terça-feira, 20 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 21 22 23 24 25

21 Aquele índio não era da mata e também não descera de um objeto resplandecente: não, ele surgira do absoluto nada, para atormentar a vida de Karla, enquanto deitava. Com o tempo, ele passou a aparecer no trabalho, a seu lado no carro, na hora das refeições, nos livros que lia. Karla não sabia o que fazer: só ele, silencioso, a olhar. Ela, no entanto, sentia a ameaça e não lutava para tirá-lo da idéia. Com o tempo, passou a gostar de sua companhia. Quando já se acostumara a sentir o calor de seu corpo, ele sumiu. Dizem que foi visto pela última vez em um espelho quebrado. Claudia Nunes

22 Angel era todo luz: olhos, cabelo sorriso. Mas carregava a dor como quem suporta uma penitência. Seus dias transcorriam entre quatro paredes, desejando a paz. Quanto mais se dilacerava em busca do equilíbrio, maior a angústia. Os amigos se foram, a família sofria. Foi ficando só e sem saída. Cada vez falava menos. Lia jornal em seu quarto, na companhia do fiel cão. Ou então trabalhava, para esquecer a vida. Um dia Angel saiu para cortar o cabelo. Olhou para o infinito azul e voou. Pousou de volta, abraçou uma flor e labaredas subiram: transformou-se em chama e encontrou a felicidade. Claudia Nunes

23 Tinha fetiche por sapatos. O armário contabilizava 70 pares, fora os mantidos em desuso. Nunca os jogava fora, nem podia: lembravam momentos especiais; pelos sapatos ia recordando os saltos, tropeços, chutes e tombos da vida. Com cada namorada mantinha um ritual diferente: Márcia ficava deslumbrante na sandália dourada, Beth era irresistível na bota vermelha, Jane triturava seu coração naquele salto alto preto. Envelheceu, colecionando os sapatos, catalogados e bem cuidados pelo engraxate contratado. Um dia morreu e foi enterrado descalço, porque o caixão era pequeno. Claudia Nunes

24 Era louca por gatos, principalmente filhotes. Onde passava, logo os bichanos a cercavam, enrolando-se em suas pernas, lambendo a mão, querendo o colo. Acostumara-se a todos; no caminho para casa ia recebendo o carinho e retribuindo o afago. Mas apaixonou-se por um, negro, de olhos frágeis: dedicou-lhe tratamento especial, até que não mais resistiu e levou-o para casa, cercou-o de cuidados e afeto. Naquela quinta-feira, porém, foi diferente: à noite não mais havia o gato, a casa estava vazia, a janela aberta. A campainha tocou e um jovem de olhar frágil a abraçou e passou a viver a sua vida. Claudia Nunes

25 Foi numa praia deserta, em pleno verão de 40º, que viu o urso pela primeira vez. O pêlo branco faiscava sob o sol. Não se aproximou por medo, mas encantou-se com a beleza do animal. Desde então sonhava constantemente com ele: viu-se perseguida, querendo correr, e acordava sem ar. Mas gostava de sentir a pata sobre seu corpo, quente e peluda. O tempo ajudou-a: esqueceu-se por completo. Meses se passaram e ela resolveu definitivamente casar-se com Júlio, namorado de tantos anos. O casamento foi alegre e a noite, numa cabana de praia, transcorreu feliz. No dia seguinte, ela acordou com calor: Júlio sumira e um tapete de urso a abraçava, em sono sereno. Claudia Nunes


VIVENDO e APRENDENDO a AMAR


Há uma certeza com a qual devemos conviver sempre: somos seres curiosos de nós mesmos. E principalmente, somos seres curiosos sobre nossas mentes. No processo de evolução do cérebro, principalmente do córtex pré-frontal, adquirimos aptidão para metacognição (pensar sobre o pensar) e para estabelecer conexões mentais criativas a partir de nossas experiências. Porém nem só de experiência se constrói um ser humano: devemos levar em consideração a genética, o acaso e, também, a experiência.

Nesta perspectiva, tanto o autoconhecimento, quanto a empatia, além do autocontrole e das habilidades sociais, tornam-se essenciais ao sucesso, por exemplo, profissional, e à harmonia emocional. A essa conexão, em franca expansão interna, chamamos de neuroplasticidade: toda conexão causa novas rotinas cerebrais e estabelece continuidade às necessidades adaptativas.

Em desenvolvimento interno (endógeno) e externo (exógeno), os seres humanos vivem em resposta a formatação tridimensional referida: genética, acaso e experiência. Só que, ao observamos os procedimentos dos seres humanos em sociedade, em suas interações e integrações cotidianas, percebemos que há diferenças, alias muitas diferenças, então nova formatação tridimensional deve ser levada em consideração: emoção, memória e linguagem.

A questão é sempre: como VIVER e CONVIVER apesar das perdas, traumas ou decepções? Esses dias tenho pensando nisso. E uma resposta sempre básica é: SUPERE.  Mas como? As gravidades das situações investem nos circuitos neurais, as vezes, de forma tão intensa e com tal volume, que a perda dos padrões de pensamentos e sensações é enorme. Interessante é que sempre o conjunto de experiências que formam a memória humana (conjunto hipotalâmico) ou talvez o imaginário, não dá conta de todo o processo e, arrebatado, inaugura inconscientemente, nova pessoa (personalidade): é o cérebro se defendendo se remodelando.

O cérebro e o corpo refletem defesas e, a reboque, por exemplo, eliminam os outros do arco de visão para poderem (os seres humanos atingidos), de alguma maneira, se reorganizarem e sobreviverem. Em nosso processo de conquista de ‘um lugar ao sol’ em sociedade, então, precisamos ficar cientes de que nossas mentes são flexíveis, agentes receptoras e autônomas, diante das tantas informações (estímulos) a que temos acesso e que integram nosso corpo mental, e por isso sempre estamos em exigência amigdalítica (sistema límbico), ou seja,emocional.

Somos bons e maus. Somos tímidos e extrovertidos. Somos cruéis e felizes. Somos ‘tudo ao mesmo tempo agora’. Mas não devemos aceitar, por tempos demais, os ‘pilotos automáticos’ dos comportamentos fixos (respostas habituais)’ como os hábitos, as certezas, o comum, o ‘todo mundo’, o ‘qualquer um’, os circuitos neurais cujos procedimentos acontecem dia a dia sem máculas ou diferenças. Diante do inusitado, como o cérebro busca outras formas de continuar vivo, devemos saber nos recompor sem perder mais do que devemos, ou quase tudo que somos.

Segundo Siegel (2012), se quisermos ter uma saúde mental devemos procurar assumir uma visão mental sobre nós mesmos e o outro em termos de posturas, atitudes e emoções. Não devemos brincar com expectativas e imaginários porque incorremos no erro de trilharmos o caminho das reações brutais, da ansiedade desequilibrada, dos impulsos grosseiros ou, mesmo, das tristes ironias verbais.

Muito tempo aceitando e acreditando nisso podem nos tornar prisioneiros de nós mesmos e até nos fazer repetir falas, emoções e posturas em outros ambientes e com outras pessoas, agora, inconscientemente: é a questão da naturalização do pensamento tóxico. Em sendo assim, a visão mental “nos permite ‘nomear e dominar’ as emoções que vivenciamos, em vez de sermos dominados por elas” (Siegel, 2012): essa é uma necessidade que se aprende todos os dias. Mesmo indo ao fundo do poço emocional, os seres humanos precisam abrir mão de si para se adaptar a uma nova situação. Uns podem ser ‘pentiuns’; outros, ‘lentiuns’, nesse processo; mas a transformação é necessária e saudável.

Quando amamos, por exemplo, temos a tendência a reproduzir padrões e querer incluir o outro nesse conjunto padronizado. O imaginário fortalecido por experiências anteriores estabelece focos conhecidos para investir e conquistar, sem abrir mão de nada. Difícil! Muito difícil! No processo de amadurecimento emocional, temos que abrir mão de algo, desapegar e mudar como a borboleta. Cada escolha é como um ‘bisturi’ no cérebro reformulando (e reesculpindo) a circuitaria neural. E o cérebro cresce, ganha convergência e readquire a ‘alegria de viver’. Lógico que a intensidade da paixão pode desencadear desequilíbrio sináptico e atingir a memória (sistema hipotalâmico) de forma excessivamente libertadora; isso rompe com as estruturas mentais e causam distúrbios, as vezes, controlados apenas com ajuda profissional (terapia). Mas não é a regra!

Segundo Siegel (2012), ‘a mudança nunca acontece espontaneamente ou surge automaticamente; é algo que temos que trabalhar com atenção, foco e muita prática. Para amar é preciso aptidão e aptidão adquire-se com ritmo, esforço e repetição (vivências). É importante ter habilidades sociais e socioemocionais aprimoradas o tempo todo. “Atividades mentais, como pensamentos, sensações, memórias, crenças, atitudes, esperanças, sonhos e fantasias, preenchem o nosso dia a dia” (Siegel, 2012); mas também é preciso cuidado com o que se deseja imaginariamente: “podemos ser receptivos às riquezas do cérebro e não apenas reativos a seus reflexos” (Siegel, 2012). E o amor sempre transversa, bagunça, confunde.

Quando se apaixonar e perder, dê tempo ao tempo, revisite-se, evite emoções tóxicas, não se aprisione às rotinas comportamentais negativas; promova novas conexões. De acordo com Siegel (2012), uma grande transformação começa quando olhamos a nossa mente com curiosidade e respeito em vez de medo e afastamento, ou seja, leve pensamentos e sentimentos ao nível da consciência, de maneira a permitir que se aprenda com eles, e não que seja guiado por eles.

Claudia Nunes


domingo, 11 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 16 17 18 19 20

16 Era ambicioso. Nascera pobre, mas queria aparecer na TV, freqüentar colunas sociais. Começou comprando um galpão, onde dava aulas para a criançada miserável. Cobrava cada centavo de seu espaço e tempo. Meteu-se com marginais, enquanto o dinheiro saltava. Logo conseguiu uma cadeia de colégios. Já não se lembrava da infância, no iate de luxo ou no carro importado, a não ser pelo sonho de ter um chafariz no seu jardim. Chamou o engenheiro e o projeto se fez. A inauguração foi linda, mas ele sumiu: enquanto fumava o charuto, foi-se transformando em líquido e entrou na fonte, jorrando mil cores e sons. Claudia Nunes

17 “Mulheres são dissimuladas”, pensava. “Elas fingem gozar”. Vivia atormentado, sem saber se as parceiras, com quem se relacionava, verdadeiramente tinham orgasmo. Quanto maior o tormento, mais as assediava. desdobrava-se no ato, levava as mulheres à exaustão, cobrava as dúvidas em infindáveis perguntas. Ah, o ponto G! Teria tocado? Até que Luiz encontrou Dora. Apaixonou-se, quis casar. Mas antes precisava da certeza. Foram para um motel e a noite seria dos anjos e demônios: champagne, massagem, piscina. Envolveu a amada, cobriu-a de beijos, despiu-a, penetrou e morreu de enfarte. Claudia Nunes

18 Olhava aquela mulher no palco e a desejava loucamente. Bebia cada palavra por ela proferida, guardava pobres pedaços de jornal onde seu nome brilhava, sonhava fantasias arrebatadoras. “Deusa”, pensava ele, “não é para mortais”. Como sombra a seguia, cada passo, itinerante pelas casas de teatro, na expectativa de um dia ser notado. Esqueceu-se de si em função dela. Foi numa segunda-feira, quando o teatro não funcionava: saiu para jantar e lá estava ela, em verde e esperança. Aproximou-se, sentou-se, conversavam. Hoje, ator consagrado, ainda não entende o tiro que a matou no restaurante. Claudia Nunes

19 Nascera com a vocação para o desenho. Menino ainda, fazia figuras na areia, enquanto a mãe inchava de orgulho. Os cadernos de escola quase não tinham apontamentos: eram caricaturas, formas livres, arabescos. Com o tempo, comprou um computador e perdia horas entre quadrados e círculos, montando trabalhos. Entrava em todos os concursos, até que ganhou o prêmio: três meses nos EUA, com tudo pago. Embarcou, com a esperança na mala e o patrocínio no bolso. Os controladores de vôo não entendem como o avião desapareceu, sem deixar vestígios, no Triângulo das Bermudas. Claudia Nunes


20 Os telefonemas eram constantes. A voz desconhecida a alegrava, abalava seu sono, alimentava fantasias. Logo descobriu o nome e endereço. Bateu à porta, vieram a mulher e os dois filhos: o marido, aviador, viajara. Ficou desnorteada. Mas ele voltou, continuou a telefonar, falava em amor. Acostumaram-se às manhãs de quarta-feira, na estação rodoviária. Um dia ele insistiu: queria comemorar os cinco anos de relacionamento. Seguiram pela estrada e pegaram o Concorde. Hoje vivem felizes, em Paris. Claudia Nunes

MICROCONTOS 12 13 14 15

12 Sempre quis ver discos voadores: sentia-se atraída pelo mistério, acreditava em outras vidas. Sua música favorita era “London, London”, que cantava enquanto trabalhava, esquecida do espaço. Todos sabiam de sua mania em Brasília, onde vários já tinham mantido contado por telepatia, visto a luz curva e os pontos brilhantes. Insistiu muito com a amiga, para que a levassem ao local. A emoção transbordava e o coração pulava, depois de três horas no cerrado, caminhando em busca do sonho. Mal teve tempo de gritar, quando se viu estuprada por dez bandidos, fugidos da penitenciária próxima. Claudia Nunes

13 Desde pequeno José é apegado à mãe. O pai, sempre fora, é ignorado. Amigos e amigas suspeitam de sua sexualidade. Por quê? Não é possível, o afeto, o carinho, a delicadeza, a sensibilidade num homem? Para ser homem é preciso mostrar-se rude e truculento? Profissionalmente, o mundo era diferente. De lá para cá, como vendedor, não vivia o ambiente de trabalho e tinha muitas oportunidades de se experimentar. Por amor, amizade ou sexo, ele era possível. Mas vez por outra a suspeita: seria gay? Um dia, um gracejo mais ofensivo, uma briga violenta. Desacordado na calçada se vê num espelho imenso e cheio de facetas. Em cada uma um homem estranho. Muita dor na aparência. O espelho treme e ele não quer sua revelação, não quer este mundo em seu corpo. De repente, cada um dos homens sorri e o afaga. – Não! - ele grita – Não! Ainda tateando no ar, ele procura identidade, personalidade, máscaras. Sem poder se mover daquele chão frio e molhado, José se transveste de palhaço e se deixa escorrer sorrindo pelas veias do coração materno. Claudia Nunes

14 Sandra era pessoa comum. Família classe média, mãe viúva, dois irmãos. Não pudera estudar, contentava-se em ser secretária. Ganhava para a vidinha simples, sem luxo. Não casara, nem queria mudar a rotina; não se imaginava rodeada de filhos, panelas. Naquela tarde Sandra saiu do trabalho e foi ao mercado, antes de seguir para casa: latas, plásticos, prateleiras e prateleiras. Suava, entre a lista de compras e a carteira de dinheiro, empurrando o carrinho cheio. Filas gigantescas à frente, ela aguardava pacientemente em procissão; nem reparou a caixa de ovos a se abrir: de dentro saiu um cavalo alado, que a levou para a nuvem. Horas depois começou a chover. Claudia Nunes


15 Entre os amigos o apelido era ‘Gorila’, mas se chamava Amâncio. Adorava as lutas, não perdia uma: boxe, karatê, judô, sumô, vale-tudo. Na academia malhava horas, socava sacos, dava golpes no ar. A mulher, frágil, aceitava, resignada: macho devia ser forte, briguento. À noite cuidava dos cortes e feridas trazidas da rua. A grande oportunidade veio no jornal: um torneio para amadores, com perspectiva de profissionalização. Os combates diários foram sendo vencidos. Na véspera da final, Laerte ainda tentava explicar à delegada a razão pela qual a mulher estava no hospital, fazendo exame de corpo delito, entre hematomas e dentes quebrados. Claudia Nunes

sábado, 10 de janeiro de 2015

MICROCONTOS 8 9 10 11

08 Desde criança ela tinha fascínio pelo Egito: era o que mais estudava em História. Esmerava-se em copiar desenhos, usava roupas iguais às de Ísis, colecionava escaravelhos. Assim foi envelhecendo, imaginando-se serpente, desenvolvendo um caráter esfíngico em seu corpo piramidal. De repente começou a juntar dinheiro. Ninguém entendia para quê: tinha casa boa, vida estável. Aposentadoria? Doença? Queria ficar rica? Ela continuou juntando, até que foi à cidade e comprou a passagem para o Egito. Meio século depois, os arqueólogos não conseguiram explicar o esqueleto daquela mulher, deitado na tumba do faraó, a seu lado. Claudia Nunes

09 O sonho de consumo era esquiar. Via-se em roupas quentes, a descer montanhas, rasgando a brancura virginal da neve. Em sono voava pelos Alpes, que nunca visitara, em piruetas sinuosas. Ganhou de aniversário a passagem para Aspen e para lá se mandou, com o sorriso marcial de quem cumpre a missão. Alugou a roupa, experimentou cuidadosamente o esqui, tomou um golpe de conhaque e comprou a passagem no teleférico, para o ponto mais alto da montanha. No dia seguinte ainda estava abraçada a uma árvore, tremendo, quando o helicóptero de resgate chegou. Claudia Nunes

10 Regina, desde a infância, tinha muita imaginação. Na escola ou no playground do prédio sempre inventava as brincadeiras. Gostava, mesmo, era de ficar criando histórias na cabeça, mentalizando as personagens e seus destinos. De vez em quanto via TV, porém mudava o final dos filmes se não concordava com os roteiros. Cresceu, formou-se, tornou-se jornalista. Compensava a miséria diária das ruas com a velha mania de criar situações. Não escrevia, a não ser no jornal. Numa noite, uma brisa entrou pela sala e trouxe Marion. Os dois rolaram loucamente na dança da paixão. No dia seguinte, o pano vermelho que secava à janela os levou para Pensilvânia. Claudia Nunes


11 Adorava Lilian. Tinha sido sua única namorada. Apaixonara-se desde o primeiro momento, ao vê-la voltando da praia: pele morena, olhos azuis e longos cabelos loiros. Usou a experiência da idade para cortejá-la. A família pediu tempo e, quando Lilian completou 18 anos, começaram a mandar os convites; um mês depois embarcavam para a lua-de-mel no Caribe. A vida continuou mel: cada vez mais seduzido, fazia as vontades da mulher. Comprava flores e bombons diariamente. Dez anos depois pediu divórcio, pois não suportava mais viver com aquela mulher deformada pelos 130 quilos. Claudia Nunes

MICROCONTOS 4 5 6 7

04 Do bar, do vinho, da comida, vejo pessoas. Ninguém se fala. Passam para lá e para cá focados em seus problemas, passos, vida. De preferência nem se tocam. Mas há um ponto de ônibus. Todos juntos. Demora, demora, demora. Há uma esgrima de olhares na tentativa de se manter a distancia, mas mantendo o reconhecimento de esguelha. Roupa, cheiro, jeito do cabelo, celular, bolsa, sobrancelha, agitação, tudo serve para passar o tempo. Quem é? Quem será? Conheço? Já vi? Várias interrogações que cortam o fluxo das preocupações individuais e passam o tempo. Não estamos sozinhos, estamos no mundo, convivemos. ‘Oi? Tá muito tempo aqui? Demora né?’ O ônibus chega. Cada um no seu banco. Para onde vou mesmo? O sol se põe... Claudia Nunes

05 Vida de adulto é dura... Nosso imaginário alcança o infinito e lá somos capazes de tudo. Temos a intuição que o mundo além de nosso, precisa de nós. Então nos esforçamos. Cada momento conquistado ou objetivo ultrapassado enlaça nossos desejos e certezas. Só que a vida ensina, limita, poda. De repente, num espelho, somos outra gente. Sem perceber, nossas escolhas criaram outra figura: um adulto. Os impulsos precisam ser freados. Tudo tem conseqüência. Como adulto, o raciocínio cria o medo. Tantos passos dados até ali não podem ser ‘reandados’: é frente, frente, frente. Ou há soluções ou há esquecimento. O tempo não nos deixa mais ignorar. Mas sempre há encruzilhadas e nelas a dúvida cruel: seguimos? voltamos? direita? esquerda? Neste momento só nós. Cérebro e coração, únicos parceiros do segredo: não sabemos. Da pele para fora, um olhar imponente de um ínfimo intervalo. Da pele para dentro, uma confusão inominável. Corpo travado por aparência, veias tremulas por emoção. Passamos a vida nos conectando e nos misturando com tudo e todos por medo, mas na hora de uma decisão, solidão total. Igual ao momento de um seqüestro ou em que temos uma arma apontada para nós, o sangue corre tão forte ao redor do corpo que as lembranças surgem em flashes dolorosos. O que fazer? Tantos sonhos, tantos passos, tantas decepções, tantos silêncios e nada parece servir. Será que vivemos vidas descartáveis? Uma voz surge: Use sua inteligência! Aproveite sua experiência! Seja criativo! E nada... Uma vida de aprendizagem e fazer o que? Uma luz: esticar os braços... Claudia Nunes

06 Nos bate-papos nas esquinas ou nos bares, todo mundo tem história de confrontos. Todo mundo já passou por uma situação ímpar. Para quem não se destaca profissionalmente, estas situações dão status / engrandecem / fazem a diferença. Mas passamos por tantas coisas assim na vida? Será que tudo deve ter um efeito tão forte em si e nas pessoas? Pode ser. Como diz o poeta, ‘a vida é bonita, é bonita, é bonita’. O ‘eu’ é sempre tudo de bom: forte, corajoso, salvador. Medo, perturbações e sensações negativas não têm morada neste corpo. Precisa-se de energias positivas. Com os amigos, as marcas deste ser livre é permanente. Mas é preciso ter cuidado: a vida cobra a verdade. Ao contrário da falácia carregada de heroísmo, ‘na real’ temos perdas, covardias, silêncios, impulsos, rompimentos. E aí? Não somos super-heróis, precisamos de afeto, carinho, ‘colo’ e não vamos escapar das cobranças. E aí? Faz-se o que? Fluir... Jogar a fronha suja de lágrimas na máquina de lavar, reorganizar o armário, jogar fora milhares de papéis, arrumar só um pouco a casa e voltar àquela esquina ou bar. Fato? Regeneração! Claudia Nunes


07 Argos acordou cedo. Telefone o tirou das armaduras e da realeza. Dor. Muita dor. Sem movimento, só dor. O pensamento o corrompia. Seu coração acelerava sem ordem. Será que morreria? Aprendera a relaxar com a ioga, mas e as contas? E os filhos? E seu amor? Morreria? Precisava de um salto, um toque, um abraço. Nas brumas e no breu, a sirene da ambulância cobria seu corpo de vida. Claudia Nunes

domingo, 4 de janeiro de 2015

AUTOPAPOS: um sistema de recompensa


Realmente o mundo mudou. Mudou em tudo. E uma das mudanças que venho observando é o aumento das pessoas que revelam: eu falo sozinho/a. Sem nenhum senão, esta revelação tem feito parte dos papos entre amigos e vem tornando os diálogos mais profundos e esclarecedores. Realmente saber que o outro fala sozinho tem entrado noutro patamar: não é loucura, é forma de extravasamento; não é doença, é maneira de criar o pensamento estratégico; não é esquizofrenia, é jeito de desenvolver equilíbrio emocional. Eu falo sozinha...
No mundo acelerado do século XXI, os autopapos são conversas solitárias e solidárias, e aceleram o processo cognitivo e emocional. Os cérebros ganham qualidade em seus sistemas de recompensa, ou seja, é possível pensar que os autopapos fortalecem a capacidade humana de se motivar, emocionar, agir e explorar a realidade. Autopapos como fonte de dopamina no corpo é uma leitura interessante. Como a recompensa faz parte da programação cerebral, autopapos investem em estruturas orgânicas e mentais. Resultado: menos reatividades inúteis e que complicam a continuidade das relações; mais presença de espírito e espírito esportivo diante de situações / emoções ruins.
O ‘falar sozinho’ (autopapo) é um momento da imaginação e da aprendizagem. É pensar oralmente e uma tentativa de entender o outro, e mesmo a necessidade de permanecer junto ao outro. É um apartamento dos barulhos e murmúrios do cotidiano para se compreender e assim saber se comportar com determinadas tranquilidades. Pensem: o ‘falar sozinho’ é um lado da sabedoria necessária à convivência no século XXI.
Com poucas dúvidas, acredito que ‘falar sozinho’ é um tipo de comportamento cada vez mais comum e, particularmente, não vejo nada de irracional nisso. Há benefícios ao cérebro como a melhora da qualidade da plasticidade cerebral (e sua neurogenese); da formação da bainha de mielina (necessária à condução organizada das informações no cérebro); e dos processos cognitivos importantes às formas de aprender e de conviver em sociedade. Quando ‘falamos sozinhos’ trazemos à memória variadas informações e as articulamos com as futuras situações ou pessoas com as quais temos que lidar todos os dias. É uma forma de preparação de postura, de olhar, de escuta, de temperamentos e, principalmente, de diferenças, sem que percamos a espontaneidade.
Neste processo, habilidades emocionais contidas na memória criam sinapses mais fortalecidas e experimenta-se maior compreensão de si e de mundo. Há crescente capacidade de memorização, concentração e atenção. A linguagem não verbal e física, diante de determinadas situações, tem mais harmonia e ganham mais maturidade. As lembranças acontecem com mais clareza e facilidade. Não deixamos de ser quem somos, lógico, mas é possível, em muito momentos do autopapo, compreender quem é o outro e criar pontos maiores de respeito e escuta. E assim o reflexo da personalidade acontece com um pouco mais de condescendência e perseverança.
O ‘falar sozinho’ é ter cuidado consigo mesmo para ter cuidado com o outro. O autopapo é uma forma de exercitar o cérebro: memória e funções executivas. Há reprodução de gestos e atos em solidão pensando justamente no outro e em suas reações, afinal o autopapo se dá pensando no outro. Louco? Não! Reforma do pensamento e liberação total do que se é e pensa sem a presença do outro. Sem o outro fisicamente, habilidades sociais são desnecessárias e, em muitos casos, é isto que acalma e acerta nossos desentendimentos emocionais para novos enfrentamentos.
O autopapo pode incentivar “o cérebro a manter o foco para realizar as tarefas e resolver os problemas; melhorar a capacidade de pensar, resolver as coisas de forma mais rápida e também de relembrar com maior facilidade”; reativar informações, principalmente, visuais e sensórias; facilitar o processo de aprendizagem; e estimular a percepção e as formas de se expor entre pessoas. É uma alternativa para que as pessoas que se sentem, por exemplo, esquecidas se mostrem e ganhem mais força emocional quando suas presenças são necessárias. Se longos e duradouros, os autopapos se prestam à trazer mais harmonia à vivência da situações, Ou não?
O autopapo acontece dentro do carro em viagem relativamente longa ou não; quando se pratica exercício físico fora da academia; quando, depois de um dia cansativo de trabalho, deitamos e não conseguimos dormir; quando nos damos ao luxo de um banho demorado; quando decidimos arrumar a casa ou nossos armários; quando lemos algo que nos desafia a paradas constantes para pensar; quando relaxamos em lugares aprazíveis por tempo indeterminado; etc. Enfim, é uma troca de ideias com seu eu, às vezes, reprimido. É também forma de sublimação, um dos mecanismos de defesa mais positivos de que se tem noticia.
Mas atenção aos exageros: diante do excesso e da percepção de que, por exemplo, seus amigos estão lhe evitando ou já comentando sobre esta sua mania, um passatempo ou um hobby é imprescindível. Nunca estamos sós. Temos bipessoalidade, pelo menos. Então o autopapo sou eu e o outro eu cujo espelhamento está no outro fora-eu. Trabalhamos com imagens internas modificadas pela assimilação e interação das imagens / informações externas. Precisamos desses autopapos. Precisamos desses autodiálogos para ter e procurar sentidos em nossa participação na vida.
Como o cérebro pensa com palavras, sentimentos causam confusões, daí a necessidade de autopapos em que, sem a interferência da fala e do olhar do outro, organizamos essas confusões (discussões internas) com calma e do nosso jeito. Um bom autopapo, por fim, demonstra saúde mental, ou, como diriam os orientais, é uma experiência de iluminação e esta nos energiza para entender e respeitar o outro e suas diferenças.
Ah, o autopapo não magoa ninguém.

Claudia Nunes

REFERÊNCIA

GRATIDÃO do SER e de SER

Nunca a felicidade foi tão procurada como hoje em dia. Só que felicidade não se encontra a granel por ai. É preciso ter atenção a determinados poderes, como humildade, sensibilidade, simplicidade e escuta. Estamos vivos e, por exemplo, nunca agradecemos. Como querer tanto a felicidade sem se dizer ‘muito obrigado’? Hoje estou pensando nas palavras ‘gratidão’ e ‘ingratidão’.
Somos gratos por interesse. Somos gratos, mas perdemos o foco do que/ de quem realmente precisamos. Somos gratos, mas desaprendemos a respeitar o outro. Somos gratos de que, então? Existe um ditado que diz que as pessoas ensinam aquilo que mais precisam aprender. Então, de pronto, sejamos gratos por nós mesmos.
Somos nossas memórias sensíveis e as revelamos quando somos gratos ou ingratos. Sim, também somos ingratos vez por outra. Quando queremos ser melhores do que somos, somos gratos; mas quando agimos e nos comportamos por interesse particular, somos ingratos e somente conosco. Essa é a balança na qual nós, humanos, convivemos todos os dias.
Em harmonia e equilíbrio, somos capazes de benesses inimagináveis ao outro; em desequilíbrio e confusão, somos sorrateiros e intransigentes. Nós temos lado ‘branco’ e lado ‘preto’; os problemas são as sombras, as omissões, os orgulhos e os disfarces emocionais. Logo ‘fazer o bem sem o olhar a quem’ ainda é o lema básico e real. Não criemos expectativas: elas são nossas, nunca do outro.
Tanto a gratidão quanto a ingratidão estão em todos os nossos momentos e gestos, basta reconhecer que somos humanos e falhos: nunca ‘se’ duvide! Ambos os sentimentos tem a participação e permissão do outro, daí é preciso entender e mudar: somos quem somos, nunca o que acreditamos que somos, por nossas grandes gratidões e pequenas ingratidões. Vamos ter atenção às nossas emoções positivas e desentoxicantes: felicidade ou infelicidade dependem disso e esses sentimentos afluem e confluem sem inibições de acordo com nosso poder de gratidão, principalmente, quando isto é desnecessário ou irrelevante.
Nós temos começos de vida imperfeitos e/ou difíceis cujo atrelamento condiz com nossas atitudes com os outros e estas nos revelam como seres emocionais, pensantes e, as vezes, com pequenas indignidades. Mas é preciso mudar! E mudar é investimento na potencialidade de ser sendo apesar do outro. Não há beleza na expectativa excessiva; há beleza no crescimento pessoal com mínimos julgamentos. Difícil? Com certeza! Os obstáculos são enormes, o que dá maior valor às práticas perseverantes.
Nós precisamos ver o bem de bem com a vida sem medos, orgulhos, raivas e amarguras, afinal temos um cérebro que trabalha para sobreviver e perseverar: o sistema de recompensa. É preciso levantarmo-nos quantas vezes forem necessárias, sem pensamentos punitivos ou vingativos. E de tudo temos que entender e trabalhar com o que não deu certo ou com a desconsideração: um passo de cada vez sem descansar. Neste processo eliminamos o que não funciona e incorporamos o que deu certo gradativamente.
O tempo não pára, logo não podemos parar diante das incongruências ou da sensação da falta de amor ao próximo do outro. Erros são possibilidades. Dores são amadurecimentos. Silêncios são crescimentos. Quando pensarmos em gratidão, cuidado com a necessidade/desejo de subserviência eterna, isto dirige nossa atenção a outros lugares ou níveis nas quais não temos nenhum controle: as formas de ver o mundo do outro ou os sentimentos dos outros. Se fizermos o bem e ponto: não há faltas e nem resmungos. Se fizermos o bem e aguardamos: sofremos antecipadamente. Aqui o pensamento estratégico é fundamental: é deixar o outro ser o que é sem senões ou querências que só nos dizem respeito.
Gratidão é uma atitude e uma prática sem desníveis: mesmo se as coisas vão mal, de novo, ‘fazer o bem sem olhar a quem’. Só que precisamos aprender que, diante do outro, as emoções e as atitudes serão outras. Agimos para o bem e acreditamos no bem como/para recompensa. Isso é um problema! Só trabalhamos com nossas emoções, não somos o outro. E a sensação da ingratidão gera descontentamento crônico. Nesse caso, o eterno retorno é falho e não adianta reclamar. Reclamar para a vida é inútil porque ela seguirá apesar de.
A leitura sobre a ingratidão causa sombra na mente e no corpo. É muito cortisol sem sentido. É ‘um contentamento descontente’. Para quê? Todos os atos são nossos, são formas de amadurecimento pessoal, são perspectivas de crescimento particular. Devemos ficar alegres porque o bem e a gratidão não são interesseiros ou interessados; eles participam das nossas melhores decisões na/da vida. O livre arbítrio nos dá essa possibilidade: consciente ou inconscientemente, decidimos pela gratidão ou ingratidão de acordo com nossas crenças e memórias; e, claro, de acordo com o momento; afinal SOBREVIVER é preciso! E isso ninguém domina / controla. Se não for assim passamos a vida murmurando emoções tóxicas e perdendo a simplicidade das relações livres. Adoecemos. Ignoramos. Perdemos.
Gratidão é estilo de vida. Ingratidão é momento de infertilidade. Somos os dois em tempo integral, apenas decidimos expor um ou outro em determinados momentos. O que pode nos diferenciar? O tempo disposto para ser grato ou ingrato. A cena da ingratidão torna o abraço dos dias um prejuízo constante. Então cuidado: a decisão da independência, da superação, da mudança, da opinião do outro podem não ser ingratidões reais; elas dependem das posturas, das visões de mundo, das memórias e da linguagem; e merecem respeito, ainda que nos sintamos chateados ou tristes.
Sem dar conta das experiências pelas quais o outro passou, diante de atos estranhos às nossas vivências, geramos incríveis insatisfações e anos de reclamações. Nós nos envolvemos com o hábito de nos sentir mal e isso é péssimo para tudo ao redor e ao futuro de outras relações. Atenção! Cuidado! Isso é ingratidão consigo mesmo e é uma dor insuportável. Um segredo: essa dor ninguém saberá ou reconhecerá; ela é/será só nossa! Cuidado!
Um conselho, vamos pensar o seguinte: a gratidão não está no outro, ela está em nós mesmos. Pense em sua família; no seu trabalho; em sua casa; em seus filhos / amigos; na beleza de andar / falar / ver; em sua saúde; em seus afetos; em seus sonhos / desejos. Isso merece gratidão e permanecerá em sua lista de coisas ‘gratas’ para sempre. 
Queremos gratidão? 
Pensemos nesta listinha e criemos uma energia positiva constante ao nosso redor.

Confiar é preciso!!!!

Claudia Nunes

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