sábado, 28 de janeiro de 2023

CUIDADOS PALIATIVOS, uma dúvida e eu


Cuidados paliativos. Cada vez que eu ouço isso lembro de minha mãe. Luta por qualidade de vida e não por saúde não é fácil para os filhos. Em todo lugar para onde olhamos, a morte aguarda com seu olhar cínico de “eu vencerei”. No processo, nós precisamos criar um mantra: viver os momentos e lutar por um fim sem dor e em paz. Quase um ano depois e eu ainda me pergunto: fiz tudo que eu podia? Não surfo nessa dúvida com frequência, mas ela sempre surge quando me distraio da rotina profissional, lugar para onde vou ferrenhamente quando sinto que emoções conflituosas ou dúvidas sem resposta irão frequentar minha mente.

Cuidados paliativos, eis o que se deve fazer quando a Sr.ª Certeza Ruim chega sem convite e nos faz realizar a “escolha de Sofia”.

Cuidados paliativos, nova onda de conteúdo que observo em minha rede social, e que, segundo Cicely Saunders, médica britânica, pioneira nos cuidados paliativos, é uma abordagem que visa colocar o paciente com uma doença incurável no cerne do cuidado, respeitando até o último momento os seus desejos e a sua individualidade.

Quase um ano depois, é assim que sigo construindo meu olhar sobre tudo que passei. Nunca a dúvida me deixará, mas sempre a certeza de que fiz o meu melhor precisa ser a linha-mestra dos próximos capítulos de minha vida. Não estou só. Nunca me sinto só. Sou tudo e todos que passaram em minha existência e por isso tudo e todos merecem respeito. Daí cuidados paliativos para mim, para ela e para todos é o CONFORTO do tempo.

Cuidados paliativos é compreender a presença da Sr.ª Certeza Ruim, trabalhar emoções e atitudes em tempo real, fazer as escolhas adequadas, agir com naturalidade, quando possível, e ir criando defesas para diminuir o sofrimento da perda. Difícil? É sim e muito. Quando estudamos cuidados paliativos, vamos compreendendo (o gerúndio cabe porque é preciso tempo para viver sob esse olhar) que morrer é tão importante quanto nascer e, por isso, até o fim, qualidade é fundamental.

Cuidados paliativos então observa a pessoa muito além da doença. Há ações fundamentais a serem realizadas, mesmo depois que as intervenções médicas não são mais possíveis. E nesse tempo, vamos pensando na vida: a que passou e a que será. É a finitude da vida e a presença da Sr.ª Certeza Ruim que sacode a rotina dos planos adiados. É comum pensarmos que teremos o amanhã com todos os que conhecemos e mesmo com todos com quem crescemos. Ledo engano! Quando a porta da vida é escancarada pela chegada da Sr.ª Certeza Ruim, o essencial até então perde força e importância.

Por um período curto ou longo, nós lutamos contra a novidade incomoda e o sorriso tosco da Sr.ª Certeza Ruim. E é um tempo que, ou desabamos emocionalmente e nos tornamos dependentes de outros, ou assumimos a realidade com tudo dentro: dores, medos, decisões, invasões, opiniões, erros e muito carinho e paciência. São emoções que moldam nossos sentimentos, pensamentos e atitudes. Eu optei pelo segundo movimento, ainda que tenha muito medo do escuro... do escuro de tudo. E foi um tempo de expiação de tudo. Eu tive tempo para me jogar no campo mais sentimental possível e ser outra pessoa. O sorriso da Sra Certeza Ruim ganhou um sentido mais positivo: “você está indo bem...”. No fim, uma fala e os cuidados paliativos. E Sr.ª Certeza Ruim, de pé, pronta para sair levando um bem precioso demais: minha mãe.

Com cuidados paliativos, há o tempo de outra ressignificação e operacionalização daquilo que é a essência de cada um:  cuidados físicos adequados, controle dos sintomas, apoio psicológico e espiritual e segurança. É o tempo em que eu fico sentada, olhando os movimentos de outros, cuidando com todo carinho, atenção, delicadeza e respeito. É a dignidade que, no fim, eu não pude mais realizar, mas oferecer, junto a outros profissionais.

Realmente, diante da notícia da realização de cuidados paliativos, o luto começa forte. E o luto é luta feroz contra tudo o que ignoramos para sobreviver. Mas também é hora de uma mudança de olhar sobre como viveremos a ação da irônica Sr.ª Certeza Ruim. Pelo que observei e vivi: é a hora da proteção; de diminuir o tom da dor; de aceitar ajudas diversas; de criar levezas internas; de oferecer vida com qualidade, principalmente emocional; de não sabotar sentimentos incômodos; de falar ‘pelos cotovelos’; de acreditar no plano de cuidados oferecidos; de respeitar desejos / pedidos; e de pensar em como viver com mais uma cadeira vazia na cozinha.

Lendo sobre cuidados paliativos, alguns mencionam “kalotanásia” conhecida como a ‘boa morte’: conjunto de ações para que o processo de morrer seja o mais suave e sereno possível e que promove a consciência da morte, controla sintomas desagradáveis, respeita o desejo dos pacientes e promove a sua autonomia até o fim. Assim eu fiz. Assim lembrei que ela sempre falou e pediu. Mas confesso que, para a ‘boa morte’, eu ainda preciso de muita maturidade, pois a dúvida permanece: “fiz tudo o que podia ou devia?”. Segue o baile...

 

Prof.ª Ms. Claudia Nunes (22.08.21)

 

Referências

https://www.uol.com.br/vivabem/reportagens-especiais/cuidados-paliativos-como-eles-ajudam-paciente-a-ter-qualidade-de-vida/#page20

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