111 Atraso é uma expectativa. Há
tensão, angústia, ignorância. Marla nunca se atrasava. Tinha como valor, não se
atrasar. Sabia que o atraso dava complexidade às emoções e aos comportamentos:
era algo fora do normal. Atrasos não são normais e ela se irritava com a
displicência dos outros. Tudo e todos ‘andavam’ 05 ou 10 minutos atrasados e
nada se encaixava. Atrasos interrompem destinos; afetam relações; semeiam
discórdias; causam transtornos públicos; ignoram éticas e solidariedades. E ela
não se admitia assim. Hoje, num surto de felicidade, Marla fugiu do escritório
com seu exame de urina em mãos. Enfim, estava atrasada... Claudia Nunes
112 Na brisa do mar, pernas caminham
sem certezas ou dúvidas. Em cada passo, as emoções afloram e se espalham pelos
ventos como folhas secas. Como são reveladoras essas liberdades. A própria
realidade é um impulso para se viver com os outros sem pestanejar: mas com
muitos cuidados. Nossa velocidade vem construindo memórias afetivas em edições
constantes. Sabemos quem somos com outros, mas nos perdemos sozinhos. Embora
saibamos que a realidade é boa ou má diante das relações que construímos,
estamos perdendo a noção de GRATIDÃO, estamos nos desconhecendo. Duas amigas de
infância saem de lojas opostas no shopping Center. Ao se encararem, o silencio
e uma pergunta: o que nos aconteceu? Vinte anos antes nunca pensariam em se
desgarrar. Muitos planos e projetos sonhados e realizados. Mas a ingratidão
cortou esse elã afetivo para sempre. Olhos nos olhos, suas memórias doeram em
seus corações: “o que nos aconteceu?” A ingratidão, de novo, as alcançava e
impedia o tão desejado abraço forte e cheio do calor da amizade. A loja era das
duas. A loja dera enormes lucros. A loja era o símbolo da amizade e do sucesso
decidido nas adolescências. Ai o amor: uma delas amou demais e o mundo mudou.
Os vínculos foram se fragilizando: pensamentos negativos; necessidades particulares;
interesses individuais; muitas tensões; poucos diálogos. E o sentimento de
ingratidão crescendo... Sem os reconhecimentos internos, os pensamentos ‘da
hora’ impediram a ajuda simples, o tom carinhoso e o gesto sincero: esqueceram
o silencio respeitoso. Cada vez mais distantes, desconheceram a proteção, o
abraço, a fidelidade, a sinceridade, a escuta e os sonhos de meninas. Mas ali,
de pé, diante de uma multidão ignorante da energia impactante do olhar, não
conseguiram se deixar: olhos nos olhos e as mentes doloridas dos desejos e das
lembranças. Sem notarem, as lágrimas corriam vertiginosamente. Mas, no meio das
duas, ainda um terceiro humano sem a experiência da construção afetiva,
mostrava a fragilidade de quaisquer relações e das perspectivas de futuro ‘para
sempre’ forjadas na intensidade dos dias adolescentes. Só que, agora, estavam
frente a frente. De repente, a certeza óbvia: enlouqueceram e se perderam para
‘o nada’; e seus olhos desaguando enormes volumes de memórias... “Mamãe, vamos
embora!” – grita uma criança entre as pernas de uma das mulheres. Agachando-se
carinhosamente, ela pega a criança e diz: “Querida, venha conhecer a melhor
amiga da mamãe. Você tem o mesmo nome que ela”. Claudia Nunes
113 Degrau por degrau. Sem outra
opção, Lucas subia degrau por degrau. Ali ou em qualquer lugar, sua vida seguia
sem rumo. Ele se perdera em muitos voos sentimentais; e agora era degrau por
degrau. Pensava em horizontes, em paisagens, em campos verdejantes e em prédios
de departamentos; quaisquer lugares que o impedissem de recuar. Aos 42 anos,
mil e um recomeços e poucas renovações. Mas agora era a cartada final: degrau
por degrau e a esperança de outras visões do nascer do sol. Ao abrir a porta,
percebeu que ainda tinha força pra vencer aquele inesperado câncer de fígado: e
sorriu. Claudia Nunes
114 Queijos, vinhos, pipocas, pequenos
chocolates, a rua lá fora e as emoções aqui dentro: assim respirava da varanda
de casa, Linda. Depois do fim do ano, tudo era harmonia, silencio e
reorganização. Era o momento de se reconhecer e ganhar força para se projetar
mais um ano. Ainda assim um assunto a incomodava: o amor acabara. Não estava
sozinha: mas o amor acabara. Como reencontraria a felicidade? Como sorriria
novamente sem suspeitas? Esse desgaste era injusto: ela conquistara, amara,
fora grata, ajudara; mas o amor acabara. Sem ter o que fazer, começou um jogo
de paciência: o tempo passaria sem dores ou gastos. Claudia Nunes
115 Num carta de baralho, o sangue de
vida inteira. Como num passe de mágica, a vida acabou. De olhos abertos, a
evolução estava vidrada na janela do 4º andar. A vida a preparou para todas as
experiências; nunca a prepara para o vazio da falta de respiração. Ali deitada
no chão de uma calçada, o fim de uma proposta. No fim da rua, Eduardo corria.
Enfim sentia a liberdade conquistada: a faca pingava a grande mudança. Claudia Nunes
116 Um dia ela aprendeu: ela se
detestava. Muito preocupada com os olhares alheios vivia os desejos dos outros
e se perdia em atitudes perfeitas. No espelho, ela aprendera: ela não era ela.
Quando se perdera? Como retomar a si mesma? Precisava do valor, do toque, do
som e das expectativas de outros: e ela? Ela tinha medo da mudança; medo do
julgamento; medo da fala contrária; medo de não ser ‘gostada’. Gosto! Isso
mesmo! Por gosto, ela perdera o gosto. Era preto o branco. Era repetição e
cansaço. Um dia, no espelho, ela não se viu, se estranhou e entristeceu. Olhos
nos olhos, uma ideia: batom vermelho, perfume e saída pelos fundos sem ser
vista, mas com sua vida... Claudia Nunes
117 A cartomante disse: ‘largue essa
energia!’ Malu estava cega. Coisas absurdas eram normais e obstáculos eram seu
foco. A cartomante avisou: ‘faça sua escolha logo!’ Malu pesava emoções
inseguras. Pelo amor ou pela dor, era viciada em tensões e raciocínios. A
cartomante gritou: ‘pare de esquecer!’ Malu se repetia, se repetia e se
repetia. Cansada, a cartomante sacou uma lua negra e apagou os olhos de Malu.
Agora Malu lembrava: não tomara banho, precisava limpar a alma. Pagou, sorriu e
evoluiu. Claudia Nunes
118 FORA DA ARTE 1 - Suas unhas estavam horríveis! – assim começou o
dia de Amanda. Em sua cama, ela se deparou com seu maior terror: unhas
quebradas, malfeitas, roídas. Como sair assim? Olhando ao redor, ela entendeu
que seu mundo era outro: era se tornara sua arte e arte exigia glamour em tempo
integral. Ela estava deitada e dramática. Só que algo mais a incomodava: ela
mesma. Já sentada na cama, ela reconheceu as unhas e lembrou: pai sumido,
infância de fome, fuga de casa, moradas insalubres, encontros interesseiros e
de sobrevivência. E mesmo assim, aprendera a ser humana. Debaixo do chuveiro,
as unhas gritavam milhares de cenografias com as quais convivera: era cantora.
Sua voz a fizera fincar os pés no chão, na luta, no sofrimento, na resiliência
e na construção de um sorriso sincero em todos os palcos da vida. Sua dor
ficava ou lhe fugia no palco, apenas. Debaixo d’água, ela se sentia ativa e se
sabia em harmonia com a energia divina: suas memórias já reconheciam as
diferentes ‘unhas’ da vida. Na água, ela era divina, apesar das unhas, da
maquiagem, das horas de dança e da rotina. De tênis, short e camiseta, ela
enfrentou o mundo. Unhas humanas e fãs precisavam se juntar e ratificar todos
os sentidos que aprendera em vida. Ela também era comum e adorava simples
liberdades de rua. Vento, corpos, unha e ela. Seu olhar ignorava a estética e
alimentava suas emoções. Ela sentia que, de novo, podia se refletir no mundo,
apesar dos obstáculos: a unha. E os caminhos se abriram. E os corpos lhe deram
passagem. E ela foi ser gente na luz de um dia quente com a franqueza de mãos
espalmadas e felizes. Claudia Nunes
119 Moléculas vibram juntas causando
uma energia que reelabora a solidao e constrói novos formatos, corpos e
sistemas: somos constantemente a lei da atração. Sem problemas reais, ele se
transmutou sem bloqueios e alcançou a força de uma meditação. Ele esvaziou-se e
ressurgiu para outras oportunidades. Ele criou ressonâncias e reverberações. De
novo, a permissão de entrada de situações e pessoas. Depois de tudo, ele se
permitiu reaprender com menos orientações e mais emoções; afinal ele era a luz
de Zeus e de seu filho! Claudia Nunes
120 As noites são momentos das grandes
verdades. E o corpo disfarça emoções do dia. Alison sabia que não podia mais
viver das paixões. Sim! Nunca trabalhara. Desde seus 18 anos, mulheres eram
possuídas de uma imagem mental sobre ele e queriam sua perfeição corporal e
facial. Ele nunca precisara criar desejos ou sonhos: ele tinha variadas
linguagens afiadas e focadas. SER para TER e TER para SER: aprendera este lema
na infância. Alison era do mundo, mundano e das mundanas. Mas agora sabia que
tinha que parar. Havia diferenças entre o corpo físico e o corpo emocional; e
aos 38 anos, estava desnutrido de tudo. Ambos os corpos estavam decadentes.
Havia flacidez nos gestos, nos prazeres, nos encontros e naquele quarto, de
repente, observado como imundo e vazio. Aos 38 anos, Alison era um homem vazio,
apesar de cheio de memórias. Mas estas não lhe ajudavam, não lhe davam carinho,
não tinham palavras de apoio, não poderiam ser abraçadas, não o fariam crescer.
Alison era figura repetida nobaralho da vida: saiu da condição de curinga sem
notar e se embaralhou em cartas sujas pelo uso desqualificado. Sentado na beira
da cama, tinha um caderno de endereços e telefones de dar inveja; mas não
estava mais saudável ou viçoso; estava enfermo, insalubre e viciado. Ele era
viciado nele mesmo e suas paixões espelhavam essa toxina em cada beijo, suor e
sexo. O tempo passava, ele esperava e uma dor estranha doía demais. Onde ele
estava? Onde poderia encontrar-se? Em Virginia? Elisa? Sonia? Lucia? Vanda?
Amanda? Claudia? Linda? Carla? Vitoria? Thalia? Não... Ele não fora imune:
estava cheio de pedras no sapato e sem opções reais. Trrriiiiiiimmmm (toca seu
celular)... trrriiiimmmm... trrriiiimmmm. Alison desliga a TV, liga o rádio,
fecha as cortinas e assume o sono da própria noite como um gás... Claudia Nunes
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