sábado, 9 de novembro de 2019

Cabelo: mutações e compridos; representações e curtos



Fundo do poço! Santa estava no fundo do poço! Por uma grande aventura, ela se encontrava no fundo do poço. E pior: fora ela que tomara a decisão da aventura de corpo e alma, literalmente. Tudo e todos foram envolvidos. Ela sempre fora assim: ela sempre acreditou muito nas pessoas. A vida era sua plataforma de sobrevivência: seu ‘pulo do gato’ à felicidade. Viver era seu verbo mais intenso em todos os seus tempos.
Mesmo assim, Santa sabia que, em muitos casos, sua ingenuidade era sua tarja preta. Aos olhos dos outros, ela era diva, volúpia, alegria, vibração: uma força sem limites. Aos seus próprios olhos (e de alguns amigos), ela era tímida, ambígua, fera, verdade, grata e muito... muito aventureira de si mesma. Santa nunca se negava a SE experimentar de corpo e alma no que acreditava. Tinha medo? Lógico! Medo da solidão, do descaso, da burrice, da fome, da ingratidão, do vício e da falta de vontade de ser feliz. Só que parte desta metáfora humana, agora, no fundo do poço, estava distorcida / fragmentada.
Santa estava em dor. Dor do arrependimento, da ‘falta de chão’ e da decepção. Da cama, ela olhava as muitas fotos em sua parede: ‘Que vida linda! Cores em tudo! Cabelos sensacionais! Ops, cabelos?’. Olhando com mais atenção, Santa descobriu: em cada emoção um cabelo. Sim! Ela se desenvolvia emocionalmente em torno do seu cabelo. Cabelo era sua senha para o mundo, mesmo que ninguém percebesse; e era manifestação física de suas emoções. Cor, tonalidade, comprimento, tudo mostrava como ela se sentia em cada momento da vida. As fotos diziam isso e ela pensava: para todo fundo do poço há um cabeleireiro. Cabelo é uma linguagem, uma mensagem, uma força, um esconderijo, um ponto de contato com suas formas de transformação e superação. Santa de repente notara a si mesma naquelas paredes.
Do fundo do poço, diante das fotos, ela se levanta e se encara no espelho do armário. Que horror! Que cabelo é esse? O que ela fez da vida? Fundo do poço e seu cabelo, que tragédia! E agora? Santa chorava copiosamente. Seus cabelos e mais a idade, que loucura! Há um dor transcendental quando o feminino se percebe descabelada: insatisfeita, inútil, sozinha, sem chão, frágil, velha. E o espelho é muito cruel. Alguém bate a porta do quarto: ‘Mãe, tudo bem? Você ta chorando? Deixa eu entrar...”. Assustada, Santa se levanta, se arruma um pouco, passa creme sob os olhos e abre a porta. Antes que fale algo, seu filho diz: “Mãe, que cabelo é esse? O que você quer mostrar? Você sempre foi tão linda e tão diferente!”.
De novo, o cabelo como primeiro ponto de contato com o mundo... e um mundo de seu amor maior. Diferente... Seu filho dissera ‘diferente’! É a hora, então! Santa entrou na primeira loja e comprou cabelos compridíssimos e cheios. Era a hora de se reapresentar à vida, ela era ‘diferente!’. Na rua, cabelos como manto do empoderamento e da autoestima; como alimento às decisões; como escada fora do fundo do poço; como ‘olhe bem, deseje sim, mas não toque’; como liberdade cigana; como amadurecimento, experiência e paixão; como energia e rédeas sobre si mesma; como um grande blefe; como ornamento para trilhar os caminhos de luz fora do fundo do poço.
Santa perdeu a monotonia do fundo do poço. Voltou a acreditar em si mesma e ganhou espaço, dinheiro, amores. A vida estava na parabólica ascendente porque ela quis assim. Ela tinha o cabelo de uma mulher que sabe blefar com a vida para renascer, refazer-se e reconquistar tudo o que quiser. Tudo comprado a prazo, mas vivido à vista e com intensidade. Mas quando a grande onda passou, Santa guardou os cabelos e desejou outra coisa: outra pessoa, outro cabelo, outra mulher, outra menina. Assim ela era como boa geminiana.
Santa caminha pelas ruas do Rio de Janeiro, de cabelos curtos, tratados, perfumados, pouco distraída, em paz, em promessa, comandada por mercúrio, criativa, falando menos, amando de novo, livre, sem tantos artifícios, possível, sorridente e, de novo... aventureira. Sim! De novo o domínio da aventura estava em suas mãos. Ninguém escapa a sua essência e de cabelo curto abençoado...

Profª Claudia Nunes (18.10.19)

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