terça-feira, 22 de setembro de 2015

MICROCONTOS 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100

91 Da janela do seu quarto, ela entendeu: as dificuldades são as desculpas dos dependentes. Ela pensava na vida, no amanha. A lua cheia a olhava e atraia sensações desconhecidas: ela pensava em frustração. Embora soubesse que a autonomia é a representante da maturidade cuja presença precisava respeitar, frustrara-se. Fora surpreendida e frustrara-se. Silenciara por frustração. Em noite de pensamentos, frustrara-se. Que decepção consigo mesma: frustrara-se inutilmente e aprendera. Da janela sabia, era hora de outras responsabilidades: sentir, pensar e agir, afinal frustrara-se. Da janela ouviu: ‘somos o que pensamos ser’. Que nada! Frustrara-se, mas tinha potencial: iria ler outra coisa e vibrar noutra onda, de manha, depois do sol. Claudia Nunes

92 Sentada no andar de cima de sua casa, ela percebeu: estava fraca. Aos 40 anos, estava fraca de tudo. O barulho dos filhos e marido chamara sua atenção: estava sem ânimo. Ela encostou no braço da cadeira e deixou a vida passar. Por dentro e por fora, sua memória escorreu sem entraves: ela era um peixe fora d’água desde sempre. Esportes, amores, estudos, amores, vícios, amores, casamento, amores, filhos, amores, decepções, amores, alegrias, amores. Muitos amores, poucos envolvimentos. No trato com a vida, só vulnerabilidades. Sem energia, estava em questão e cansada. Energias misturadas, impaciências, doenças, solidões, tristezas. No panorama dos dias, a tinta do tinteiro tinha mais vigor que ela. Gritos lá embaixo. Gritos cada vez mais altos. Invasão do seu quarto e das suas emoções. “Preciso passar roupa...” Claudia Nunes

93 Sentada numa biblioteca, ela olhava os livros. O que fazia ali? Depois da discussão, andara por horas e chegara àquele lugar. Não gostava dali. Nunca fora ali. Mas estava ali e se sentia confortável. Sua vida fora dedicada à família. Tinha prazer nisso e nunca desistira. Nunca pensara em si, apenas prestara serviço ‘de bem’ a todos porque acreditava na possibilidade de aprimoramento e liberdade. Ela tinha foco. De um dia para o outro, o desastre: amara incondicionalmente. ‘A senhora deseja alguma coisa?”, perguntara a bibliotecária. ‘Sim. Vida. Quero vida! Quanto custa?’ Claudia Nunes

94 O mundo mudou. Estamos fugindo velozes para outro mundo sem saber qual de qualquer jeito. O desejo de viver é tanto que o jogo das relações se perdeu nas brumas nas escolhas básicas e sempre fulgazes. Não é mais possível ter tempo para iluminar as emoções e equilibrar os gestos, tla as exigências que se fazem a si e aos outros. Vive-se em fuga, com medo, em tensão e com dor. Nessa luta, no meio de muitos, solidões inimagináveis e quase indecentes. Andamos fora de foco, sem prazer e prestes a desistir dos nossos dias seguintes. Estamos cômodos e em cômodas afetivas. Opção? Aprender a decidir com menos egoísmo, afinal bem-estar é a conjunção do ser humano sendo ser humano entre seres humanos. Aprendamos... Claudia Nunes

95 Na sala de casa, a noite chegou e ela não sentiu. Na parede o quadro do pai e ela ali, horas a fio, pensando nele. O corpo doía, mas ela negava quaisquer estímulos de mudança: ela queria morrer. Ela não tinha coragem de se aceitar: estava fora do padrão e seus sentimentos estavam confusos. Não conseguir parar de olhar: ‘pai cadê vc?’. Embora a vida tenha continuado, o vazio era seu melhor parceiro. Sem exemplos, tudo era uma luta inglória, porém sua necessidade era sem trégua. Seu pai, naquele quadro, era uma energia estranha: bonita, simples, espalhada, mas confusa. Ela não tinha mais nada. Seu universo se fechara em muros porque se recusava a ser outra senão uma grande representação de si. De frente para o pai, revelava-se: não tinha mais espontaneidade e leveza. O que fazer? Imitar? Criar? Ignorar? “Angela, vamos embora, o museu vai fechar, precisamos fechar...” Claudia Nunes

96 Numa grande loja de departamentos, Suelen atravessava os corredores livremente. Tinha prazer em fazer pilhas e limpar o chão. Era grata. A vida oferecera para ela muitas oportunidades e ela se negou a crescer. Ai de repente, teve encarar: estava sozinha. Era grata. Respirava a doce alegria de ser útil e dava muito valor a isso. Num instante, uma pilha de caixas de leite desapareceu. O vácuo a enlouqueceu. Sua natureza foi perturbada. E ela saiu correndo gritando: ‘Valorizem-se! Amem-se! Conquistem-se”. Anos depois souberam que ela se jogara na frente do trem e deixara um bilhete: permitam-se, afinal a qualidade de si mesmo está ligada ao valor do todo”. Claudia Nunes

97 Hoje é um grande dia. Não há outro dia para se comemorar, conquistar e superar do que NO hoje. Mas para isso: o ontem foi sentido, vivido e compreendido, mesmo com grandes erros. Em cada passo, a possibilidade dos deslizes e dos variados fins. Nada é pior do que quaisquer antecipações e a sensação de que algo poderia ter sido feito em tempo. Então, hoje é mesmo um grande dia: o dia das sensibilidades e dos respeitos pronunciados com força e fé. Há que se ter tempo para assumir tudo e vontade de acertar tudo, sem orgulhos ou recortes verbais. Somos o hoje provocado por um ontem em busca de um amanha como hoje. Lógico que o passado é importante: é nossa memória-habitus; mas hoje é grande pela paz e pelas dificuldades: crescer é a ideia. Então sempre o melhor momento é o hoje para nos esforçar, nos transformar... para melhorar sempre. Sem querer o hoje se encontrou com o ontem é fez um dia bom ter uma noite nebulosa e cheia de ‘senões’. O único jeito foi a exposição e o esclarecimento objetivos. Hoje é bem simples: como só temos o controle do agora, importante é tentar algo diferente sem os desperdícios da timidez, do acanhamento ou das impressões. Sem essas futilidades, o hoje pode inaugurar um amanha mais amadurecido e confiante. Assim espero. Amém. BOA NOITE! Claudia Nunes

98 Era uma linda bailarina. Na ponta dos pés vislumbrava o mundo e sorria com felicidade. Anos de trabalho e, agora, o show. Em expectativa, não vi um pequeno alfinete de roupa na quina de sua bancada de maquiagem. No fundo o sorriso irônico de sua companheira de quarto. Picada, esvaziou-se... Claudia Nunes

99 Da mesa de um bar de subúrbio, observo um par. Mesa grande, amigos rindo e um par. Olhos que se traduzem e que se querem no meio de um enorme barulho de risos e brincadeiras. Eu olho com calma. Interessante como os brilhos são diferentes: o par é diferente. Gestos de carinho, mas energias dispersas. Mesmo com mãos dadas, os sentimentos da relação sugerem outros envolvimentos. Há um ‘mau olhado’; há algum impedimento; há falta de beijo e abraço. No contexto dos corpos, sentimentos negativos fluem aos poucos: eis a surpresa. Há emoções escondidas e o par disfarça. O cheiro do amor construído engana: eles estão se perdendo. A presença de um interesse descolore a força dos amigos: eles não se querem mais. Sinto arrepios, tenho vontade de falar, mas silencio. Estou diante de uma admiração invertida e com pena. Que pena! Ao acordar, leio nos jornais: mulher mata namorado por envenenamento porque ele lhe pediu um tempo para estudar. Claudia Nunes


100 Da vida nada se leva mesmo. Deitamos o corpo e dormimos o sono do eterno. E assim somos recontados pelos outros. Devemos ter cuidado então com aqueles que nutrem sentimentos destrutivos ou emoções tóxicas: essa ponta de lança é incrivelmente fatal. Sem notar, Alicia adoeceu. Vivia irritada, rabugenta e agressiva. Sentia que a vida a deixara de lado aguardando sucessos e nunca mais voltara. Juventude, casamento, família e profissão foram surgindo, mas havia um poder maior: a crescente negatividade. Sem explicação, trilhava o caminho da estupidez, loucura e ignorância. Ela sabia. Ela não mentia para si. Porém ela não tinha força para mudar. Ali estava ela, doente, vibrando em fluidos errados ou distorcidos e em imensa vulnerabilidade. Doente, deitara e, de repente, pairou no ar, suspensa por medos, incertezas e infelicidades. O mundo era enorme e ela não tinha como se proteger: cumpria sua missão e se aproximava da luz. Com muito esforço, Alicia se debatia e gritava; se debatia e gritava. Com grande simplicidade, o medico disse: ‘ela está em coma; já não podemos fazer mais nada’. Com intensa agonia: ela lutava, gritava, urrava em cada piscar de olhos... Imensidão desconhecida e cheirosa... Escureceu... Claudia Nunes

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