terça-feira, 22 de setembro de 2015

MICROCONTOS 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90

81 Na aurora boreal, as luzes se conectavam aos ventos tornando as imagens translucidas e emocionantes. Por anos, essas luzes atraíram o olhar de um casal que estava jantando neste momento. Na mesma hora, ambos se davam as mãos e ultrapassavam o tempo sentindo os movimentos. Filhos e netos sabiam que aquele momento era sagrado, só deles. Olhavam aquilo sem entender. Os movimentos ficaram rarefeitos; as visitas diminuíram e o casal sentiu a chegada de outra transformação: sentados foram evaporando tranquilamente e sem o susto das perdas. “Boa noite, amor...’ Claudia Nunes

82 Seus olhos se abriram intensamente: como assim? Sempre confiara e agora essa dor. Decepção e frustração são siamesas: agiam de comum acordo e doíam em todo o corpo. Inacreditável reconhecer que fora ignorada. Lamentável compreender que todos os gestos e conversas nunca comoveram ninguém. Não recebera consideração. A sensação era de descarte. Diante dos seus olhos apenas a vontade de desistir. Ela desanimou e parou de se empenhar. Na vida, o aprender é cheio de dores e nem adianta ficar alerta: vai doer mesmo! Ela desanimou, amarrou o cabelo, limpou a casa e partiu para nunca mais voltar: não precisavam mais dela. Ela só precisava dela mesma... Claudia Nunes

83 Estava a ponto de desistir de tudo o que conquistara. Tantos fracassos não eram mais possíveis aguentar. Desistir sempre fora sua marca pessoal: temia o fracasso, mas ele sempre vinha. Ele não sabia mais o que fazer. A vida era ingrata e ele não demonstrava nenhum apreço pelo outro. Seus fracassos eram seus mesmos; e o outro era mais um a irritá-lo com suas alegrias inúteis. Não iria se empenhar mais. Não queria fazer de outro jeito. Fé e confiança eram as maiores balelas da humanidade: ninguém pensara nele. Não havia vitoria na vida da vida dele. Sem os sapatos, sem dinheiro, sem compaixão, aceitou a esmola e dormiu para sempre ao relento das tristezas ignorantes... Claudia Nunes

84 Todos os obstáculos não serviram para Célia aprender: o buraco estava imenso e ela seria presa. Muitos anos dando atenção aos marginais e agora seu nome estava na lama. Da janela, os gritos, os pedidos, as exigências: o mundo não a queria mais. Seu olhar atravessava conhecidos, amigos, confortos e seguranças, mas o habito era mais forte: amava a certeza, o poder e a loucura das noites de dinheiro e risadas sorrateiras e ilegais. No chão, bebidas, cigarros e camisinhas: ela não cabia mais naquilo, em si ou no espaço dos comuns companheiros, havia um redemoinho que a sugava todos os dias. Gozos e vazios plenos. Ao sair da janela, deu com o buraco da fechadura: único contorno vazio sem expectativas e aberto a todas as possibilidades. Tremeu e salvou-se... Claudia Nunes

85 “O que fazer sem obstáculos?” No escritório, Lucas vira um corpo cair e bater no chão da calçada em frente. Seu olhar acompanhou aquela trajetória até o fim sem se mover. Seu corpo e coração estremeceram: diante da vida com morte, sua vida perdeu o sentido e a alma; e ele se perguntou: ‘O que fazer sem obstáculos?’ Há uma dívida com as pessoas que enlouquecem e ‘vão ao vento perdendo definitivamente o assento’. Nós as ignoramos e nos surpreendemos porque, em solidão, elas vão perdendo energias e descartando os obstáculos e seus limites. Sem obstáculo, não se conquista, não se cresce, não se aprende, não se equilibram emocionalmente: são sombras de um mundo desatento. “O que fazer sem obstáculos?”: viver com assepsia de cores e sons; sonhos e fantasias. Lucas estava morto. Ele e o corpo se ‘olhavam’ e se entendiam: sem realização, sem capacidade, sem metas, eles tinham um único infortúnio: estavam vivos em morte. Ele e o corpo eram iguais. “O que fazer sem obstáculos?” O corpo caiu. Lucas foi ao banho. O corpo abriu. Lucas tinha corpo fechado. “O que fazer sem obstáculos?” Perfumar-se e Inventar-se... Claudia Nunes

86 Ela precisava acreditar nela. Seus relacionamentos não vingavam. Mas ela precisava da confiança das tentativas. Ela precisa do jogo das tensões afetivas. Ela precisava do redemoinho das imaginações irreais das fantasias do sexo. Em seu banho, ela lembrava: acreditar é uma decisão própria e forte. Não havia situações ruins, havia situações mal pensadas e de pouca sensibilidade. O movimento fora reiniciado: quando ele bateu a porta, ela sabia que seu guarda-roupa seria remexido. Mas ela precisava de mais: mais presença, mais toque, mais carinho, mais fortaleza e, talvez, só talvez, mais parceria de mãos unidas. No banho, a vida escorria e ela não tinha mais o que melhorar: tudo passava nessa vida e ela precisava aceitar! Depois da toalha e da secagem, sua melhor decisão: blefar, disfarçar e partir. A piscina do prédio estava lotada de novos arrepios. Claudia Nunes

87 Depois de muitos anos, Marília se aposentou. Depois de um dia inteiro de acertos financeiros, a aposentadoria. ‘Que maravilha!” – pensava ela. Menos hábitos, menos tensões, menos obrigações; mais animação, mais viagens e mais leituras. Casa arrumada, banho tomado, primeiras ações: nada. Internada, os remédios para depressão são fariam efeitos horas depois; enquanto isso, detalhava o teto branco. A camisa de força doía muito. Claudia Nunes

88 Linda sorria para o mundo. Nada rompia sua ligação positiva com o mundo. Sempre animada, tinha a atitude perfeita àqueles a quem apontamos como ‘realizáveis’. Todos os dias ela sentia que a vida era muito mais importante do que as apreensões, as indecisões e os estresses. Ela optou pelo hábito: o mundo é isso, então vamos surfa-lo com alegria. Ao virar uma calçada, chutou uma lata, que acertou uma porta, que atingiu uma lâmpada, que espalhou cacos, que cegaram a criança, que enraiveceu um pai, que a chutou no ventre, que a acertou na cabeça, que a atingiu com uma faca, que lhe ‘cegaram’ a vida. Cores ritmadas da vida... Claudia Nunes

89 De novo, a luz esqueceu de brilhar em sua vida. Tem gente assim: i-luminada. Embora se empenhe, nada acontece, nada anda, tudo se apresenta com dor, muita dor. São os desanimados e acuados, ainda que ótimos sorrisos. Sentado em uma biblioteca da cidade, Samuel estava em alerta: mudar de novo. De novo, à luz da realidade, seu estado de espírito estava nas profundezas da dor das decisões erradas. Tanto conhecimento e seus passos não o tiravam do caminho da angustia. De novo, os mergulhos no desconhecido para tentar viver. Ao seu lado, escutou baixinho: ‘os espíritos nos acompanham...; vibrações negativas são frutos de nossos pensamentos...; cuidado com a autoobsessão...; não há culpado...; não permita bloqueios de energia...’ Não havia ninguém na biblioteca, apenas o murmúrio dos livros se ajeitando nas estantes e aquelas vozes. Susto. Tremor. Loucura. Ao tentar se levantar foi atingido por um livro: ‘Jung na veia’, autor desconhecido. Claudia Nunes


90 Ele não sabia o que fazer. A confusão tinha sido demais. Muitas palavras e gestos, e agora um silencio das amizades. Com as mãos no rosto, no chão do banheiro, ele chorava intensamente: os ruídos das palavras cortara o cristal dos afetos e agora ele se perdera. Em cada lágrima, os sons, os sentidos, os arrepios de um momento de desequilíbrio. Nada na vida acontece em vão. Não existe perda de tempo. Caminhos errados podem ser refeitos. Mas por onde começar? Seu corpo tremia demais: de quem fora a culpa? Da memória. Da linguagem. Das experiências. Do não-dito. Agora a incapacidade. ‘Toc, toc, toc... Ei você, não vai sair do banheiro?’ Sem explicações, ele sai e decide: felicidade é um risco de todos os dias, vou comprar os presentes de Natal... Claudia Nunes

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