança, que enraiveceu um pai, que a chutou no ventre, que a acertou na cabeça, que a atingiu com uma faca, que lhe ‘cegaram’ a vida. Cores ritmadas da vida... Claudia Nunes

89 De novo, a luz esqueceu de brilhar em sua vida. Tem gente assim: i-luminada. Embora se empenhe, nada acontece, nada anda, tudo se apresenta com dor, muita dor. São os desanimados e acuados, ainda que ótimos sorrisos. Sentado em uma biblioteca da cidade, Samuel estava em alerta: mudar de novo. De novo, à luz da realidade, seu estado de espírito estava nas profundezas da dor das decisões erradas. Tanto conhecimento e seus passos não o tiravam do caminho da angustia. De novo, os mergulhos no desconhecido para tentar viver. Ao seu lado, escutou baixinho: ‘os espíritos nos acompanham...; vibrações negativas são frutos de nossos pensamentos...; cuidado com a autoobsessão...; não há culpado...; não permita bloqueios de energia...’ Não havia ninguém na biblioteca, apenas o murmúrio dos livros se ajeitando nas estantes e aquelas vozes. Susto. Tremor. Loucura. Ao tentar se levantar foi atingido por um livro: ‘Jung na veia’, autor desconhecido. Claudia Nunes


90 Ele não sabia o que fazer. A confusão tinha sido demais. Muitas palavras e gestos, e agora um silencio das amizades. Com as mãos no rosto, no chão do banheiro, ele chorava intensamente: os ruídos das palavras cortara o cristal dos afetos e agora ele se perdera. Em cada lágrima, os sons, os sentidos, os arrepios de um momento de desequilíbrio. Nada na vida acontece em vão. Não existe perda de tempo. Caminhos errados podem ser refeitos. Mas por onde começar? Seu corpo tremia demais: de quem fora a culpa? Da memória. Da linguagem. Das experiências. Do não-dito. Agora a incapacidade. ‘Toc, toc, toc... Ei você, não vai sair do banheiro?’ Sem explicações, ele sai e decide: felicidade é um risco de todos os dias, vou comprar os presentes de Natal... Claudia Nunes

NATIVOS e IMIGRANTES em convergência

Para que a evolução humana siga acontecendo, linguagem, criatividade, comunicação e as diferentes inter-relações ganham novas características e performances em cada momento histórico. Dos períodos mais antigos à contemporaneidade, a permissão para produção contínua de possibilidades comunicativas e criativas foi enriquecida com variadas tecnologias. Do gesto, passando pelo papel, ao computador e à Internet preservamos culturas e sociedades, além de múltiplos instrumentos, responsáveis pela gestão, mediação e transformação da realidade.
Juntos se desenvolvem o patrimônio cultural e a memória humana. Dentro de redes associativas e novas (e outras) representações, as gerações se sucedem criando condições de perenidade de proposições, artefatos, narrativas essenciais à sua reflexão após seu tempo de realização / ação. E no seio do contexto social, estas gerações convivem e convergem informação e saberes.
Contemporaneamente, a situação não é outra. Quando se mapeia o capital teórico atual, muitas discussões se revelam e articulam em duplos: modernidade e pós-modernidade; certezas e incertezas nas formas de conhecer; paradigma cartesiano e outro mais holístico; ensino linear e hipertextual; convivência analógica e digital; convívio da oralidade e da escrita; dentre outras. Estas discussões envolvem análises econômicas, sociais, políticas, filosóficas etc. que, no bojo deste estudo, refletem um conflito de gerações cujas perspectivas, olhares, pensamentos foram criados em sinergia com tempos socioculturais ímpares.
Marc Prensky (2001)[1] analisa as divergências entre gerações dentro de conceitos como ‘nativos e imigrantes digitais’. O primeiro termo é identificado com aqueles que cresceram com a rede. Já o segundo termo refere-se aqueles que ‘chegaram mais tarde’ às tecnologias de informação e comunicação (TICs).
Marc Prensky (2001) adota o conceito de nativos digitais para se referir à geração de indivíduos que cresceu e cresce com a evolução da Web e da tecnologia em geral. Os nativos digitais convivem diariamente com computadores, videogames, música digital, celulares de última geração etc. Não se preocupam com a leitura do manual de instruções e poucos recorrem a técnicos especializados, ou seja, atrevem-se a descobrir por si o funcionamento da tecnologia que têm entre as mãos. Têm uma habilidade para usar as tecnologias virtuais e uma característica: a tecnofilia (sentem atração por tudo que for associado às novas tecnologias).
Os nativos digitais adoram fazer várias coisas ao mesmo tempo: são multitarefa por que acessam e se comunicam por diferentes canais simultaneamente, apesar de preferirem formatos gráficos de texto. Suas ações são hipertextuais, não mais apenas lineares. Suas decisões são imediatas. Muito do seu ‘psicologismo’ está ‘linkado’ com o uso que fazem das ferramentas digitais. E conceitos como espaço, tempo, identidade, memória dentre outros, pertencem mais a todo ambiente high-tech no qual cresceram do que a uma sequência linear de assimilações (e reflexões) cotidianas de valores, conceitos, regras e comportamentos.
Em suas atividades multitarefas, o olhar é o sentido mais usado, senão o mais desenvolvido. No tempo de imersão tecnológica, há uma necessidade de abrir frentes, desbravar o terreno virtual, o quanto for possível. De um lado constroem viagens a espaços inimagináveis e adquirem um grande conjunto de informações; mas, de outro lado, quando a ideia é a construção do conhecimento, há certa dificuldade e mínima produtividade, há certa redução dos níveis de atenção e concentração, além de adquirir uma atitude volúvel quanto aos assuntos acessados. Ou seja, há a necessidade da escola, da socialização escolar, dos desafios do ensino, das indicações do professor.
Os ‘nativos’ são apenas mais predispostos a utilizar tecnologia na aprendizagem e a realizar atividades de investigação oferecidas pela escola e dentro dos processos educacionais. E segundo Monteiro (2009)[2], estão sendo estudados como um fenômeno que está causando impactos em diferentes setores da sociedade e representam 50% da população ativa (pessoas de até 25 anos), mas em 2020, com o crescimento demográfico, serão 80% da população.
Por conseguinte, em entrevista para o site super Rede Boa Vontade de Rádio (2009)[3], o consultor da Faustini, Inovação e Tecnologia (FIT), Volney Faustini afirma que “os nativos digitais ‘têm plasticidade cerebral diferente’ justamente constituída pela rotina de acessos, imersões e interações no ambiente digital, principalmente relacionada aos games.”
Ao conceito de nativos digitais, Prensky (2001) contrapõe o de imigrantes digitais, isto é, os indivíduos que não tendo nascido no mundo digital, em determinada altura se sentiram atraídos e mostraram interesse pelas ferramentas digitais. Os imigrantes digitais terão sempre de se adaptar ao ambiente e acrescentar novas aprendizagens às anteriormente conseguidas, situação contrária à dos nativos digitais cuja evolução tecnológica está integrada ao seu desenvolvimento psicossocial.
Para exemplificar, Prensky (2001) menciona o sotaque dos imigrantes digitais. Um imigrante digital sente por vezes a necessidade de imprimir um documento de texto que pretende editar ou telefona a alguém para avisar do envio de um email. O nativo digital não o faz, edita os seus documentos no próprio processador de texto. São pequenos aspectos que determinam a perspectiva que cada um tem da tecnologia: um nativo abraça-a, um imigrante adapta-a e, por mais que a utilize, haverá sempre um ligeiro sotaque na sua língua.
No panorama contemporâneo, os imigrantes digitais estão num processo de migração estimulado pela influência das novas tecnologias no cotidiano. Dessa migração e adaptações, a convergência não se dá sem conflitos. Estes conflitos que vão além das diferenças de objetos que formam a memória e a identidade de cada um, são conflitos vinculados à velocidade com as quais os indivíduos em geral lidam com as informações e às formas de apropriação dos meios digitais.
Dos meios ‘analógicos’ comuns à geração anterior, os nativos digitais só conhecem todos quase sempre de ‘ouvir falar’ ou por fotos, ou seja, muitos deles nunca chegaram a usar. Seus meios e formas de interação são outros e estão promovendo o redimensionamento destes mesmos meios e formas. Do analógico ao digital, muitas diferenças.
Segundo Volney Faustini (2009 apud MONTEIRO, 2009) “é possível um imigrante digital conviver em harmonia com a nova geração, mas este nunca vai perder o ‘sotaque’”. Mas o que seria ‘sotaque’? “O nativo fala a linguagem digital com naturalidade e pertinência. Ele sabe inclusive ler na tela do computador. Já o imigrante não tem a mesma desenvoltura, a mesma fluência. Não é à toa que este ainda imprime e-mails para ler”. (FAUSTINI, 2009 apud MONTEIRO, 2009). Ambos convivem bem, mas sempre haverá diferenças.
Imigrantes digitais são nativos analógicos. Nada impossibilita sua transição para o ‘digital’ quando se encantam pelas possibilidades da tecnologia digital, mesmo sendo linear e seqüencial. De novo, a questão do tempo. Mesmo encantado, faz uma coisa de cada vez. Precisa de tempo para reflexão, de adaptação e de adequação.
Em seu blog na página do site TERRA, Silvio Meira (2009)[4] afirma que “a questão não é de idade ou de percepção, e sim de entender [e acompanhar] a mudança de cenário”. A tecnologia é rápida demais e o problema é ‘correr na frente’: “a cada 18 meses dobra a capacidade de processamento dos micros; a cada 12 meses, a de armazenamento; já a velocidade de transmissão de dados dobra a cada nove meses, enquanto o preço de tudo permanece o mesmo” (MEIRA, 2009).
Diante disso, propor desafios, criar estratégias, reconfigurar saberes adquiridos, remexer no ‘baú de ossos’ da cognição, agir em proximidade, afetar a atenção, minimizar indisciplinas, demanda o uso diferenciado de todos os recursos disponíveis no contexto educacional ou não como estímulos sedutores à autoformação e interformação pessoal. Sem isso não há como agenciar a curiosidade, a criatividade, a atenção, a emoção e, principalmente, o comprometimento a uma transformação atitudinal aprendentes.
Segundo Spyer (2007), toda participação dependerá da motivação / estímulos que podem levar os aprendentes a acreditar e participar do projeto. Mas para isso, em resumo, é preciso: (...) reciprocidade (uma pessoa fornece informações relevante para um grupo na expectativa de que será recompensada recebendo ajuda e informações úteis ao futuro), [...] prestígio (para ser respeitado e reconhecido dentro de um determinado grupo, um indivíduo pode oferecer informações de qualidade, fartura de detalhes técnicos nas respostas, apresentar disposição para ajudar os outros e redação elegante), [...] incentivo social (o vínculo a um determinado grupo leva pessoas a oferecerem voluntariamente ajuda e informações), [...] e incentivo moral (o prazer associado à prática de boas ações estimula pessoas a doarem seu tempo e esforço). (SPYER, 2007, p.36).

Profª Ma Claudia Nunes

Referencias:
PRENSKY, Marc. Digital Natives. Digital Immigrants. On the Horizon (MCB University Press, vol. 09, nº 05) October, 2001. Disponível em: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/file.php/2470/Digital_NativesDigital_Immigrants.pdf. Acesso em: 20 março 2009.
SPYER, Juliano. Conectado: o que a internet fez com você e o que você pode fazer com ela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.






[1] PRENSKY, Marc. Digital Natives. Digital Immigrants. On the Horizon (MCB University Press, vol. 09, nº 05) October, 2001. Disponível em: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/file.php/2470/Digital_NativesDigital_Immigrants.pdf. Acesso em: 20 março 2009
[2] MONTEIRO, Elias. As diferenças entre nativos e imigrantes digitais. Caderno Digital,
jornal O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/tecnologia/mat/2009/05/18/as-diferencas-entre-nativos-imigrantes-digitais-755911443.asp Acesso em: 18 maio 2009.
[3] FAUSTINI, Volney. Entrevista cedida ao site Super Rede Boa Vontade de Rádio, em 05 de junho de 2009. Disponível em: http://radio.boavontade.com/sp/inc/interno.php?cm=77248&ci=1&cs=10. Acesso em 20 julho 2009.
[4] MEIRA, Silvio. Dia a dia, bit a bit. Robôs [3]: campeões do mundo? De futebol? Artigo publicado no Blog na página do provedor TERRA em 29 julho 2009. Disponível em: http://smeira.blog.terra.com.br/tag/limites. Acesso em: 01/08/09

GAMIFICAÇÃO e Adolescentes: outra psicopedagogia

Mesmo inconscientemente, a humanidade, de maneira linear ou aos saltos, vem evoluindo através das experiências e vivências do jogo e dos mecanismos do jogo com e sem amarras sociais e emocionais, sempre visando sobrevivência e conhecimento. Esta também é a tônica da curiosidade em que, quando algo chama a atenção, cria-se um desejo / vontade de ver e saber apesar de. É o momento do ‘a-prender’, do viver ‘sem prisões’ incutidas nos comportamentos à revelia pelo ‘outro-no-mundo’ (alteridade). É a possibilidade de simular determinadas repressões e circunstâncias com pequenas seguranças.
Nesta perspectiva, nada revela tão bem a humanidade quanto os jogos que joga. E a maneira de operar gamificada reconhece isso ao agir, em princípio, sem uma estruturação perceptível, estimulando a espontaneidade, mas organizada por dentro de objetivos ‘macros’ claros e reais reconhecidos na intencionalidade de quem a aplica: professores precisam ter objetividade nas ações e clareza em seus princípios pedagógicos. Daí o desenvolvimento do sujeito, a qualidade nas relações e o favorecimento das formas de aprender, ainda que haja a percepção e a experiência do entretenimento em seus momentos iniciais.
Segundo o livro Gamification, Inc. (2013), dentre as principais categorias de jogos existentes, é possível citar três: os analógicos, os digitais e os pervasivos (jogos que mexem com as emoções; se infiltram na mente; penetrante). Veja a tabela resumida abaixo:

CATEGORIAS
CARACTERÍSTICAS
ANALÓGICOS
Clássicos jogos de tabuleiro (xadrez, gamão, damas etc.); banco imobiliário, Jogo da vida, WAR ou Detetive; jogos de mesa como pega-varetas e jogos de RPG; jogos que envolvam cartas como pôquer, UNO e jogos de cartas colecionáveis como Pokémon; jogos de dados, como de Craps; jogos de caneta e papel como palavras cruzadas, jogo da velha, ‘adedanha’, ‘zerinho-ou-um’; jogos de campos ou quadras, como basquete e o futebol; dinâmicas de grupo e jogos de treinamento. (p.25-26)
DIGITAIS
Crescente nas três últimas décadas. Surge com os consoles de videogame. Fenômeno de impulsão e expansão do advento tecnológico. Múltiplas plataformas e formatos para diferentes perfis. Crescimento internet. Popularização das redes sociais. Jogos do facebook, por exemplo, em formato de aplicativos. Aumento dos smartphones. (p.26-27)
PERVASIVOS
Intenso envolvimento físico com outra pessoa, ou um objeto ou dentro de um lugar específico. Experiência de transcendência. Quebra das amarras emocionais. Forte jogo com o imaginário. Oportunidade de mudar caminhos neuronais e a funcionalidade dos sistemas cerebrais. Consoles como o Kinect e Oculus. ‘Abandono da poltrona e suar a camisa’. Jogos de dança, de raquete, com tacos virtuais.
Quadro resumido a partir de VIANNA Ysmar; VIANNA, Maurício; MEDINA, Bruno; TANAKA, Samara. Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos. 2013, p.24-27.

A viabilização do prazer no processo de gamificação com ou sem jogos tangíveis é algo importante para a intervenção psicopedagógica. Ela oferece transformações nas formas de sentir, agir e fazer; disponibiliza o ser no mundo com mais facilidade; e se elabora pelas interatividades, design, recompensa, pequenas vitórias dentre outros sucessos subjetivos a que os docentes estiverem dispostos e de acordo com as singularidades disponíveis, neste caso, os adolescentes.
Entre adolescentes, no século XXI, há a certa obsessão pela imersão nos games, principalmente, os digitais / virtuais. Há o aumento das oscilações de humor e dos comportamentos de riscos: seu intenso envolvimento com os ambientes gamificados reconfigura as formas de ver O mundo e de SE ver no mundo. Por outro lado, há também uma perda gradativa da força do circuito de alerta. Há uma metamorfose intensa dos circuitos cerebrais e da atividade dos neurônios espelho (os da imitação). Mas é importante entender que, para cada faixa etária relacionada à criança, ao pré-adolescente, ao adolescente e ao adulto, houve uma ‘forja’ diferente à transformação cerebral. Vamos entender...
Da adolescência à vida adulta, tropeços nas três dimensões humanas (cognitiva, emocional e motora) são naturais e tem valor de experiência, principalmente, à formação das particulares resiliências. Tropeços são formas de adaptação aos ambientes ou às pessoas a que imergem (acessam) cotidianamente formando suas memórias de procedimento e de longa duração. Mas da adolescência à vida adulta, os aprendentes ‘sofrem’ picos de mudanças (a questão hormonal tem primazia nas alterações comportamentais), inclusive com o aumento (e diminuição) das conexões entre diferentes partes do cérebro. E há diversos descontroles emocionais e, em alguns casos, perda do foco para aprender (atenção).
Em jogo impulsividades, ansiedades, sentimentos intensos, muitas facilidades / liberdades, tudo com filtros racionais mínimos porque o córtex pré-frontal (área ligada á avaliação dos riscos) ainda está em processo de amadurecimento. Há então fortes transformações cerebrais impulsionadas com o acesso e o uso ininterrupto dos games. Há o surgimento de comportamentos típicos e, por isso, é importante o olhar psicopedagógico mais apurado em torno, principalmente, das dificuldades ou do acontecimento dos erros / falhas do processo.
Do cerebelo ao córtex pré-frontal, passando pelos centros da linguagem e sinapses sensórias ligadas às emoções, ao desenvolvimento do pensamento complexo e à tomada de decisões, o ‘adolescer’ humano é referencia às mais diversas desestruturações e reestruturação do sistema nervoso. Difícil ter equilíbrio emocional, consistência perceptiva e organização sensorial. É um momento de crise e de muitos riscos.
Neste momento da vida, ao incorporar a avaliação psicopedagógica gamificada diante de algumas dificuldades de aprendizagem ou não, em função das diferenças do ‘adolescer’, tem-se maior oportunidade de se compreender o próprio ‘adolescer’ com sua busca por novidades, vivência de fortes emoções e, às vezes, inconscientemente, a presença de um desejo absurdo de adaptação social rápida. Em respeito a isso, a mecânica dos jogos, por princípio, invade o corpo com sensações prazerosas (recompensa) e pode anunciar memórias emocionais insuspeitas.
A gamificação pode ser uma surpresa à rotina escolar dos adolescentes e por isso pode afetar várias áreas do cérebro e estimular a vontade de aprender, junto a grande vontade de SER... de se MOSTRAR... de se COLOCAR no processo educacional de maneira quase deliberada: fala-se da chamada ‘recompensa’.
Em neurociência, essa ‘recompensa’ prazerosa altera as quantidades de dopamina; e em psicopedagogia, essa ‘recompensa’ revela o ‘currículo oculto’ do aprendente a ser trabalhado, em sua potencialidade, de forma a (re)promover o aprendente ao coletivo. Jogar favorece a neuroplasticidade, a mudança de comportamento físico, maior reflexão sobre os outros, outras maneiras de se colocar em sala e no mundo: e adolescente adora APARECER positivamente.
            Quando se gamifica as atividades educativas junto aos adolescentes, há ativação intensa das imaginações por simulação, por experimentação. Curiosos, os adolescentes entendem a experiência, primeiro como brincadeira, mas depois, quando o processo imersivo se instaura, a brincadeira ‘vira’ coisa séria, significativa e prazerosa. Tal e qual a descoberta do corpo e das formas de relação interpessoal, as atividades gamificadas influenciam o crescimento e a mudança emocional.
Algumas possibilidades de vivenciar ações psicopedagógicas gamificadas são:
ð  Sugerir envolvimento colaborativo;
ð  Sugerir formas de se encontrar informações;
ð  Estimular emoções ‘sem querer’;
ð  Estimular pequenas atitudes diferentes;
ð  Introduzir outros focos sobre a realidade;
ð  Aumentar os níveis de responsabilidade cognitiva;
ð  Estimular criatividade nos procedimentos;
ð  Proporcionar feedbacks contínuos;
ð  Introduzir limitações no processo;
ð  Convocar mudanças nas etapas;
ð  Eliminar e customizar padrões de pensamento;
ð  Desafiar com jogos reconhecidos;
ð  Apresentar limites e regras possíveis.

Diante disso apenas um conselho: quando a brincadeira vira coisa séria entre adolescente, a presença da competição é inata, então cuidado: as palavras para a educação no século XXI são INOVAÇÃO, INTERAÇÃO e COLABORAÇÃO.

Profª Ma Claudia Nunes


Referências:
VIANNA Ysmar; VIANNA, Maurício; MEDINA, Bruno; TANAKA, Samara. Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos. Rio de janeiro: MJV Press, 2013. http://www.mjv.com.br. Acessado em 20/12/2013.

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...