21 Aquele índio não era da mata e
também não descera de um objeto resplandecente: não, ele surgira do absoluto
nada, para atormentar a vida de Karla, enquanto deitava. Com o tempo, ele
passou a aparecer no trabalho, a seu lado no carro, na hora das refeições, nos
livros que lia. Karla não sabia o que fazer: só ele, silencioso, a olhar. Ela,
no entanto, sentia a ameaça e não lutava para tirá-lo da idéia. Com o tempo,
passou a gostar de sua companhia. Quando já se acostumara a sentir o calor de
seu corpo, ele sumiu. Dizem que foi visto pela última vez em um espelho
quebrado. Claudia Nunes
22 Angel era todo luz: olhos, cabelo
sorriso. Mas carregava a dor como quem suporta uma penitência. Seus dias
transcorriam entre quatro paredes, desejando a paz. Quanto mais se dilacerava
em busca do equilíbrio, maior a angústia. Os amigos se foram, a família sofria.
Foi ficando só e sem saída. Cada vez falava menos. Lia jornal em seu quarto, na
companhia do fiel cão. Ou então trabalhava, para esquecer a vida. Um dia Angel
saiu para cortar o cabelo. Olhou para o infinito azul e voou. Pousou de volta,
abraçou uma flor e labaredas subiram: transformou-se em chama e encontrou a
felicidade. Claudia Nunes
23 Tinha fetiche por sapatos. O
armário contabilizava 70 pares, fora os mantidos em desuso. Nunca os jogava
fora, nem podia: lembravam momentos especiais; pelos sapatos ia recordando os
saltos, tropeços, chutes e tombos da vida. Com cada namorada mantinha um ritual
diferente: Márcia ficava deslumbrante na sandália dourada, Beth era
irresistível na bota vermelha, Jane triturava seu coração naquele salto alto
preto. Envelheceu, colecionando os sapatos, catalogados e bem cuidados pelo
engraxate contratado. Um dia morreu e foi enterrado descalço, porque o caixão
era pequeno. Claudia Nunes
24 Era louca por gatos, principalmente
filhotes. Onde passava, logo os bichanos a cercavam, enrolando-se em suas
pernas, lambendo a mão, querendo o colo. Acostumara-se a todos; no caminho para
casa ia recebendo o carinho e retribuindo o afago. Mas apaixonou-se por um,
negro, de olhos frágeis: dedicou-lhe tratamento especial, até que não mais
resistiu e levou-o para casa, cercou-o de cuidados e afeto. Naquela
quinta-feira, porém, foi diferente: à noite não mais havia o gato, a casa
estava vazia, a janela aberta. A campainha tocou e um jovem de olhar frágil a
abraçou e passou a viver a sua vida. Claudia Nunes
25 Foi numa praia deserta, em pleno
verão de 40º, que viu o urso pela primeira vez. O pêlo branco faiscava sob o sol.
Não se aproximou por medo, mas encantou-se com a beleza do animal. Desde então
sonhava constantemente com ele: viu-se perseguida, querendo correr, e acordava
sem ar. Mas gostava de sentir a pata sobre seu corpo, quente e peluda. O tempo
ajudou-a: esqueceu-se por completo. Meses se passaram e ela resolveu
definitivamente casar-se com Júlio, namorado de tantos anos. O casamento foi
alegre e a noite, numa cabana de praia, transcorreu feliz. No dia seguinte, ela
acordou com calor: Júlio sumira e um tapete de urso a abraçava, em sono sereno.
Claudia Nunes