Por Claudia
Nunes
Na rua, Lucas
não tinha rumo: ele desamigou-se. Depois de tanto tempo, ele desamigou-se. Ele
não sabia apontar quando e o porquê, mas ele desamigou-se e o vazio era grande.
E o pior: ele não podia falar para ninguém. O que iriam pensar? Ele era um
homem: ‘Perdeu? Deixa pra lá!’ Só que ele desamigou-se e não sabia o que
aconteceu e em que chão dar o primeiro passo. Ninguém o avisou sobre isso.
Nunca escutou história sobre ‘desamigamento’, então o que fazer? Sem estratégia
ou memória, o jeito era dobrar a esquina e procurar outras vidas ou outros
dias: a desarrumação era total.
Diante de um
bar, ele entra: ‘Oi, traz uma cerveja...’ - ele precisava de algum sentido.
Mudanças de foco e de atenção não acontecem em um estalar de dedos. Algo já
vinha acontecendo e, com a sensação de vazio e algumas cervejas, as cenas foram
saindo da memória. Ele devia ter previsto ou ao menos se preparado: os sinais
foram bem claros... Por onde começar?
Desamigar-se não
dói, incomoda, afinal estão destruídos confortos, hábitos, orgulhos,
comodidades, todas as ligações ‘de verdade’. E, no mundo atual, a desconexão é
projeto de invisibilidade certa. Só que não há o que fazer: é cair, levantar e
viver outras rotinas. A sonoridade do tempo agora é um ‘rock in roll’ pesado em
que ele precisa reencontrar harmonias e/ou sentidos em notas musicais mais ‘new
age’.
Lucas observa a rua
e a rua o observa e afirma: ‘eu avisei... não havia espontaneidade...
simplicidade... verdade... desamigue-se logo... você precisa viver’. Espontaneidade...
Que coisa séria... A espontaneidade é fruto da confiança no/do outro; é a
possibilidade positiva de uma pessoa SER quem é sem senões ou mesmo intenções.
Se isso está em tensão ou no mínimo, o animal ser vivo humano se reprime, observa
e vai embora mesmo... Lucas soube então: a senha do desamigar-se está na perda
da demonstração simples do amigar-se em diferentes linguagens / ambientes. E os
defeitos, antes encarados como simples particularidades, ‘ganham’ força e
verdade. ‘Como não vi antes?’ – ele pensa. Um amigo sempre lhe disse:
‘amigar-se acontece quando conseguimos conviver com os defeitos do outro. Se
assim não for, não há cola, futuro, tempo passando, confiança, nada’. Lucas
entende isso agora: ele não viu, mas sentiu e ignorou...
Ele resiste
ainda, afinal sua memória era muito amiga, mas entende tudo agora. Nunca foi
cego, apenas aumentou o grau das qualidades e seguiu em frente. Valia / Valeu a
pena! Na rua, no bar, com cervejas, o corpo foi se tranquilizando e a mente se
coordenando: desamigar-se começa com a perda da espontaneidade porque, junto,
se perde a tolerância. Não importa mais ter cuidados para falar ou agir =
sinceridade grosseira.
Com menos
sensibilidade, eles foram duros entre si, se machucaram demais e falaram e não
SE falaram. E o tempo passando foi cruel... Ao observar as mesas do bar, Lucas
vê diversos temperos e pensou: os temperos da tolerância são a empatia e o
respeito; e desamigar-se é trocar ambos pela frieza, pelo descaso, pela
impaciencia e outras emoções bem picantes: as chateações jorraram em ondas
ininterruptas. É... Lucas foi ‘desamigado’ por / pela intolerância. O ‘vamos
tentar’ foi substituído por ‘não adianta’ ou ‘deixa pra lá’.
Porém Lucas vai
se vendo melhor. Sem nenhuma superioridade ou envolvimento com vozes alheias,
ele vai se vendo melhor. Há carinho, afeição, bons momentos nas lembranças, mas
a magia (no) mundo real perdeu a força. Ele sabe que não é o primeiro. Ele sabe
que amigos vão e vem. Ele sabe que todos podem desamigar-se por causa do
desencanto e consequentes pelas distrações (outras atrações positivas ou
negativas; interessantes ou interesseiras). Mas ele vai se vendo melhor. E as horas
passam.
Quando a noite
cai, Lucas está no mesmo lugar e diante do mesmo copo, só que agora refeito e
calmo. Ele movimenta os ombros num ‘tanto faz’ ou ‘fazer o que?’, paga a conta
e volta para casa. Lá existe uma agenda de trabalhos e amigos ainda encantados.
Dentro da colcha de retalhos que reflete sua vida, desamigar-se trouxe muitos
incômodos, mas também abriu espaços para outros ‘amigar-se’ surpreendentes e
valorosos. E Lucas vai se permitir!
‘Desamigar-se’ é o desígnio da experiência do
‘permitir-se’.
Claudia Nunes
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