Cuidados paliativos. Cada vez que eu ouço isso lembro
de minha mãe. Luta por qualidade de vida e não por saúde não é fácil para os
filhos. Em todo lugar para onde olhamos, a morte aguarda com seu olhar cínico
de “eu vencerei”. No processo, nós precisamos criar um mantra: viver os
momentos e lutar por um fim sem dor e em paz. Quase um ano depois e eu ainda me
pergunto: fiz tudo que eu podia? Não surfo nessa dúvida com frequência, mas ela
sempre surge quando me distraio da rotina profissional, lugar para onde vou
ferrenhamente quando sinto que emoções conflituosas ou dúvidas sem resposta
irão frequentar minha mente.
Cuidados paliativos, eis o que se deve fazer quando a
Sr.ª Certeza Ruim chega sem convite e nos faz realizar a “escolha de Sofia”.
Cuidados paliativos, nova onda de conteúdo que observo
em minha rede social, e que, segundo Cicely Saunders, médica britânica, pioneira nos cuidados paliativos, é uma abordagem que
visa colocar o paciente com uma doença incurável no cerne do cuidado,
respeitando até o último momento os seus desejos e a sua individualidade.
Quase um ano
depois, é assim que sigo construindo meu olhar sobre tudo que passei. Nunca a
dúvida me deixará, mas sempre a certeza de que fiz o meu melhor precisa ser a
linha-mestra dos próximos capítulos de minha vida. Não estou só. Nunca me sinto
só. Sou tudo e todos que passaram em minha existência e por isso tudo e todos
merecem respeito. Daí cuidados paliativos para mim, para ela e para todos é o
CONFORTO do tempo.
Cuidados paliativos é compreender a presença da Sr.ª
Certeza Ruim, trabalhar emoções e atitudes em tempo real, fazer as escolhas
adequadas, agir com naturalidade, quando possível, e ir criando defesas para
diminuir o sofrimento da perda. Difícil? É sim e muito. Quando estudamos
cuidados paliativos, vamos compreendendo (o gerúndio cabe porque é preciso
tempo para viver sob esse olhar) que morrer
é tão importante quanto nascer e, por isso, até o fim, qualidade é
fundamental.
Cuidados paliativos então observa a pessoa muito além da doença. Há ações
fundamentais a serem realizadas, mesmo depois que as intervenções médicas não
são mais possíveis. E nesse tempo, vamos pensando na vida: a que passou e a que
será. É a finitude da vida e a presença da Sr.ª Certeza Ruim que sacode a
rotina dos planos adiados. É comum pensarmos que teremos o amanhã com todos os
que conhecemos e mesmo com todos com quem crescemos. Ledo engano! Quando a
porta da vida é escancarada pela chegada da Sr.ª Certeza Ruim, o essencial até
então perde força e importância.
Por um período
curto ou longo, nós lutamos contra a novidade incomoda e o sorriso tosco da
Sr.ª Certeza Ruim. E é um tempo que, ou desabamos emocionalmente e nos tornamos
dependentes de outros, ou assumimos a realidade com tudo dentro: dores, medos,
decisões, invasões, opiniões, erros e muito carinho e paciência. São emoções
que moldam nossos sentimentos, pensamentos e atitudes. Eu optei pelo segundo
movimento, ainda que tenha muito medo do escuro... do escuro de tudo. E foi um
tempo de expiação de tudo. Eu tive tempo para me jogar no campo mais
sentimental possível e ser outra pessoa. O sorriso da Sra Certeza Ruim ganhou
um sentido mais positivo: “você está indo bem...”. No fim, uma fala e os
cuidados paliativos. E Sr.ª Certeza Ruim, de pé, pronta para sair levando um
bem precioso demais: minha mãe.
Com cuidados paliativos, há o tempo de
outra ressignificação e operacionalização
daquilo que é a essência de cada um: cuidados físicos adequados, controle dos
sintomas, apoio psicológico e espiritual e segurança. É o tempo em que eu fico
sentada, olhando os movimentos de outros, cuidando com todo carinho, atenção,
delicadeza e respeito. É a dignidade que, no fim, eu não pude mais realizar,
mas oferecer, junto a outros profissionais.
Realmente, diante
da notícia da realização de cuidados
paliativos, o luto começa forte. E o luto é luta feroz contra tudo o que
ignoramos para sobreviver. Mas também é hora de uma mudança de olhar sobre como
viveremos a ação da irônica Sr.ª Certeza Ruim. Pelo que observei e vivi: é a
hora da proteção; de diminuir o tom da dor; de aceitar ajudas diversas; de
criar levezas internas; de oferecer vida com qualidade, principalmente
emocional; de não sabotar sentimentos incômodos; de falar ‘pelos cotovelos’; de
acreditar no plano de cuidados oferecidos; de respeitar desejos / pedidos; e de
pensar em como viver com mais uma cadeira vazia na cozinha.
Lendo sobre cuidados paliativos, alguns mencionam “kalotanásia” conhecida como a ‘boa morte’: conjunto de ações para que o processo de morrer seja o mais suave e sereno
possível e que promove a consciência da morte, controla sintomas desagradáveis,
respeita o desejo dos pacientes e promove a sua autonomia até o fim. Assim
eu fiz. Assim lembrei que ela sempre falou e pediu. Mas confesso que, para a
‘boa morte’, eu ainda preciso de muita maturidade, pois a dúvida permanece:
“fiz tudo o que podia ou devia?”. Segue o baile...
Prof.ª
Ms. Claudia Nunes (22.08.21)
Referências
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