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Em
casa virada pra janelas as estrelas lhe fazem pensar: é minha natureza. Alguns
rumores tentam lhe distrair, mas as estrelas brilham demais e não a deixam
sentir diferente: ela precisa dos benefícios de uma noite insone. Sim,
benefícios. E as estrelas sabem disso. São suas companheiras em tempos difíceis
e decisivos. Elas lhe dão saúde e distância, pontos da vida em comum que foram
perdidos pela necessidade de conviver e reagir. Ela tem essa natureza. Saúde e
distancia. E as estrelas a entendem. As estrelas e o vinho. Ah, o vinho. Amante
das noites conflituosas, o vinho lhe deixava em paz. Paz de ser, de sentir e de
viver. Sem estrelas e vinhos, ela destoava, tinha crises, não refletia, não se
desafiava. Seu interesse maior era sempre viver a experiência de experimentar o
que quer que fosse, como agora. O amanha teria seus cheiros e ela suas capas
emocionais. Ao acordar, teria que escolher roupa e perfil mental. Ao acordar,
suas escolhas teriam motivos e conflitos. E ela precisava muito das estrelas e
do vinho. Da janela do quarto, ela buscava o caminho do prazer e da satisfação.
Algo semelhante à fonte de juventude; à reorganização alimentar e mental; a
menos radicais livres; a mais amor e emoção; aos momentos de relaxamento
juvenil; à reconexão com o chão e o céu simples; à diversão e às loucuras das
amizades barulhentas. Da janela do seu quarto, ela juntava luz e paz para viver
um grande amor. E ia dormindo o sono dos justos... Claudia Nunes
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‘Sem querer’... ‘Sem querer’ é
uma expressão interessante; nós assumimos a ideia de que, em alguns momentos,
perdemos a consciência e reagimos a uma emoção com toda a nossa memória, as
vezes, mais primitiva ‘sem querer’.
‘Sem querer’ nos assusta porque temos
a certeza de que fizemos algo errado e magoamos, então o tempo das desculpas é
único, mesmo ‘sem querer’.
‘Sem querer’ disfarçamos atitudes
porque temos interesses ou desejos, nem sempre positivos, até ‘sem querer’.
‘Sem querer’ incomodamos, iludimos,
escondemos, amparamos, esclarecemos, mentimos, apesar de ‘sem querer’.
‘Sem querer’ vivemos nossas vidas
tentando entender a magia de respirar, de amar, de sentir, de olhar, de
aprender sem solidariedade e carinho, mas ‘sem querer’.
É ‘sem querer’ que podemos tecer a
emoção das almas gêmeas, amigos ou amantes.
Numa esquina, Ely se viu no meio de um
tiroteio e não sabia mais para onde ir.
Assim era sua vida: perdido por
caminhos sem luz e assustado com as próprias obrigações.
Mas ali era um tiroteio; ali era ‘sem
querer’.
Ali muitas almas fugiam sem obstáculos
e pessoas desabavam sem perspectiva: ‘sem querer’.
Num tiroteio, ‘sem querer’, o mundo
muda como num toque em um castelo de cartas; como uma repentina ventania que
demarca algo sem sentido ‘sem querer’.
Ely não sabia mais nada: o si e o
outro não tinham corpo.
Ele sabia que o chão era seu destino
‘sem querer’.
A vida não tinha mais uma plataforma e
nem multiformas, além de um chão duro e molhado.
O barulho era ensurdecedor e o chão do
cimento impossível de ignorar.
Rosto, corpo, vida, tudo no chão ‘sem
querer’.
Quando o silêncio chegou, Ely só soube
ver seu reflexo na água ‘sem querer’.
Nada é impossível quando o ‘sem
querer’ surge; logo sua opção era juntar seus fragmentos de vida, de amores, de
desejos; e ir ao encontro de outro destino mais adolescente.
‘Sem querer’, seu tempo de validade
pesou...
‘Sem querer’ se arrumou, se limpou e
andou...
‘Sem querer’...
‘Sem que’...
‘Sem’... Claudia
Nunes
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