81 Na aurora boreal, as luzes se
conectavam aos ventos tornando as imagens translucidas e emocionantes. Por
anos, essas luzes atraíram o olhar de um casal que estava jantando neste
momento. Na mesma hora, ambos se davam as mãos e ultrapassavam o tempo sentindo
os movimentos. Filhos e netos sabiam que aquele momento era sagrado, só deles.
Olhavam aquilo sem entender. Os movimentos ficaram rarefeitos; as visitas
diminuíram e o casal sentiu a chegada de outra transformação: sentados foram
evaporando tranquilamente e sem o susto das perdas. “Boa noite, amor...’ Claudia Nunes
82 Seus olhos se abriram intensamente:
como assim? Sempre confiara e agora essa dor. Decepção e frustração são
siamesas: agiam de comum acordo e doíam em todo o corpo. Inacreditável
reconhecer que fora ignorada. Lamentável compreender que todos os gestos e
conversas nunca comoveram ninguém. Não recebera consideração. A sensação era de
descarte. Diante dos seus olhos apenas a vontade de desistir. Ela desanimou e
parou de se empenhar. Na vida, o aprender é cheio de dores e nem adianta ficar
alerta: vai doer mesmo! Ela desanimou, amarrou o cabelo, limpou a casa e partiu
para nunca mais voltar: não precisavam mais dela. Ela só precisava dela
mesma... Claudia Nunes
83 Estava a ponto de desistir de tudo
o que conquistara. Tantos fracassos não eram mais possíveis aguentar. Desistir
sempre fora sua marca pessoal: temia o fracasso, mas ele sempre vinha. Ele não
sabia mais o que fazer. A vida era ingrata e ele não demonstrava nenhum apreço
pelo outro. Seus fracassos eram seus mesmos; e o outro era mais um a irritá-lo
com suas alegrias inúteis. Não iria se empenhar mais. Não queria fazer de outro
jeito. Fé e confiança eram as maiores balelas da humanidade: ninguém pensara
nele. Não havia vitoria na vida da vida dele. Sem os sapatos, sem dinheiro, sem
compaixão, aceitou a esmola e dormiu para sempre ao relento das tristezas
ignorantes... Claudia Nunes
84 Todos os obstáculos não serviram
para Célia aprender: o buraco estava imenso e ela seria presa. Muitos anos
dando atenção aos marginais e agora seu nome estava na lama. Da janela, os
gritos, os pedidos, as exigências: o mundo não a queria mais. Seu olhar
atravessava conhecidos, amigos, confortos e seguranças, mas o habito era mais
forte: amava a certeza, o poder e a loucura das noites de dinheiro e risadas
sorrateiras e ilegais. No chão, bebidas, cigarros e camisinhas: ela não cabia
mais naquilo, em si ou no espaço dos comuns companheiros, havia um redemoinho
que a sugava todos os dias. Gozos e vazios plenos. Ao sair da janela, deu com o
buraco da fechadura: único contorno vazio sem expectativas e aberto a todas as
possibilidades. Tremeu e salvou-se... Claudia
Nunes
85 “O que fazer sem obstáculos?” No
escritório, Lucas vira um corpo cair e bater no chão da calçada em frente. Seu
olhar acompanhou aquela trajetória até o fim sem se mover. Seu corpo e coração
estremeceram: diante da vida com morte, sua vida perdeu o sentido e a alma; e
ele se perguntou: ‘O que fazer sem obstáculos?’ Há uma dívida com as pessoas
que enlouquecem e ‘vão ao vento perdendo definitivamente o assento’. Nós as
ignoramos e nos surpreendemos porque, em solidão, elas vão perdendo energias e
descartando os obstáculos e seus limites. Sem obstáculo, não se conquista, não
se cresce, não se aprende, não se equilibram emocionalmente: são sombras de um
mundo desatento. “O que fazer sem obstáculos?”: viver com assepsia de cores e sons;
sonhos e fantasias. Lucas estava morto. Ele e o corpo se ‘olhavam’ e se
entendiam: sem realização, sem capacidade, sem metas, eles tinham um único
infortúnio: estavam vivos em morte. Ele e o corpo eram iguais. “O que fazer sem
obstáculos?” O corpo caiu. Lucas foi ao banho. O corpo abriu. Lucas tinha corpo
fechado. “O que fazer sem obstáculos?” Perfumar-se e Inventar-se... Claudia Nunes
86 Ela precisava acreditar nela. Seus
relacionamentos não vingavam. Mas ela precisava da confiança das tentativas.
Ela precisa do jogo das tensões afetivas. Ela precisava do redemoinho das
imaginações irreais das fantasias do sexo. Em seu banho, ela lembrava:
acreditar é uma decisão própria e forte. Não havia situações ruins, havia
situações mal pensadas e de pouca sensibilidade. O movimento fora reiniciado:
quando ele bateu a porta, ela sabia que seu guarda-roupa seria remexido. Mas
ela precisava de mais: mais presença, mais toque, mais carinho, mais fortaleza
e, talvez, só talvez, mais parceria de mãos unidas. No banho, a vida escorria e
ela não tinha mais o que melhorar: tudo passava nessa vida e ela precisava
aceitar! Depois da toalha e da secagem, sua melhor decisão: blefar, disfarçar e
partir. A piscina do prédio estava lotada de novos arrepios. Claudia Nunes
87 Depois de muitos anos, Marília se
aposentou. Depois de um dia inteiro de acertos financeiros, a aposentadoria.
‘Que maravilha!” – pensava ela. Menos hábitos, menos tensões, menos obrigações;
mais animação, mais viagens e mais leituras. Casa arrumada, banho tomado,
primeiras ações: nada. Internada, os remédios para depressão são fariam efeitos
horas depois; enquanto isso, detalhava o teto branco. A camisa de força doía
muito. Claudia Nunes
88 Linda sorria para o mundo. Nada
rompia sua ligação positiva com o mundo. Sempre animada, tinha a atitude
perfeita àqueles a quem apontamos como ‘realizáveis’. Todos os dias ela sentia
que a vida era muito mais importante do que as apreensões, as indecisões e os
estresses. Ela optou pelo hábito: o mundo é isso, então vamos surfa-lo com
alegria. Ao virar uma calçada, chutou uma lata, que acertou uma porta, que
atingiu uma lâmpada, que espalhou cacos, que cegaram a criança, que enraiveceu
um pai, que a chutou no ventre, que a acertou na cabeça, que a atingiu com uma
faca, que lhe ‘cegaram’ a vida. Cores ritmadas da vida... Claudia Nunes
89 De novo, a luz esqueceu de brilhar
em sua vida. Tem gente assim: i-luminada. Embora se empenhe, nada acontece,
nada anda, tudo se apresenta com dor, muita dor. São os desanimados e acuados,
ainda que ótimos sorrisos. Sentado em uma biblioteca da cidade, Samuel estava
em alerta: mudar de novo. De novo, à luz da realidade, seu estado de espírito
estava nas profundezas da dor das decisões erradas. Tanto conhecimento e seus
passos não o tiravam do caminho da angustia. De novo, os mergulhos no
desconhecido para tentar viver. Ao seu lado, escutou baixinho: ‘os espíritos
nos acompanham...; vibrações negativas são frutos de nossos pensamentos...;
cuidado com a autoobsessão...; não há culpado...; não permita bloqueios de
energia...’ Não havia ninguém na biblioteca, apenas o murmúrio dos livros se
ajeitando nas estantes e aquelas vozes. Susto. Tremor. Loucura. Ao tentar se
levantar foi atingido por um livro: ‘Jung na veia’, autor desconhecido. Claudia Nunes
90 Ele não sabia o que fazer. A
confusão tinha sido demais. Muitas palavras e gestos, e agora um silencio das
amizades. Com as mãos no rosto, no chão do banheiro, ele chorava intensamente:
os ruídos das palavras cortara o cristal dos afetos e agora ele se perdera. Em
cada lágrima, os sons, os sentidos, os arrepios de um momento de desequilíbrio.
Nada na vida acontece em vão. Não existe perda de tempo. Caminhos errados podem
ser refeitos. Mas por onde começar? Seu corpo tremia demais: de quem fora a culpa?
Da memória. Da linguagem. Das experiências. Do não-dito. Agora a incapacidade.
‘Toc, toc, toc... Ei você, não vai sair do banheiro?’ Sem explicações, ele sai
e decide: felicidade é um risco de todos os dias, vou comprar os presentes de
Natal... Claudia Nunes
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